Pandemia vai acabar por levar psiquiatras «à linha da frente» – Margarida Neto

Margarida Neto é psiquiatra na Casa de Saúde do Telhal, da Ordem Hospitaleira de São João de Deus. Faz parte da Associação de Médicos Católicos e é uma das responsáveis pelo Gabinete de Escuta do Patriarcado Lisboa. Em entrevista à Renascença e à Agência Ecclesia fala das mudanças que a pandemia obrigou a fazer naquele que é o maior hospital psiquiátrico do país, mas diz que os doentes têm sido “verdadeiros heróis”, e que cada novo dia sem casos de Covid é “uma batalha” ganha. E prevê que quando a luta deixar de se fazer nos cuidados intensivos, a linha da frente será mesmo para os psiquiatras.

Texto: Ângela Roque (Renascença), fotos Manuel Costa (Ecclesia)

A saúde mental tem sido descurada no atual contexto de pandemia?

Acho que não. Há até regulamentos próprios para a saúde mental e para a necessidade de atender com cuidado e segurança os doentes da psiquiatria. No domingo passado, na conferência diária da Direção-geral da Saúde, o coordenador para a Saúde Mental falou bastante sobre esta área, e foi divulgado um microsite, dentro do site da DGS, com perguntas sobre a saúde mental e os serviços que existem. Portanto não acho que a saúde mental esteja a ser descurada, desta vez.

 

Mas os dados revelados há dias pela Escola Nacional de Saúde Pública indicam que o isolamento social, por causa da pandemia, já está a afetar a saúde mental de mais de 80% dos portugueses. Estes dados surpreenderam-na, ou nem por isso?

Não surpreenderam, são de esperar. Estamos habituados a ver estas situações, sobretudo durante as catástrofes. Uma situação como esta nunca tivemos, mas acho que no final desta situação saberemos mais coisas. Avançar já com esse número… a Escola de Saúde Pública terá estudado convenientemente a situação, mas eu que estou no terreno, a trabalhar na Casa de Saúde do Telhal, onde mantemos as consultas por telefone, vemos que há um aumento da ansiedade, sintomas depressivos, humor deprimido, insónia, e sobretudo esta incógnita sobre para onde é que estamos mesmo a caminhar, mas isso não equivale…

 

São sentimentos de alguma forma naturais, face a esta situação de isolamento e solidão?

Naturais. Nós temos de reagir, e faz parte da reação ter alguns aspetos relacionados com a ansiedade. Não sentir nada seria muito perturbador.

 

Estamos a conversar num intervalo das suas consultas na Casa de Saúde do Telhal, que é um dos centros de referência na área da saúde mental. A pandemia alterou muito as suas rotinas e as do hospital?

Imenso! A Casa de Saúde do Telhal é o maior hospital psiquiátrico masculino do país, residem aqui 450 doentes mentais, em longa evolução, e 250 funcionários, e tivemos de fazer um apurado e muito consistente plano de contingência, desenhado há muitas semanas, muito antes do Estado de Emergência. Os doentes estão confinados nas suas unidades há mais de um mês, e sem visitas. Essa é uma enorme alteração da vida deles. São doentes mentais, alguns com muita dificuldade em perceber o que está a passar.

 

Há uma dificuldade acrescida em fazer adaptar as coisas num local destes?

Sim. As patologias são diferentes e o grau de compreensão é diferente de doente para doente, e até das circunstâncias e características de cada unidade. Mas tivemos muito cuidado.

Eles têm normalmente um pátio, ou um jardim, em frente das unidades. As atividades mais comunitárias encerraram, e os monitores que habitualmente trabalham nessas áreas de dia – monitores de tarefas de bricolage, etc – foram destacados para cada unidade e passam lá o dia, fazem muitas atividades lúdicas, desde jogar às cartas a jogar à malha, jogar xadrez ou fazer ginástica, ou jogar futebol. Vamos arranjado soluções para que os doentes – em cada unidade são à volta de 40, 50 – consigam estar, sem haver grandes tropelias. E isso tem acontecido de uma forma surpreendente, os doentes têm sido absolutamente extraordinários! Esta é, para mim, a maior das surpresas. Talvez porque nos veem preocupados, de máscara, talvez porque os cuidados com eles são imensos, de atenção a cada um, os doentes estão a revelar-se uns heróis. Os primeiros heróis da Casa de Saúde do Telhal são os nossos doentes, e isso é comovente e extraordinário.

Continuam a manter consultas presenciais, ou só à distância?

Presenciais dentro das unidades, quando há alguma situação, porque cada unidade tem o seu psiquiatra, enfermeiros e o médico de clínica geral.

As consultas externas da Casa, essas encerraram temporariamente, mas estão a ser substituídas por consultas pelo telefone, ou teleconsulta. É o que normalmente os psiquiatras estão a fazer no Serviço Nacional de Saúde, nos consultórios particulares e aqui, nas dezenas e dezenas de doentes que vêm à sua consulta externa, também na área de alcoologia, em que trabalho.

 

E como está a correr?

A área de alcoologia tem sido uma surpresa também, porque os doentes estão a beber menos. Provavelmente iremos assistir a um aumento de consumos, mas depois do confinamento.

 

Durante o confinamento não?

Não parece, ou porque estão mais em casa, não vão ao café, não vão às rodadas de grupo, ou estão mais ‘guardados’ pela família, isso tem dado aqui alguma serenidade, e eu encontro motivação acrescentada nas centenas de doentes que acompanho na área de alcoologia. Tem havido aqui bastantes surpresas.

A coisas psicóticas, a sintomatologia psicótica, também não me parece que esteja neste momento a aumentar, mas provavelmente iremos encontrá-las mais à frente, como aconteceu com a crise que atravessou o país em 2010, 2011, com a pobreza e o desemprego a aumentar. Esse é um outro lado, que terá consequências.

Pode desencadear uma crise ao nível dos vícios?

Sim. Aí será outra história. Neste momento há evidentemente uma reação ansiosa em relação às questões que se põem, mas dentro do expectável. É a minha experiência.

Pessoalmente, como médica, estes têm sido dias difíceis?

Muito difíceis. Como profissional de saúde com uma solidariedade muito grande com todos os meus colegas, sobretudo aqueles que estão na linha da frente, mas cada um tem o seu papel, não é, e aqui (na Casa de Saúde) temos este dever de proteger os nossos doentes.

Eu faço parte do Gabinete de Crise que foi montado para esta situação, e todos os dias temos de afinar procedimentos. Mas saber que passado este tempo – mais de um mês -, e com este mundo aqui dentro, não há nenhum caso, nem de doentes nem de funcionários, é mais um dia em que ganhámos esta batalha. É olhar cada dia como um dia novo, com a exigência e os desafios com que se vai apresentar.

A fé também a tem ajudado?

A fé… é muito boa essa questão. Sabemos da dificuldade que o acompanhamento espiritual está a ter nos hospitais onde os doentes Covid estão a ser tratados, nos cuidados intensivos, da dificuldade do trabalho dos capelães. É nossa missão, como médicos católicos, relembrar e fazer esta ponte com as capelanias, porque é preciso tratar do corpo mas também ter bem presente a questão da compaixão e a questão da espiritualidade, favorecendo, dentro do possível, esses cuidados onde eles possam ser prestados. E também não esquecer, cada um de nós, que uma oração também faz parte desta prática da medicina nestes tempos.

A Casa de Saúde do Telhal é um hospital católico, e espiritualidade não falta. Passámos a Páscoa com tudo o que foi possível viver, fizemos uma Via Sacra nas ruas que ligam as unidades e os doentes vieram à porta. Aqui a espiritualidade é vivida à maneira de São João de Deus, e todos os dias dizemos que São João de Deus se lembra de nós e tem sido um grande companheiro de viagem.

A saúde mental dos médicos, de quem está na linha da frente, também é uma preocupação nesta altura?

Também é. Eu acho que os médicos estão sujeitos a uma pressão imensa, desempenham a sua função com um enorme empenhamento, como temos visto, uma dádiva até superior. Não me lembro de em Portugal os profissionais de saúde terem trabalhado com tanto espírito de missão, são verdadeiros defensores do Serviço Nacional de Saúde, verdadeiros soldados do país! Mas, isto tem um preço, e às vezes – quase sempre – quando estamos na linha da frente, quando é preciso agir, as pessoas agem ultrapassando os seus limites. Porque é muito difícil, como vemos nas reportagens extraordinárias que tem havido. Há dificuldades com o equipamento, aquilo fisicamente é muito forte, e temos que perceber que a maior parte destes profissionais de saúde da linha da frente está sozinho, porque saiu de casa, ou as famílias estão noutros sítios, para que não haja possibilidade de contágio, por isso a vulnerabilidade também é muito grande.

Fala-se no risco de burnout para muitos deles.

Um risco que já existia antes. Já havia grandes dificuldades no nosso trabalho, sobretudo do SNS. Estamos aqui a fazer um trabalho de empenho, onde as energias vêm de um sítio que nem sabíamos que existia, e obviamente que isto mais à frente terá o seu custo.

 

Mas neste momento já está a ser dada a devida atenção a estas situações?

Eu julgo que sim, daí também o cuidado da DGS ter emanado aquelas normas. Sei que alguns hospitais têm os seus psiquiatras a fazer apoio aos profissionais de saúde. Mais à frente, quando já não estivermos a falar de cuidados em cuidados intensivos, se calhar os psiquiatras vão passar eles para a linha da frente. Não tenho muitas dúvidas sobre isso.

 

A Associação dos Médicos Católicos publicou recentemente um documento com linhas orientadoras para os cuidados de saúde neste tempo de pandemia, a lembrar que a missão do médico é cuidar da pessoa, não apenas da doença, e a alertar para os riscos do encarniçamento terapêutico.

E para a forma como se poderá eventualmente priorizar a questão dos ventiladores. Era uma questão de que tínhamos bastante receio e que estávamos muito avisados pela questão de Itália, de França e de Espanha. Quisemos relembrar, como relembrámos na campanha da eutanásia, que a boa prática médica não contempla o encarniçamento terapêutico, que os recursos têm de ser bem pensados, em equipa, e que a fazer-se uma escolha – oxalá não cheguemos a essa situação – tem de ser uma escolha ponderada com aquilo que é a comorbilidade dos doentes e as possibilidades de vida e sobrevivência. Não são situações nada fáceis. Não estamos a vivê-las nesta altura, ainda que nos preocupe a situação dos idosos nos lares, a salvaguarda e o bom tratamento destes doentes, que não sejam esquecidos. E também os doentes mentais. Que já agora não se chegue a uma situação em que estas pessoas não tenham valor social.

 

Foi um dos rostos visíveis na recente luta contra a eutanásia, que centrou atenções no início deste ano. A pandemia tem mostrado a luta diária e dedicada dos profissionais de saúde para salvar vidas. Acha que isto fará mudar alguma coisa relativamente aos conceitos de vida e de morte?

Espero que mude, para bem. Na verdade é uma das coisas mais estranhas, se pensarmos que em fevereiro – parece que foi há imenso tempo, mas foi há exatamente dois meses – estávamos a aprovar na Assembleia da República uma lei a favor da morte de pessoas. A vida é mesmo estranha, não é? Agora, o que glorificamos é o salvar vidas a todo o custo, e o empenho dos profissionais de saúde.

Sabemos bem que a missão de um médico e de um enfermeiro é salvar vidas. E estamos em confinamento para salvar vidas, para que não haja uma sobrecarga no SNS, para que os cuidados intensivos e os ventiladores cheguem para toda a gente. Este esforço, que é um esforço da sociedade toda, em que estamos todos empenhados, que coerência tem com a eutanásia e com a cultura de morte que grassava há dois meses por aí?

Espero que tenhamos aprendido, ou que estejamos a aprender, que agora não faz sentido algum terem uma lei na comissão (parlamentar), não estou a ver que vá ser agora debatida sequer, e que volte outra vez para a Assembleia da República para o plenário! Que coerência tem voltar a falar de eutanásia? Seria um sinal completamente incoerente em relação ao que estamos a passar neste momento, e particularmente grave e feio, não tenho outro nome. Seria também repugnante, para usar uma palavra que o nosso primeiro-ministro utilizou em relação ao ministro holandês.

É uma das responsáveis pelo Gabinete Escuta criado no Patriarcado Lisboa e que, não sendo um consultório nem um confessionário, presta um acompanhamento de proximidade às pessoas. Como é que está a funcionar no atual contexto?

Estamos a funcionar sem atendimentos presenciais. Vamos retomá-los assim que possa ser. Estamos a fazer atendimento pelo telefone.

Com prioridade para as situações mais graves?

Damos prioridade às situações que já estavam a ser seguidas, mas também não tem havido mais pedidos para atendimento. Daqui a nada vou atender um telefonema de uma senhora idosa, com queixas de solidão, o que se percebe. Mas, de facto não tem havido novos pedidos, ao contrário do que poderíamos pensar.

Tal como nas consultas, será mais à frente que iremos ter mais atendimentos, presenciais ou por telefone. Se verificarmos que esta é uma maneira de atender eficaz e que facilita a vida das pessoas, porque não? Realmente estamos a aprender que as tecnologias nos podem ajudar. Fazer consulta de psiquiatria por telechamada, com imagem, era uma coisa que eu nunca na vida pensei fazer, mas tenho feito e as coisas não tem sido más. Parece que o valor da palavra, a atenção à palavra readquire aqui um valor importantíssimo. É engraçado.

 

A procura do Gabinete de Escuta, desde que foi criado, mostra que este serviço fazia falta?

Sim, os relatórios que temos mostram isso. Somos voluntários neste atendimento, as pessoas que nos pedem para ser atendidas e a capacidade de resposta está bastante equilibrada. Têm aparecido muitas situações, sobretudo relacionais, as questões das perdas, da solidão…

 

Como o caso da idosa que vai atender daqui a pouco. No atual contexto é preciso reforçar a atenção a esta população em termos de saúde mental?

Sim, porque sabemos todos, pela forma como o vírus se propaga, que vai ser preciso confinar e proteger mais os idosos. Essa proteção tem de ser bem explicada, e tem de se arranjar maneiras de combater a solidão e fazer um acompanhamento diferente. Graças a Deus as tecnologias ajudam-nos imenso, para que os idosos não morram da cura, digamos assim, tão protegidos, tão protegidos, que acabemos por os discriminar na sua solidão, e isso é muito complicado.

Tenho visto idosos na rua que não andam de máscara, já disse a muitos ‘vá para casa, não deve estar aqui’, e respondem ‘o que é que eu tenho a perder?’. Muitos não conseguem, ou não quererem compreender isto, ou então o ir para a rua e ver pessoas é superior à sua vontade de se proteger. Falta o abraço, falta o beijo, falta o tato, falta a conversa lado a lado. Vamos ter certamente depressão nos idosos.

Que conselho deixa?

Que peçam ajuda. Alguns idosos não têm estes telemóveis mais atuais, e aqui na Casa de Saúde colocamos os telemóveis com imagem ao serviço dos doentes, para que consigam falar com as suas famílias, dizer adeus, perguntar coisas. É preciso ajudar os doentes, e sobretudo os idosos que estão mais sozinhos, a que se agarrem à vida. Não podemos perder as coisas que nos agarram à vida, porque perder o sentido da razão daquilo que estamos a fazer, e porque é que estamos a fazer desta forma, é perder a luz ao fundo do túnel e perder a esperança. E não podemos perder a esperança de que isto vai acabar e que a vida vai voltar a um normal, que será um normal diferente, mas que há de haver aqui uma esperança.

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