«O berço da Pátria é confundido com o colo de Maria»

D. Francisco Senra Coelho conta a história de Portugal em sete etapas, a que correspondem outras tantas alianças da nacionalidade com Nossa Senhora. A garantia da independência e da soberania, em momentos decisivos e desde a nacionalidade, são atribuídos pela tradição e pelo povo português a Nossa Senhora, a quem sempre se manifestou agradecido. Em Alcobaça, Batalha, Vila Viçosa, Sameiro e Fátima estão referências essenciais dessa gratidão.

Agência Ecclesia (AE)– O que justifica um feriado no dia 8 de dezembro?

D. Francisco Senra Coelho (FSC)– Há vários motivos para que, em Portugal, o dia 8 seja feriado. Em primeiro lugar, por razões históricas, uma vez que a História de Portugal se confunde com a dimensão mariana. A própria independência de Portugal foi atribuída, no seu mérito a na sua capacidade de ajuda, a Nossa Senhora pelo nosso primeiro rei. Por outro lado, há uma constante valorização do dogma da Imaculada Conceição na Faculdade de Teologia da Universidade de Coimbra, quando era ainda um tema em aberto e discussão teológica.

Quando, no dia 8 de dezembro de 1854, o Papa Pio IX fez a proclamação do dogma da Imaculada Conceição foi uma alegria para Portugal, uma vez que era uma das causas assumidas pela teologia portuguesa. Ao longo de toda a história teológica de Portugal, este tema era muito próximo.

Há também uma dimensão social, neste feriado, marcada pela maternidade: a vivência do dia da mãe, neste dia, que foi sempre muito importante para Portugal. Numa sociedade muito paternal como a portuguesa, a mãe exerceu sempre o recando da ternura. E Nossa Senhora apareceu associada à figura da mãe, como Mãe de Cristo e modelo para todas as mães. E o dia da mãe fez do dia 8 de dezembro um feriado assumido pelas famílias e com uma popularidade enorme e com uma dimensão profunda na rede social portuguesa e no viver quotidiano da cidadania.

 

AE – Deveria voltar a celebrar-se o dia da mãe no dia 8 de dezembro?

FSC – Para mim, sim, faria sentido. O mês de dezembro é marcado pela dimensão da família, da maternidade. O Natal não é dissociado da família, numa grande perspetiva da festa da família que se junta. Começar o mês de Natal com o dia da mãe seria muito oportuno. E também e dimensão da generosidade que marca o mês de dezembro, em que toda a gente sente um apelo à partilha, à fraternidade, à dimensão da paz universal. E tudo isto cabe no regaço e no colo da Mãe, que é Nossa Senhora, e que são todas as mães!

 

AE – A História de Portugal coube também no regaço e colo de Nossa Senhora? Que marcos da História de Portugal incluem a presença de Nossa Senhora e como os apresenta no livro que acaba de editar “Nossa Senhora e a História de Portugal”?

FSC – Eu fiz uma opção por sete marcos, sete alianças. Trata-se de um número bíblico, que tem uma caraterística de plenitude e, por isso, fixei-me aí.

A independência de Portugal foi, desde logo, agradecida por D. Afonso Henrique a Nossa Senhora. O Mosteiro de Alcobaça, a Igreja da Senhora dos Mártires em Lisboa, a Igreja das Alcáçovas, em Santarém, são votos em ação de graças pela independência de Portugal e a dignidade de um reino reconhecido pelo Papa em 1179.

O berço da pátria é confundido com o colo de Maria.

Encontramos depois a grave crise de 1383-1385, vencida na grande batalha de Aljubarrota, que se transformou numa referência icónica de Portugal. E sabemos que Nossa Senhora, no dia 15 de agosto, é invocada como aquela que nos há de ajudar, em 1385, a readquirir a nossa realeza independente, com a proclamação do Mestre de Aviz, D. João I, Rei de Portugal. E o Mosteiro da Batalha é, de facto, a grande proclamação dessa vitória.

 

AE – A figura de Nossa Senhora acompanha também a epopeia marítima de Portugal?

FSC – Sim! A descoberta do caminho marítimo para a Índia é qualquer grandioso para o desígnio de Portugal. Fez do nosso país a primeira potência do mundo de então. A ‘Rota da Seda’, que era quase mitológica na história da Europa, chegava até Veneza e fazia dos doges de Veneza grandes figuras da economia e finanças europeias, passa para o Terreiro do Paço, para Lisboa. Todo o espólio das especiarias já não chega à Europa por terra, mas agora vem nas caravelas para Lisboa. Nós fomos a primeira potência mundial fruto da descoberta do caminho marítimo para a Índia. Num tempo efémero, mas foi algo que marcou a grandeza deste povo. E esse rasgar de grandes caminhos e estradas pelo mundo é atribuído a Nossa Senhora. D. Manuel Faz, por isso, acontecer a Igreja de Nossa Senhora de Belém e depois os Mosteiro dos Jerónimos, numa terceira aliança de Portugal com Nossa Senhora.

 

AE – Chegamos depois a um dos momentos mais significativos dessa ligação de Nossa Senhora ao Reino de Portugal, com a Restauração?

FSC – Temos de começar por perceber o que foi a dor de Portugal quando experimentou, outra vez, a perca da independência com a presença da Dinastia Filipina entre nós e o movimento da restauração. D. João IV, o duque de Bragança, é claro na sua afirmação: foi Nossa Senhora que nos deu a independência. O que se traduz na coroação de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa e na abdicação da coroa pela corte de Portugal, que deixa de a usar porque Nossa Senhora é, de facto, a Rainha.

 

AE – Isso seis anos depois da Restauração da Independência?

FSC – No dia 25 de março de 1646, quando foi proclamada como Padroeira de Portugal e depois confirmada por Urbano VIII, em forma de breve.

 

AE – O que terá acontecido de relevante, entre 1640 e 1646, que levou D. João IV a coroar Nossa Senhora como Rainha de Portugal?

FSC – Celebrar a conquista da independência, enquadrada no contexto histórico de Portugal, que sempre sente a gratidão em relação a Nossa Senhora, e também o acentuar do apoio à tese teológica, que estava muito sobre a mesa e a amadurecer, que havia de acontecer depois com o Papa Pio IX, do dogma da Imaculada Conceição. Quer-me parecer que há também uma atitude de reconhecimento político de todo o apoio que D. João IV recebeu. Porque há um movimento restauracionista, que tinha uma espiritualidade, um símbolo que o congregava e unia: a Imaculada. D. João IV não seria proclamado rei sem uma grande base de apoio, que tem a sua iconografia e símbolo em Nossa Senhora da Conceição. O Movimento Concecionista foi também emergente de apoio político ao Duque de Bragança. Ao proclamar Nossa Senhora da Conceição como Padroeira, agradeceu esse apoio político, que tinha na sua simbologia máxima a defesa e o apoio de Nossa Senhora da Conceição.

 

AE – Consagra-se também nesse século XVII a relevância do Santuário de Vila Viçosa?

FSC – Muito! Porque a Casa de Bragança, nesse contexto, despendeu de bastantes verbas para melhorar o edifício que estava a precisar de obras urgentes. E a valorização daquela casa como símbolo de toda a nova dinastia bragantina.

 

AE – Passamos para a quinta aliança, com D. João VI…

FSC – Acontece em muito sofrimento, provocado pelas invasões francesas, com consequências patrimoniais e o sofrimento de vidas. A cidade de Évora foi martirizada, por exemplo. O bispo auxiliar de Évora foi morto a tiro de pistola. Há um sofrimento por todo o país, com as invasões francesas, temendo-se a perca da independência. A coroa foi par ao Brasil e D. João VI quis agradecer aos que ficaram em Portugal, com o risco de vida, pela heroicidade na proclamação do sentido nacional. Criou a Real Ordem da Senhora da Conceição para homenagear todos os resistentes que permaneceram no Continente e nas Ilhas da Madeira e dos Açores, com o sentido da gratidão. Faz uma consagração à Senhora da Conceição, voltando à consagração de Vila Viçosa e à consagração do primeiro rei de Portugal, a Senhora da Oliveira, em Guimarães.

Essa atitude de condecorar os que ficaram e resistiram às invasões francesas e o agradecimento por não perdermos a liberdade, mas voltar a ser pátria, acontece com o regresso da coroa a Portugal. D. João VI renova a consagração e atribui a liberdade de Portugal face às tropas francesas ao poder e ajuda de Nossa Senhora.

Existe a consciência de desígnio, de filhos, num povo que tem uma aliança com a Mãe e é sempre ela que vem ajuda. Sem ela não seríamos nada. É uma espiritualidade que brota com um cariz muito genuíno, de um coração de um pequeno povo, em número, que sabe e consegue grandes epopeias. Sentindo-se incapaz de as realizar sozinho, atribui-as a Nossa Senhora, que tem como Mãe.

Portugal é uma Pátria com Mãe! Não uma Pátria órfã, sem saber de onde vem.

 

AE – Sexta aliança acontece no contexto do liberalismo.

FSC – O liberalismo é importado sobretudo da França. Em Portugal, ficam as sementes de uma revolução onde se prescinde de uma revelação, quer judaica, quer cristã e mesmo islâmica. O iluminismo não aceita a autoridade da tradição e de modo algum o Livro Sagrado. Aposta na racionalidade e na compreensão de Deus sem dogmas de fé, apenas pela filosofia, pela teodiceia, pela teologia racional. E essa atitude espanta o nosso povo: como é que os intelectuais portugueses, como é que os que nos conduzem se afastaram da nossa matriz e da nossa origem cristã? Essa reação é expressa no caso muito concreto do Sameiro: um movimento popular, de cariz espontâneo, acompanhado pelo padre Martinho António Pereira da Silva, natural de Semelhe, que faz colocar no cume da montanha, em 1869, uma imagem de Nossa Senhora da Conceição. A escultura, esculpida em Roma e benzida pelo Papa Pio IX, porta uma belíssima e valorosa coroa de 2 quilos e meio em ouro maciço e brilhantes, oferecido em 1904 pelas mulheres de Portugal, incluindo a Rainha D. Amélia de Orleans.

Voltamos ao dia da mãe, ao 8 de dezembro: uma coroa de ouro maciço mostra um povo que sublinha o quer, para onde quer ir e de quem é. Por isso, o Sameiro é um Santuário tipicamente popular e reativo a um contexto cultural de uma elite muito marcada pelo iluminismo e com conduções de realidades como a maçonaria, que adquiriram grande peso no século XIX em Portugal.

 

AE – A que se refere a última aliança, a sétima, que apresenta no livro “Nossa Senhora e a História de Portugal”?

FSC – Vamos aí encontrar Fátima. 1917 é um ano duro pela I Guerra Mundial, onde Portugal entrou de uma maneira desastrosa. Estamos às portas da revolução de Sidónio Pais e era tal a perseguição da maçonaria à Igreja que a maçonaria mitigada, na figura de Sidónio Pais, faz uma revolução para que não fossem tão perseguidos os católicos. Nessa ocasião, o arcebispo de Braga, D. Manuel Vieira de Matos, e o arcebispo de Évora, D. Augusto Eduardo Nunes, estavam expulsos de Portugal, tinham de sair das fronteiras de Portugal. E Sidónio Pais faz um decreto, após a sua revolução, que dispensa dessa expulsão os dois metropolitas. E é morto a tiro de pistola na Estação do Rossio.

 

FSC – É neste contexto de grande sofrimento, sem esquecer o contexto mundial, nomeadamente a revolução Bolchevique na Rússia, em outubro de 1917, que se dá esta grande manifestação de Nossa Senhora, em Fátima.

É aquela com quem um povo fez aliança e de quem se socorreu que agora vem pedir ao povo sofrido do extremo da Europa que leve uma mensagem de paz a todo o Continente e ao mundo. É este povo, representado nos mais pequeninos, três crianças, que é convocado para uma resposta às alianças que com ela Nossa Senhora fez ao longo da história.

 

AE – O feriado de 8 de dezembro celebra a Imaculada Conceição e tem de celebrar também toda a história de Portugal ligada a Maria?

FSC – Sem dúvida! Quando celebramos o dia 8 de dezembro estamos a celebrar Nossa Senhora na sua Conceição Imaculada. Foi aí o seu primeiro instante de existência! E ela, desde esse momento, é Filha da Luz e absolutamente livre, por fazer sempre a escolha pelo bem, pela justiça e nunca ser dominada pela iniquidade.

Nós estamos também a celebrar Maria que tem a ver com toda a história de Portugal desde o seu início. É o princípio da sua vida, proclamando-a desde sempre, desde toda a sua existência, como modelo para nós em todos os aspetos da sua vida.

 

AE – E que legado é esse para a história de Portugal?

FSC – É um legado de humanização, que decorre da palavra mãe: dádiva da vida, gratuidade, acolhimento, entrega incondicional, ser mãe! E isso tem de estar impresso na nossa história e no nosso desígnio nacional, tanto na missão de hoje como no futuro. Portugal tem de ter uma grande dimensão humanística de serviço e acolhimento. Portugal não pode ser nunca um país sem coração.

Paulo Rocha

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