A defesa da vida humana. O que ouve quem nos ouve?

Luís Silva, Comissão Diocesana da Cultura de Aveiro

Imagine-se a seguinte afirmação: ‘os que legalizaram o aborto até às dez semanas queriam era levar à prisão todas as mulheres que o praticam fora desse prazo’. Ou a seguinte: ‘quem defende o fim da pena de morte quer é ver na rua todos os que praticam crimes’. Ou, ainda, esta: ‘quem defende que deve haver faltas nas escolas quer chumbar todos os alunos que faltam’.

São frases absurdas?

Pois bem. São-no tanto como a que diz que quem é contra a legalização do aborto quer ver na prisão as mulheres que o praticam.

Mas o que é certo é que esta última tem feito caminho, tem sido repetida até à náusea, com consequências muito nefastas. Basta que se pense que, com ela, muito se tem contribuído para ridicularizar a ação dos que defendem que o aborto é um erro. Tal ridicularização tem feito com que só os mais corajosos continuem a ousar dizer, publicamente, quão errada é esta prática, ainda que sabendo que a ousadia de o dizerem os cobrirá de vergonha e com um manto de suspeita de que serão radicais, fundamentalistas e incompassivos. Sublinhe-se que a lei tem uma função pedagógica. Ao relativizar uma prática que é ofensiva da dignidade e violenta, está a transmitir uma mensagem à sociedade: a de que é uma prática tolerável. É isto que está em causa na legalização do aborto: legalizar diz que é aceitável.

É por isto que não posso concordar com o que li, há dias, no mais recente livro de Tomas Halík, um autor que sigo e cujos méritos permanecem intocáveis, apesar da crítica que me valem as suas palavras sobre os movimentos de defesa da vida.

Diz Halík: ‘Também eu tenho um respeito sagrado pela vida do nascituro, mas não posso participar nas marchas daqueles que se fixaram obsessivamente nesse assunto e transformaram o Cristianismo numa cruzada militante para criminalizar o aborto e proibir a contraceção. Fizeram dessa agenda o principal – e muitas vezes o único – critério para aferir o grau de «Cristianismo» dos políticos e o seu sentido de voto nas eleições, tornando-se presa barata para astutos demagogos.’ (T. Halík, A tarde do cristianismo, Ed. Paulinas, p. 114)

Não posso concordar porque não tenho o direito a julgar os motivos que levam os participantes nestas marchas que Halík aqui ridiculariza. Já participei e organizei muitas dessas marchas e encontrei múltiplas razões entre os participantes. Alguns, inclusive, porque tinham vivido, de perto, a dor da perda, por aborto espontâneo, de um filho, e sabiam o que tal significava de perda de esperança e futuro.

Mais, ainda… É uma ‘obsessão’ como tantas outras em que participei. Também participei e organizei iniciativas contra a pena de morte; contra a tortura, contra a eutanásia… OU, melhor. A favor do respeito pela dignidade humana. E isso não me parece uma obsessão, mas um dever.

Sendo que, a ‘obsessão’ contra a legalização do aborto, da eutanásia, da pena de morte, tem o condão de estar marcada pela urgência. Cada atraso (de um dia, de uma hora, de um minuto…) pode significar a perda efetiva de vidas. Cada atraso na legalização do aborto, num país, pode significar garantir a sobrevivência de milhares de crianças e mães. Sim, de crianças e mães.

É que, em cada aborto, morre uma criança (obviamente!), mas também uma mãe, pois só se é mãe porque se tem um filho. Sobrevive, eventualmente, a mulher (em Portugal, já morreram mulheres na sequência do aborto legal. Sim. Posso demonstrar o que acabo de afirmar!), mas morre a mãe.

Acho injusto considerar esta ‘obsessão’ um aspeto marginal da fé cristã. Os movimentos de defesa da vida têm feito, nas últimas três décadas, mais pelas mulheres do que os movimentos ditos feministas, que deixam a mulher abandonada numa rede de supostos direitos, mas solitária e cada vez mais deprimida num mundo solipsista. Os movimentos de defesa da vida arregaçaram mangas e criaram respostas. Nenhuma mulher que pede ajuda fica sozinha. Tem, imediatamente, uma rede de ajuda que a apoia e ajuda a salvar-se das situações confusas com que a vida a confronta.

É injusta acusação…

Tenho encontrado, entre as pessoas dos movimentos de defesa da vida, uma fé viva, feita de amor. Um amor que ama mesmo aquele a quem ainda não vimos o rosto ou o sorriso. Um amor que ama sem condições. Um amor que acolhe, seja bonito ou feio, ‘perfeitinho’ ou marcado pela deficiência.

É tão injusto, Tomas Halík! Mas bem sabemos que tem sido contra esta injustiça com que o mundo nos vem lendo que continuaremos a lutar, porque há pobres entre os pobres, a quem nem o direito a nascer se quer garantir, que merecem que gritemos por eles, para que um dia, possam gritar que alguém por eles gritou, quando ainda não podiam.

Se o abortado for um filho, um de nós, ainda sem nome nem rosto, mas a quem ousamos dar o rosto de um humano, então a causa da defesa dos não nascidos pode ser uma legítima e justa obsessão. Porque amamos todos: a mãe, o filho, o pai (esse ausente a quem a legalização do aborto excluiu) e todos os que seriam afetados pela perda de um deles… Não amamos um contra os outros. Estamos do lado de todos: a mãe, o filho, o pai. Sempre, sempre, sempre. Mesmo quando nos dizem que o fazemos por não ter fé. Mas porque sabemos que, mesmo que a mãe abandone o seu filho, Deus nunca nos abandonará.

Queremos ser sinal dessa certeza de um amor incondicional, num tempo que parece tudo reduzir a direitos e a lutas de uns contra outros. Estamos do lado de todos!

Luís Silva, Comissão Diocesana da Cultura – Presidente

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