Igreja/Abusos: «Todos temos de ter a preocupação de conquistar confiança» – José Souto Moura

O presidente da Equipa de Coordenação Nacional das Comissões Diocesanas de Proteção de Menores é o convidado desta semana da Renascença e da Agência Ecclesia

Foto: Agência ECCLESIA/MC

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

A Coordenação Nacional vai analisar a lista de alegados abusadores disponibilizada pela Comissão Independente? A documentação vai ser pedida às Comissões Diocesanas?

As comissões diocesanas dependem da opção que cada bispo tomar. Aquilo que aconteceu na Comissão a que eu pertenço, que é a Comissão do Patriarcado de Lisboa, já tomou a decisão de facultar a lista dos sacerdotes que têm a ver com a Patriarcado de Lisboa, e já a facultou a todos os membros da Comissão.

 

E, portanto, a partir daí se verá como é que a nível nacional, depois, cada Comissão decide?

Cada uma decidirá a nível nacional, mas eu não mando nos bispos, só coordeno as comissões. Admito perfeitamente, que já haja uma orientação da Conferência Episcopal sobre esse assunto.

 

Que a intervenção poderá ter a coordenação nacional? considera importante para não haver diferenças de tratamento das situações, existir a informação/documentação com procedimentos a adotar pelas dioceses nas situações de alegados abusos?

A atuação das 21 comissões está orientada por uma base comum que já tem mais de 1 ano, e que eu elaborei com os meus colegas da equipa de coordenação e essa base comum, diz, para quem não tiver regulamentos próprios – porque há muitas comissões que já tinham e têm regulamentos próprios – mas quem as não tiver orienta-se pela base comum. E mesmo quem as tiver, tem de adaptar a base comum para haver a tal uniformidade, sem disparidade de comportamento.

 

Nós, apesar desse trabalho estar a ser feito há muito tempo, e temos tido oportunidade até de acompanhar encontros das Comissões Diocesanas em Fátima, a verdade é que nos últimos dias se criou alguma, ou bastante confusão no espaço Público, mormente com o debate sobre medidas cautelares ou suspensões que têm significados diferentes na opinião pública, ou no direito canónico. É importante tentar serenar o ambiente e passar uma mensagem de determinação, esclarecendo estes conceitos e também dando como exemplo as medidas que já estão a ser tomadas por algumas dioceses?

Acho que é muito importante dar conhecimento de que está tudo em movimento. Eu falo da Comissão de Lisboa, e na Comissão de Lisboa já se substituiu e está-se em curso de conseguir um novo coordenador para a Comissão, porque o elemento que coordenava que era D. Américo Aguiar, bispo auxiliar de Lisboa, vai sair porque serão só leigos a tomar conta das comissões.

Em relação a medidas como, por exemplo, suspensão de clérigos, suponho que se queria referir a isso de clérigos?

 

Sim, a pergunta vai no sentido de se perceber se a terminologia muito própria da igreja, nesta matéria, prejudicou a comunicação?

Eu acho que prejudicou a comunicação porque há alguma confusão de termos e do significado desses termos. Fala-se em suspensão, mas em Direito Canónico, suspensão, eu até posso ler aqui um artigo do Vade-mécum foi é feito pela congregação, ou Dicastério da doutrina da fé, e esse artigo é muito claro.

 

Deve ser o 62, imagino? 

É o 62. Para evitar confusões, diz: “Observa-se frequentemente que ainda está em uso a antiga terminologia da suspensão a divinis para indicar a proibição de exercer o ministério imposta como medida cautelar a um clérigo. É bom evitar tal designação, bem como a de suspensão ad cautelam, porque na legislação em vigor a suspensão é uma pena e, nesta fase, ainda não pode ser imposta”.

 

Daí utilizar-se afastamento?

A forma correta para designar tal disposição será, por exemplo, afastamento ou proibição de exercício do Ministério.

 

A minha questão é nesse sentido. Acha que há ambiente mediático para as pessoas pararem, serenarem e perceberem que efetivamente estamos a falar de coisas diferentes quando se calhar depois, a resposta vai ao encontro das preocupações? Porque um afastamento temporário como aconteceu já nalguns casos, responde às preocupações das pessoas….

Sim. Eu acho que a terminologia a usar mais correta e para evitar a tal suspensão ad cautelam ou a divinis é afastamento. É um afastamento temporário, apesar de não ser uma sanção, isso é que é importante, porque se fosse uma sanção seria da competência de Roma – sendo o afastamento, pode ser do bispo.

 

Fazendo um paralelismo com a lei civil, no fundo, será a constituição de um arguido para sua própria defesa?

Não tem nada a ver com isso. Tem a ver eventualmente com a medidas de prevenção, que acontecem no processo penal. São medidas estritamente processuais não penais, não de sanção. São judiciais porque é um juiz que as impõe, no caso civil. porque pode haver perigo de fuga, perigo de prejuízo de conservação da prova – pois podem estar a ser destruídas provas se o arguido estiver em liberdade – e, além disso, há arguidos que podem continuar a cometer crimes.

Essas três razões que são preventivas são medidas que, no Penal, correspondem às medidas cautelares do civil, e, portanto, pode estabelecer-se um paralelo entre isso e este afastamento. Agora, é importante é que se diga que esse afastamento pode ser determinado pelos senhores bispos.

 

Nalgumas intervenções públicas, podemos ouvir e ler que os padres acusados seriam culpados até prova em contrário.  Tem faltado racionalidade face à grande, a grande carga emotiva que todas estas questões geram?

Desculpe, mas deixe-me perguntar: quando disse padres acusados, são os padres mencionados na lista da Comissão?

 

Sim, refiro-me a essa situação.

Mas, repare, não são acusados, nem suspeitos. São designados pelas pessoas que foram ouvidas. Em 90% dos casos, serão pessoas que os indicaram anonimamente sobre anonimato. E claro que são pessoas que vão desencadear necessariamente uma investigação para se saber qual o fundamento dessa indicação por parte das vítimas. Eu Não acredito que as vítimas acusem de uma coisa com esta gravidade sem fundamento e, portanto, dou o benefício de que estão a falar verdade e é um facto que aconteceu.  Agora, há um princípio que é um princípio básico do processo penal português e de todo o direito sancionatório, e é disso que estamos aqui a falar quer civil, quer canónico, e esse princípio básico é tão básico que está na Constituição: chama-se presunção de inocência.

 

A pergunta ia o sentido de se perceber se tem faltado racionalidade face à grande carga emotiva que todas estas questões geraram ou se tudo isto se precipita por causa dessa confusão de que vínhamos a falar ainda há pouco?

Eu acho que a reação do público é natural e é necessariamente emotiva. Deixe-me dizer-lhe que, na apresentação na Gulbenkian do relatório da Comissão Independente, a descrição que foi feita de vários casos, que foram denunciados e foram descritos pelas vítimas, essa descrição contribuiu imenso para que as pessoas ficassem realmente muito impressionadas, se é que não estavam já. Porque quando se fala de abusos, qualquer adulto percebe de que é que se está a falar. Pode ser mais ou menos grave, mas é sempre muitíssimo grave.

 

Mas considera que não se devia ter feito esse relato?

O que eu acho é que esse relato deveria ter sido feito, tipo a título exemplificativo. Talvez tenha sido prolongado demais. Isso é que eu acho, mas também percebo que a preocupação era criar um impacto, para que as pessoas ficassem realmente motivadas dentro daquilo que possam fazer para combater este malefício, que infelizmente irá acontecer mais vezes. Suponho.

 

Foto: Agência ECCLESIA/MC

A Conferência Episcopal determinou que as Comissões Diocesanas sejam constituídas apenas por leigos competentes nas mais diversas áreas de atuação. Isso poderá fazer aumentar o capital de confiança das alegadas vítimas de abusos?

Há eventualmente um défice de conhecimento do que são as comissões. Porquê? Porque as comissões trabalham sem fazer grandes exposições públicas e as pessoas não sabem que as comissões já têm especialistas nas várias áreas que interessam. Eu posso dizer que, por exemplo, a Comissão de Lisboa tem uma psicóloga do nível da Rute Agulhas, do melhor que há, tem outra psicóloga, tem psiquiatra, tem um ex-diretor da Polícia Judiciária, tem um ex-diretor-geral da PSP… espero não me estar a esquecer de ninguém.

 

Aqui a questão é que a coordenação dessas comissões deixa de ser confiada, como acontecia nalguns casos, a um sacerdote ou um bispo auxiliar, e passam a ser constituídas apenas por leigos. Em que é que esta medida vai ajudar as comissões a ganhar a confiança de quem sinta necessidade de denunciar?

O que eu acho é que todas as pessoas devem denunciar, vítimas e quem tem conhecimento da existência dessas vítimas. Devem denunciar e a comunidade deve estar motivada para esse trabalho. É fundamental, porque é uma mentalidade e uma cultura que duraram anos ou séculos e que é uma mentalidade comum à sociedade: é na Igreja, nos ginásios, nas escolas, nos seminários.

Portanto, esse tabu de não falar nessas coisas desagradáveis deve terminar, aliás, essa cultura era de tal maneira difundida que no próprio código penal, até há muito pouco tempo, no crime de violação, só poderia haver processo se a vítima se queixasse. Podia haver uma mulher, ou homens, que preferia o silêncio, que não se falasse disso do que haver um processo. Isso passou a ser crime público, ou seja, qualquer pessoa que saiba que isso aconteceu pode fazer a denúncia.

Esta cultura tem de acabar. Um fator que pode ajudar, para que realmente todos os casos sejam tratados, é dizer às vítimas que não se vão queixar a ninguém do clero, ou seja, da Igreja institucional. Não é que eu desconfie de uma Comissão pelo facto de ter lá um clérigo, mas da parte das vítimas é possível que se sintam muito menos à vontade ou não acreditem que o processo vai ter um desenvolvimento capaz.

 

Isso poderá motivar mais as pessoas a denunciar?

Eu acho que pode motivar, sobretudo se as pessoas tiveram experiências negativas nesse campo. Há 40 anos ou há 50 anos, não excluo que se tenham queixado – ou até mais recentemente – e que não tenham visto o processo seguir o caminho que esperavam.

 

A nova comissão independente, que os bispos anunciaram como “grupo específico” para escuta das vítimas, vai passar a responder diretamente à Coordenação Nacional e não à Conferência Episcopal. Como deve ser lida esta decisão?

a decisão que não é a da criação de uma nova comissão. Houve quem propusesse que a Comissão Independente deveria continuar e, sobretudo, que as Comissões Diocesanas ficassem reduzidas, por exemplo, a medidas de prevenção.

Ora é importante que se saiba que as Comissões Diocesanas não são uma criação portuguesa nem da Igreja portuguesa. O Papa Francisco determinou, por outras palavras, ordenou que todas as dissesses tivessem uma Comissão de proteção de menores e não só de menores, mas também de adultos vulneráveis, porque há pessoas que têm doenças psíquicas que também são abusadas.

A própria Conferência Episcopal Portuguesa também deu orientações nesse sentido. Portanto, já nem depende da Igreja portuguesa, foi uma criação de Roma, foi uma determinação que tem de ser cumprida. Portanto, quem pensar que o tratamento destes casos pode sair do âmbito das Comissões Diocesanas está muito enganado, porque não pode ser uma organização civil a tratar disso.

 

Esse grupo específico teria mais a ver com a escuta das vítimas do que propriamente o tratamento canónico das denúncias, não?

Nós tivemos na sexta-feira uma reunião da equipa de Coordenação Nacional e, na quinta-feira, da Comissão do Patriarcado, de que eu também faço parte, em que tudo isso foi abordado. Ainda não há pormenores acerca da competência e do que este grupo vai fazer, especificamente. Aquilo que se disse é que esse grupo foi criado para acolher e acompanhar as vítimas, vai estar em coordenação com a equipa nacional ou, pelo menos, com a minha pessoa. Neste momento, a minha posição é de aguardar mais alguns elementos que me digam como é que vai ser essa coordenação, porque isso depende da competência desse grupo. Convém não falar em comissão, porque seria mais uma e a confusão fica completamente instalada. É simplesmente um grupo, mais nada.

É um grupo específico, com uma função específica, que eu entendo como um grupo para acolhimento e acompanhamento. Agora, mais uma vez, esse grupo vem na linha e é coerente com a ideia de que não há clérigos nas comissões, isto é, a ultrapassar as dificuldades que possam existir, resultado da desconfiança das vítimas em relação ao próprio clero.

 

Acompanhou a apresentação do relatório final, a 13 de fevereiro, e quis intervir para responder a algumas críticas feitas sobre o trabalho das Comissões Diocesanas. A Comissão Independente enviou 25 casos para o Ministério Público, nas Comissões da Igreja esse número é superior. Isso significa que estamos a falar de espaços temporais de análise diferentes? Às Comissões Diocesanas chegam casos mais recentes?

Acho é que é errado comparar os números e o trabalho da Comissão Independente com o das Comissões Diocesanas. Em primeiro lugar, porque a Comissão Independente foi uma comissão para estudo, para levantamento de casos. Portanto, é uma comissão com propósitos históricos e sociológicos –  acho que fez muito bem em existir, foi o presidente da Conferência Episcopal que a criou e subsidiou. Porquê? Porque ninguém pode combater um mal sem conhecer a extensão desse mal. a Comissão Independente fez-nos um grande favor ao dizer: “o que aconteceu foi isto e é isto que não pode continuar a haver”. Agora, as Comissões Diocesanas e este grupo que vai funcionar em colaboração com a equipa de Coordenação Nacional, estão evidentemente virados para o futuro, em receber as notícias, as denúncias ou as queixas que venham a surgir.

Em relação a casos que já são do conhecimento da Comissão Independente, como por exemplo, a lista dos 100 sacerdotes, evidentemente que vão ter de atuar, vão analisar a situação e depois vão orientar o caso para o Ministério Público, se não estiver tudo prescrito ou o agente falecido.

Posso dizer que, por exemplo, na lista que tem a ver com a Diocese de Lisboa constam 25 sacerdotes (24, ndr) . Não se espere que vá haver uma grande revolução neste campo.

Falou há bocado dos 25 casos que a Comissão Independente mandou para o Ministério Público, mas também é bom que se saiba que só seis que deram origem a um processo, que está pendente. Foi um passado negro, não há dúvida, mas a minha preocupação é o futuro.

 

Exagerou-se então, na apresentação do número de 100 sacerdotes, até a julgar pelo que nos disse agora sobre Lisboa?

A Comissão Independente tinha de fazer isto. Não sei se tem os dados todos sobre se [os sacerdotes] estão vivos ou não, embora tenha elementos que lhe permitam supor que nem todos estarão vivos. De qualquer maneira, fez bem em apresentar esta lista.

 

Para lá das polémicas das listas e suspensões, há um conjunto de recomendações que será preciso levar em consideração. Existe essa preocupação sobre uma abordagem estrutural à questão, no futuro?

Está tudo em movimento, para mexer nisto de uma vez por todas. E acho que todos temos de ter a preocupação de conquistar confiança nas Comissões Diocesanas e nos outros organismos, porque só assim é que a Igreja sai bem disto. E essa confiança tem de se conquistar com uma atuação que se vai conhecendo, embora não se anda aí a fazer grande publicidade do assunto, e que crie nas pessoas a convicção de que há finalmente transparência nisto tudo. E, sobretudo, que a atuação não seja uma atuação ambígua, que só tenha como prioridade o interesse das vítimas. A proteção do clero, que pode ser necessária em muitas situações – falei há bocado na presunção de inocência, por exemplo -, vem depois.

 

Por último, uma das críticas que se tem feito à Igreja é a de falta de empatia para com as vítimas e a defesa da instituição. O que vai ser necessário fazer-se para que a perceção da sociedade mude?

Quanto a essa perceção e essa suposta falta de empatia, eu nunca vi isso, com todos os clérigos que contactei, responsáveis, bispos, etc. É preciso que as pessoas se convençam que, quem está nas comissões, atua sem ambiguidade, pode até reagir ao curso de certos processos que desencadeou – são as comissões que mandam para o Ministério Público e que mandam para a diocese ou arquidiocese, para o processo canónico. As Comissões devem criar nas pessoas a certeza de que estão a atuar sem ambiguidades e com transparência.

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