A virtualidade real

Padre Miguel Neto, Diocese do Algarve

Padre Miguel Neto

“Muitas vezes e de muitos modos, falou Deus aos nossos pais, nos tempos antigos, por meio dos profetas. Nestes dias, que são os últimos Deus falou-nos por meio do seu Filho… (Heb 1, 1-2 )”

Quando Jesus iniciou a sua vida pública, começando a difundir os seus ensinamentos, certamente terá parecido estranho a muitos. É verdade que outros o precederam, os profetas, mas o modo como Jesus falava, usando parábolas, reunindo as multidões e recorrendo àquilo que elas conheciam para veicular a Sua mensagem, foi inovador e captou a atenção de muitos, como sabemos pelos evangelhos.

Por estes dias, em que o Covid-19 entrou no nosso vocabulário e transformou as nossas vidas, também as formas como a Palavra continua viva e como a Igreja se faz presente se estão a revelar novos e surpreendentes.

Partindo da ideia – que é um facto assente e indiscutível – de que cada um daqueles que foi batizado é Igreja, todos estamos incumbidos de sermos mensageiros de Cristo, independentemente das circunstâncias ou tempos, das limitações ou imponderáveis que possamos enfrentar. Mesmo que essas limitações sejam um vírus mortal, que nos impede de sair de casa, de nos juntarmos em comunidade física e de celebrarmos fisicamente a memória de Nosso Senhor como Ele nos pediu que fizéssemos.

E não é que isso está a acontecer? Ao invés de a Palavra ficar de quarentena com os crentes, ela está viva e a Igreja tornou-se um espaço vivo de fiéis que testemunham a sua Fé e que a querem partilhar. Onde? Nas redes sociais, das mais diferentes formas: organizam-se orações, eucaristias transmitidas online, catequeses, geram-se conteúdos em páginas paroquiais e pessoais, enfim, tudo se comparte, para que todos se mantenham unidos, em comunidade, num espaço que antes todos confundiam como irreal, por ser virtual e que, agora, finalmente, perceberam que é tão real como o espaço físico e que pode e deve ser usado para expressar a Fé e para a fazer chegar a todos os cantos do mundo onde a rede digital a possa levar. E isto está a ser aplicado e entendido sobretudo pelos sacerdotes, o que tem a maior relevância.

A mudança está em curso, diante dos nossos olhos. Vemos acontecer aquilo que diz António Spadaro (SPADARO, Web 2.0: Redes Sociais, 2013, 7): a rede é um «ambiente comunicativo, formativo e informativo», é algo que promove uma nova visão do mundo, que promove uma nova forma de olhar os outros, porque é «um ambiente “cultural” que determina um estilo de pensamento e cria novos territórios e novas formas de educação, contribuindo para definir também um modo novo de estimular as inteligências e de construir o conhecimento e as relações» . E eu acrescento, a Fé.

Todos somos livres para gostar ou não gostar de algo; todos podemos e devemos declarar as nossas dúvidas e preocupações relativamente a tudo, sobretudo às mudanças que podem trazer problemas e inconsistências. Mas a verdade é que as dúvidas que tanto manifestámos ao longo dos últimos anos e as resistências que tanto criámos, agora se comprova que certamente não farão sentido, pois enquanto cristãos, não nos podemos alhear de uma realidade que simplesmente existe, que é um facto, que convive quotidianamente connosco e com os demais. A rede está aí e é um desafio. A rede está aí e está a ser útil para que não percamos os laços que nos unem e demos testemunho da esperança que nos une e que tem um nome: Jesus Cristo. É virtual, mas completamente real. E é nela que estão os homens e as mulheres de hoje

Cabe-nos usá-la com discernimento e comprometidamente, como mais um ambiente dos muitos que compõem o quadro da nossa existência e de modo a incrementar a nossa vida em comum, a nossa partilha em comunidade. Como dizia Bento XVI, na XLV Mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais, «as novas tecnologias da comunicação pedem para ser postas ao serviço do bem integral da pessoa e da humanidade inteira. Usadas sabiamente, podem contribuir para satisfazer o desejo de sentido, verdade e unidade que permanece a aspiração mais profunda do ser humano».

Sophia de Mello Breyner Andresen na sua “Cantata da Paz”, escrita num período em que se exigiam grandes transformações no nosso país (e no mundo), transformações suficientemente significativas para mudar mentalidades, relações, economia, política e tantas outras dimensões da nossa sociedade e tão grandes como as que agora se nos afiguram que existirão, apontava um caminho: «Vemos, ouvimos e lemos/ Não podemos ignorar» . Spadaro defende: «O ser humano não permanece imutável em seu modo de manipular o mundo: são transformados não só os meios com os quais comunica, mas também o próprio homem e a cultura». E será com estes meios que poderemos contruir um mundo melhor, porque neles podemos mostrar o lado mais luminosos da humanidade e não apenas o lado mais negro, como diz Edgar Morin numa entrevista ao jornal L’OBS, a propósito do coronavírus e das suas consequências, desintoxicando-nos do nosso modo de vida acomodado e em que o testemunho tinha um lugar e um espaço muito restrito: o da Igreja e das suas atividades.

A rede, enquanto espaço comunicacional, bem como os canais que lhe são característicos (Internet e novos media), são parte integrante da cultura, do mundo real. A Igreja, neste tempo de crise, parece reconhecer isso mesmo e, consequentemente, a necessidade de dominar a linguagem própria destes canais, agindo agora os sujeitos participantes de toda a comunidade cristã imbuídos de uma consciência e desejo autênticos de se envolverem e de não serem meros espectadores, ou seja, de serem, como propõe o Evangelho, semeadores (Mt 13, 3-9), que querem legar aos homens a Boa Nova e, também no ambiente virtual, fazê-los conhecer Jesus, caminho, verdade e vida. Até, porque, desde o início, a Igreja constituiu-se como uma sociedade em rede: primeiro com Jesus e os discípulos, depois alargando-se a muitos grupos de seguidores e espalhando-se, ao longo dos séculos, pelo mundo inteiro, sendo as paróquias os nós mais próximos dos indivíduos que, pelo batismo, deixaram de estar sós para viver na rede…

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Agência ECCLESIA

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