Unidade e colaboração sem subserviência

D. Antonino Dias, bispo de Portalegre-Castelo Branco

Fotos: Agência ECCLESIA

“Lavai-vos, purificai-vos” porque “as vossas mãos estão cheias de sangue”. Este é o apelo de Isaías ao povo de Judá no século oitavo antes de Cristo (Is 1, 15.16). Este continua a ser o apelo a matraquilhar na empedernida caixa timpânica dos nossos tempos. Infelizmente, e apesar do desenvolvimento da ciência e do progresso civilizacional, os ouvidos humanos estão cada vez mais duros e surdos: o martelo, a bigorna, o estribo, a trompa de Eustáquio e companhia foram-se às malvas, moucaram, entupidos que estão com a infindável cera das tropelias! Tantos gritos dolorosos de gente espezinhada, perseguida, refugiada, maltratada e morta por mãos cuidadas por especializadas manicures e ensanguentadas com o sangue dos frágeis e inocentes que não lhes merecem atenção. O preconceito racial, as ideologias tóxicas, a mania das superioridades, os fundamentalismos fanáticos que matam em nome de Deus, a indiferença perante o sofrimento de uns e a prepotência de outros, os imperialismos doentios, a ilusão das linhagens e das grandezas, tudo isso e o que mais for reclama capacidade para desmontar sistemas de opressão, defender a justiça, promover a fraternidade.

No tempo de Isaías, o reino de Judá vive uma época de grande prosperidade económica e independência política, tem uma atividade religiosa intensa, realiza festas grandiosas, tem culto pomposo nos santuários. Tudo parece correr às mil maravilhas e de vento em popa, mas tudo mascara uma situação bem diferente na ordem social e espiritual. Reinavam as injustiças, a arbitrariedade dos juízes, a corrupção das autoridades, a cobiça dos grandes proprietários, a opressão dos governantes, a segurança dos ricos que ofereciam sacrifícios no templo e rejeitavam os pobres como se a riqueza fosse uma bênção e a pobreza um castigo. Eivada por este ambiente, a religião torna-se formal e ritual, entrelaçada entre o poder civil e religioso sem que alguém se levante a denunciar o mal-estar e a iniquidade existentes. Esta triste situação agrava-se com o reaparecimento de uma grande potência, a Assíria, que pressiona Israel e Judá para serem seus vassalos. O profeta Isaías enche-se de brios, tira as mãos dos bolsos, pega no ‘megafone’ e sai-lhes a caminho. Denuncia a hipocrisia reinante, denuncia a oferta de sacrifícios faustosos no templo enquanto se oprime o pobre, denuncia as más estruturas políticas, sociais e religiosas, insurge-se contra os líderes corruptos, defende os desfavorecidos, condena a aliança com as grande potências, combate os ídolos presentes na sociedade, enraíza o direito e a justiça exclusivamente em Deus, mostra que a nação só será salva se permanecer fiel a Deus e ao seu projeto que tem a justiça como valor supremo.

Hoje, a coragem profética é agulha no palheiro, é coisa da qual estamos muito pobres. Apesar do bem que têm feito, as Igrejas cristãs “em muitas partes do mundo, percebem como se acomodaram diante de normas sociais e como se calaram e foram cúmplices no que diz respeito à injustiça social”. Criaram divisões entre si, divisões que, embora em processo de aproximação à unidade, ainda têm dificuldade em descer das suas razões e se abrirem a Cristo que deu a vida e reza para que todos sejam um, como Ele e o Pai são um (Jo 17, 20-24). Apesar deste dinamismo das Igrejas cristãs, apesar desta mudança, embora lenta, de mentalidades e vontades, ainda há quem corra e se canse optando pelo direção oposta àquela que conduz à meta. Por aí é que ninguém vencerá! Se as Igrejas têm o dever de cumprir as leis justas e colaborar na construção do bem comum, não podem viver subservientes ao poder reinante seja ele qual for. Cada um no seu lugar e na sua missão. Por estes dias, fomos espectadores de um presidente mui religioso, numa sozinha e aparente serenidade de meter dó, com direito a um pontifical só para si, com um líder religioso conivente na pomposidade desse culto, mas ambos de mãos orgulhosamente sujas de sangue apostados que estão na destruição de um povo, de irmãos! Conforme a entrevista ao jornal Corriere della Sera, o Papa Francisco terá dito ao líder religioso de Moscovo: “Irmão, não somos clérigos do Estado, não podemos usar a linguagem da política, mas sim a de Jesus”. A linguagem e o caminho de Jesus outros não são senão os de fazer o bem sem olhar a quem, lutando pela justiça e pelo bem comum: “Felizes os perseguidos por causa da justiça: deles é o Reino dos Céus” (Mt 5,10).

A unidade e o bem-estar social reclamam verdade, justiça e liberdade. Esta tarefa é um desafio para todos, também para as Igrejas cristãs chamadas a ouvir os gritos dos que sofrem e a denunciar as estruturas que criam e alimentam a injustiça. “Se as Igrejas unirem as suas vozes à dos oprimidos, o seu grito de justiça e de libertação será ampliado”.

Nesse sentido, o tema proposto para a Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos deste ano de 2023, que decorre de 18 a 25 de janeiro, baseia-se em Isaías 1, 27: “Aprendei a fazer o bem, procurai a justiça, chamai à razão o espoliador, fazei justiça ao órfão, tomai a defesa da viúva”. Os responsáveis pela iniciativa já nos fizeram chegar o Guião do qual me estou a servir, como também me sirvo do Livro de Isaías e seu comentário bíblico. O Guião traz uma reflexão sobre o tema e material de apoio para viver essa semana como um “tempo perfeito para os cristãos reconhecerem que as nossas Igrejas e confissões não podem ficar separadas por conta das divisões que existem dentro da mais ampla família humana. Orar juntos pela unidade dos cristãos permite uma reflexão sobre aquilo que nos une e nos compromete para enfrentar a opressão e a divisão vivida na humanidade”. A justiça exige “um tratamento verdadeiramente igualitário para corrigir a desvantagem histórica baseada na ‘raça’, no género, na religião ou no ‘status’ socioeconómico”.

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