SABER APRENDER – A discernir os sinais dos tempos

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

Imagina um mundo em que uma máquina garante que todas as pessoas conseguem comunicar com todas as outras através de um ecrã. Em 1909, para E. M. Forster, este mundo que vivemos durante o confinamento gerado pela pandemia em 2020, só poderia ser fruto da sua imaginação. Mas na sua pequena história futurista, um dia, a máquina pára e a humanidade é confrontada com a necessidade de um encontro novo com a realidade. Forster sabia ler os sinais dos tempos.

Foto de CardMapr em Unsplash

Com a renovação que o papa Francisco pretende fazer na linha do Concílio Vaticano II à Cúria Romana, um dos aspectos é a abertura aos leigos para assumirem posições de governo e responsabilidade. Mas esses leigos devem distinguir-se pela sua vida espiritual, boa experiência pastoral, vida sóbria e amor aos pobres, permeados de um espírito de comunhão e serviço e possuírem a capacidade de discernir os sinais dos tempos. Esta capacidade é fundamental para “evangelizarmos juntos” num mundo movido pela tecnologia.

Não existem muito segundos da nossa vida que não envolvam alguma tecnologia. Desde o despertador que nos acorda à luz que apagamos, só mesmo quando dormimos não lidamos com tecnologia (a não ser que soframos de apneia). A vida e a tecnologia estão a basear-se cada vez mais nos mesmos fluxos de informação. Kevin Kelly, um dos fundadores da conhecida revista Wired, chama ao sistema de tecnologia que interconecta tudo no mundo, e que vibra à nossa volta (e quantas vezes no bolso), o technium. É como se a tecnologia possuísse vida própria. Kelly diz que — «o technium quer o que nós projectamos que queira e como nós o orientamos. Mas juntamente com esses impulsos, o technium possui os seus desejos. Quer perceber-se a si mesmo, estruturar-se com níveis hierárquicos, tal como a maioria dos grandes sistemas, profundamente interconectados, faz. O technium também quer o mesmo que todo o sistema vivente: perpetuar-se e sobreviver. E conforme cresce, os desejos inerentes ganham complexidade e força.» Quando os desejos da tecnologia tornarem-se necessidade e nós, humanos, estivermos no meio do caminho, o que nos acontecerá?

A tecnologia é um bem como expressão da nossa criatividade e co-criação com Deus. Mas se cedemos ao que a tecnologia quer, teremos ainda livre-arbítrio? Um exemplo concreto. Quando proponho a alguém que apague as suas contas das redes sociais, raramente encontro quem tenha coragem de o fazer. E apresentam-me muitos motivos para estarmos presentes nas redes sociais. Mas eu questiono-me se não será antes um apego e a pessoa deixou de ser livre. Para testar bastaria viver sem essas redes durante todo o período da quaresma e, no fim, avaliar se, de facto, são uma tecnologia que traz um valor acrescentado à sua vida. Esta filosofia típica do minimalismo digital volta a colocar no centro das nossas escolhas e discernimento os valores em vez justificar os apegos com valores.

A leitura dos sinais dos tempos para nos ajudar a discernir os caminhos de evangelização a seguir no século XXI não passa por cedermos às tecnologias, pois, é assim que o mundo funciona. O raciocínio mais comum é o de que se as pessoas estão nas redes sociais, então, nós também devemos estar, bem como a Igreja deve estar. Mas por que razão não pensar o contrário? Isto é, se as pessoas estão nas redes sociais e sabemos que essas são uma tecnologia de manipulação de massas, então, por que não tirá-las de lá? Será que a realidade física e a cultura do encontro face a face perdeu o seu encanto?

No passado, a tecnologia de comunicação era um complemento que trazia valor ao que vivíamos, mas nesta Era Digital tornou-se o foco principal de atenção de muitas pessoas. Recentemente, viajei de comboio e pude observar o comportamento das pessoas à minha volta (e até o meu) voltados para os nossos ecrãs e pensei — a tecnologia domina a nossa atenção e a solitude de contemplar a paisagem já não atrai. Quantas pessoas não vi a olhar para o ecrã do seu telemóvel, guardavam-no no bolso e não aguentavam mais do que um minuto até voltar a olhar para o ecrã.

Estes sinais dos tempos mostram como é importante pensar bem no relacionamento que temos com a tecnologia para não nos tornarmos os seus (da tecnologia) dispositivos. Jaron Lanier (um dos fundadores da realidade virtual), por exemplo, argumenta que as redes sociais reduzem-nos como pessoas para usufruirmos dos seus serviços. O preço do uso gratuito é a nossa atenção e privacidade. Ele dá o exemplo das pessoas que dizem ter milhares de “amigos” no Facebook. Ora, essa ideia só faz sentido se reduzirmos o valor da amizade. Pois, uma verdadeira amizade deveria introduzir cada pessoa à inesperada estranheza do outro, diz Lanier — «cada pessoa que conhecemos é um poço de inexplorada diferença na experiência de vida que não pode ser imaginada ou “acessada” de qualquer outro modo que não seja através de uma genuína interacção.»

Saber aprender a discernir os sinais dos tempos implica estarmos atentos ao modo como deixamos que a tecnologia afecta a nossa vida profunda. Num mundo onde o tempo que gastamos com Apps ascende a quase um terço do tempo em que estamos acordados (ver relatório; da data.ai), o contacto que um ser humano tem com uma paisagem programada é imenso. E como diz o especialista dos media Douglas Rushkoff — «na emergente, altamente programada paisagem à nossa frente, ou tu criarás o software ou serás o software. É realmente assim tão simples: programa ou sê programado.» Nunca o discernimento do modo como podemos testemunhar a nossa fé aos outros dependeu tanto de como nos relacionamos com a tecnologia, sendo sábios em ler os sinais dos tempos. A tecnologia é boa, mas não podemos ceder a tudo o que essa quer. Há que preservar a nossa vontade para a oferecer livremente a Deus, de modo a criarmos dentro de nós o espaço para acolher a Sua vontade. E se Ele incarnou, assumindo um corpo numa realidade física, seria importante reflectir se o caminho tecnológico que seguimos não estará a des-incarnar-nos da realidade e a afastar-nos do caminho que Deus escolheu para estar próximo de nós. A proximidade genuína não é virtualizável.


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