Retirei-me

Lígia Silveira, Agência ECCLESIA

Confesso não ter sido fácil, mas em boa hora decidi retirar-me por uns dias. O calendário da tradição litúrgica da Igreja católica convidava a parar mas são tantos os anos em que o calendário tem passado por mim mas eu não passo por ele. Um amigo disse-me esta verdade que eu fui confirmando na vida: «A Quaresma tem um programa próprio e a seu tempo surpreende-nos».

Este ano, a surpresa do tempo veio acompanhada por uma autora, já lida e que descansava na prateleira entre colegas escritores: Etty Hillesum, o seu Diário, as Cartas publicadas e o desafio de com ela rezar a Quaresma.

Deixar que seja a natureza, quer do corpo quer do contexto, a guiar os dias, foi para mim o primeiro passo. Também a jovem judia, mestre espiritual, não fugiu do que sentia, mas foi aos poucos, procurando silenciar o interior para entregar, e ordenar, o que estava a viver.

«Etty juntou o jasmim e os pés gastos» – o espaço silencioso (que já era oração) que aprendeu a criar e depois a necessitar, uniu-o à contemplação, à beleza no mundo afirmada, sem qualquer dúvida, naquele ano e meio no seu Diário, apesar da eliminação massiva do ser humano – «Acho a vida prenha de sentido, apesar de tudo».

A palavra que no início tateava e colocava entre aspas, foi ganhando a forma de relação, foi para Etty a certeza em dias que se tornavam evidentes e dos quais não quis fugir. Naquele tempo, aprendeu a retirar-se, a ficar imóvel e a escutar: «A minha vida tornou-se um diálogo ininterrupto contigo, ó Deus, um grande diálogo. Às vezes, quando me posto nalgum canto do campo, com os meus pés plantados na tua terra e os meus olhos erguidos para o teu céu, o meu rosto fica inundado de lágrimas, lágrimas de profunda emoção e gratidão».

Quando decidiu que fugir da perseguição nazi não era para si uma opção, que também entre os barracões, a lama, o frio, o choro ininterrupto das crianças retiradas às suas mães, a desumanidade inexplicável, haveria de encontrar Deus, Etty tornou-se esmola. Quando discutiu com amigos que a queriam ajudar e decidiu não ficar sequestrada no medo – que para si significava já a morte – percebeu que não seria Deus a salvá-los, mas que teriam de ser mãos humanas a mostrar que também ali estava Deus. «Não és tu quem nos pode ajudar, mas nós quem pode ajudar-te – e ao fazer isto, ajudamo-nos a nós mesmos».

Quando Etty assume que o seu destino é viver no campo de trânsito de Westerbork, aguardando a sua chamada para o comboio que a levará para Auschwitz, o campo de concentração do extermínio, ajudando quem se cruza consigo, cuidando dos doentes, escrevendo cartas para familiares, ou perscrutando sinais de humanidade nos jovens guardas do campo, a jovem judia 29 anos faz jejum ao ódio. «A podridão dos outros também está em nós. Eu não vejo outra solução, não vejo outra solução senão voltar-me para dentro e arrancar toda a podridão que ai reside. E deixar de acreditar que podemos mudar alguma coisa no mundo, se não nos mudarmos primeiro a nós próprios. Isso parece-me ser a única lição a aprender com esta guerra».

«Ontem à noite, senti de repente que a minha paisagem interior era como um vasto campo de milho a amadurecer… dentro de mim há campos de milho, que vão crescendo e amadurecendo».

Se este não for um caminho quaresmal…

E nestes dias tive a certeza que Etty é para todos: crentes e não crentes, adultos na fé e crianças a aprender a falar, analfabetos de razões ou inteligentes de sentidos, pessoas que nunca encontraram Deus e outros que se reconciliam com ele. Etty, que funciona como um espelho, é para todos!

PS: O meu obrigada à Mariana Abranches Pinto que ajudou a desabrochar e a regressar à Etty.

PS1: O seu lugar na prateleira vai ficar vago por algum tempo, enquanto os seus escritos repousam na cabeceira, ao meu lado, para me lembrar e desafiar a cada dia.

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