Portugal: Muitas famílias têm «dificuldade em colocar pão na mesa» – Paulo Gonçalves

Na Semana em que a Cáritas Portuguesa apresentou a sua nova campanha, ‘Doar Com Certeza’, e os resultados do Programa ‘Vamos Inverter a Curva da Pobreza’, é convidado da Renascença e da Agência Ecclesia, Paulo Gonçalves, presidente da Cáritas Diocesana do Porto

Foto: RR/Henrique Cunha

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Agência Ecclesia)

 

Nos últimos três anos, a Cáritas acompanhou mais de 31 mil pessoas e deixou apoios superiores a 700 mil euros. Era uma emergência reforçar este canal de ajuda por força do agravamento das situações sociais?

Sim, indiscutivelmente porque nós vivemos numa crise social em permanência desde a pandemia. E esta campanha da Cáritas Portuguesa que tem a designação vamos inverter a curva da pobreza apoiou grosso modo de 31 mil famílias, 47% das quais em situação de desemprego. Mas depois há um conjunto de apoios suplementares, que confesso que me preocupam particularmente, porque estamos a falar de 20% de famílias apoiadas neste período, que têm emprego, mas o salário não é suficiente para suportar as suas obrigações.

Temos depois 9% de reformados cujas reformas são de tal forma baixas que, de facto, têm muita dificuldade de sobreviver até final do mês. Depois temos as pessoas com baixa médica e outras situações similares, mas objetivamente, o que acontece é que as instituições, como a Cáritas estão no seu limite, porque todos os dias são chegam novos pedidos de ajuda. E a verdade é que os apoios não têm aumentado, pelo contrário, até têm diminuído e compreende-se que assim seja.

 

Nós temos na comunicação social dado particular atenção à questão da habitação. É um problema que se acentuado?

Esse é o problema, porventura, mais complexo de todos. Eu, procurando citar assim de cor, diz o nosso artigo 65 da Constituição, que todos têm direito para si, para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar. Julgo que, grosso modo, será uma coisa mais ou menos assim.

Ora, o Estado tem falhado a toda a toda a linha. Como é que um jovem hoje, com os salários tão baixos existentes em Portugal ou praticados em Portugal, pode sair de casa dos pais e constituir família e, objetivamente, ter uma vida digna? Os problemas começam muitas das vezes, exatamente, aqui. Nós queixamo-nos muitas vezes que o país está a envelhecer. Aliás está a envelhecer a um ritmo mais acelerado do que nos próprios parceiros da União europeia, porque nós temos uma habitação muito cara, o que leva a que os jovens saiam cada vez mais tarde de casa dos pais e temos uma taxa de natalidade historicamente baixa. Está tudo cruzado. Isto é um problema de difícil resolução e que, de uma vez por todas, deve ser atacado.

 

No Porto, tem crescido muito o conjunto de pedidos de ajuda, sobretudo da população imigrante. Esse problema subsiste?

Subsiste e veio para ficar. Objetivamente nós, no final do ano passado, já tínhamos mais de 750 mil imigrantes no nosso país. Muitos deles viviam da economia informal, o que equivale a dizer que não têm qualquer tipo de proteção. Em situações limite, vão bater à porta de instituições com o perfil da Cáritas. Para nossa grande surpresa, muitos deles têm dificuldade de se legalizar em Portugal. Têm muitas dificuldades em serem atendidos, por exemplo na Segurança Social. Surgem-nos todos os dias novos casos, na Cáritas, de imigrantes que naturalmente estão completamente desprotegidos, não têm qualquer tipo de retaguarda. E muitas vezes vivem em situações perfeitamente desumanas, no nosso território, não é? Todos nós temos conhecimento de dezenas de imigrantes que vivem numa única habitação em condições muito precárias.

 

 

Com o preço do metro quadrado muito alto, não é? 

Com preços completamente exorbitantes. Volto a dizer, a nossa Constituição defende uma habitação digna e de dimensão adequada para todos. Se em nada mais falhasse a Constituição, aqui falha em toda a linha.

 

Será que, tendo em conta essa situação, a tendência seja de aumento de pessoas em situação de sem abrigo? O apoio destas instituições de apoio aos sem-abrigo também está a sofrer com o problema da falta de dinheiro das famílias que habitualmente ajudavam? Tem notado esse problema? Como é que têm procurado ajudar?

Eu diria que as autarquias desempenham um papel absolutamente fundamental. A Cáritas Diocesana do Porto tem a particularidade de ter intervenção direta em 26 cidades. A Diocese do Porto é a maior do país e a verdade é que as autarquias, seja de Amarante ou de São João da Madeira, têm desempenhado um papel muito importante nesse domínio. A Cáritas, no fundo, aquilo que procura fazer é incorporar esta rede de apoio aos sem-abrigo e intervir sempre que necessário.

Nós nos últimos anos temos concentrado muito a nossa atenção em tudo que tem a ver com a área da saúde. Parece-nos que é uma área absolutamente crítica. Nós temos um excelente Serviço Nacional de Saúde, mas depois, nos serviços complementares, o Estado falha, e falha em toda a linha. Só para terem uma ideia, nós (Cáritas) neste momento temos cerca de 700 equipamentos cedidos na diocese, porque se alguém precisa de uma cadeira de rodas ou uma cama articulada, o Estado pode demorar 3, 4, 5 anos a responder. A Cáritas, nesse domínio em particular, está completamente na linha da frente.

Nós temos estado na linha da frente do apoio, na área da saúde, mas naturalmente também em tudo o que tem a ver com a área alimentar, a área dos sem-abrigo: trabalhamos em rede, porque entendemos que deve ser assim. As Instituições devem colaborar de forma ativa para, no fundo, poder prestar um melhor serviço à comunidade. É este o meu entendimento, é este o entendimento da Cáritas e é isso que procuramos fazer com outras Instituições. O que importa é conseguirmos assegurar uma resposta de qualidade à comunidade.

 

A Cáritas tem dito que vivemos uma emergência desde a pandemia e que não saímos dela. Estamos ainda perante momentos tormentosos, como dizia, há pouco mais de três meses?

Sim, porque nós podemos olhar para os números de duas formas distintas. O Governo anunciou por estes dias que, desde 2020, 170 mil pessoas saíram da situação de pobreza e que o objetivo é que, até 2030, 700 mil portugueses saiam também eles da situação de pobreza. Contudo, a verdade é que um em cada quatro portugueses vive com menos de 700 euros por mês.

Nós tivemos dois anos de pandemia que afetaram a nossa sociedade, e o mundo em geral, de uma forma muito particular. Depois disso, tivemos ou temos tido taxas de inflação historicamente altas. Felizmente, começam a normalizar.  As taxas de juro dispararam o que equivale por dizer que o crédito à habitação, todos os créditos que as famílias tinham dispararam, e, portanto, aumentaram de forma muito expressiva nos últimos meses. A única boa notícia é que nós temos neste momento em que temos uma taxa de desemprego historicamente baixa na ordem dos 6%, porque todo o resto… Temos famílias endividadas, grandes dificuldades do ponto de vista da habitação, e depois, naturalmente, o dinheiro não chega até ao final do mês. Temos muitas famílias que, a partir de determinada altura do mês, têm muita dificuldade em colocar pão na mesa. E é isso que nos devia preocupar a todos.

 

Nesse contexto, gostava de perguntar como é que olha para o compasso de espera na definição da estratégia de combate à pobreza? O Estado tem feito intervenções pontuais face à escalada da inflação, mas apesar a perceção geral é que o número de pessoas em situação de pobreza ou em risco de pobreza continua a aumentar. Onde é que se está a errar nesta estratégia?

Eu diria que a máquina do Estado é extremamente burocrática, e demora muito, muito, tempo a reagir. Eu Não quero dizer que os políticos não tenham boa vontade. Naturalmente, quererão fazer o melhor pelo seu país, pela sociedade portuguesa, mas a verdade é que muitas das vezes os serviços do Estado têm tantos espartilhos que para se definir uma estratégia e se fazer chegar o apoio à população propriamente dita, demoram meses, demoram anos. Volto a insistir no material ortopédico, em que a Cáritas Diocesana do Porto tem tido uma intervenção importante no dia a dia; o Estado pode demorar 3 a 5 anos a responder a uma família. Isto é desesperante. Nós temos de uma vez por todas repensar o próprio país. Porque nós olhamos, às vezes, para alguns fenómenos e que nos orgulham a todos, mas depois há sempre o reverso da medalha. Todos os dias falamos com muito orgulho que temos a geração mais qualificada de sempre, mas o ano passado emigraram 65 mil portugueses. E praticamente 50% dos que emigraram tinham curso superior. Eu quase que diria: que país é que nós queremos?

Nós passamos muito tempo a debater dogmas quase que diria de natureza partidária. Eu venho do mundo empresarial e eu objetivamente o que acho é que o país precisa de criar riqueza. Precisa criar riqueza, mas depois essa riqueza também tem de ser distribuída, porque nós todos os dias estamos a criar novos pobres.

 

Enquanto insistimos muito neste modelo de baixos salários…

O salário mínimo nacional tem vindo a sofrer reajustes importantes no passado recente, mas verdade é que, de um momento para o outro, a classe média em Portugal desapareceu. Há uma pobreza envergonhada que vai surgindo todos os dias, pessoas que tinham uma vida relativamente estável, que tinham as suas obrigações, o crédito automóvel ou ou a prestação da casa, mas taxas de juro aumentaram de uma forma quase me atreveria a dizer absurda, no passado recente e essas famílias não têm como… chega ao meio do mês e não têm como alimentar a família, como pôr comida na mesa para os seus filhos. Esta é a nossa realidade.

 

Vivemos num país com grandes assimetrias que também se verificam ao nível dos rendimentos. De acordo com o Estudo “Melhores municípios para viver”, Portugal registou um aumento geral considerável das desigualdades de rendimentos que são mais acentuadas nos municípios do litoral e de maior dimensão. Tem uma perceção desta realidade?

Sim, em particular nas grandes cidades, uma vez mais muito associado ao aumento dos custos da habitação. A Cáritas Diocesana do Porto tem intervenção em 26 cidades, a diocese não é heterogénea, naturalmente. Há cidades que têm comportamentos, desempenhos muito diferentes umas das outras, mas a cidade do Porto, porventura a cidade de Gaia, acidade da Maia, terão um conjunto de problemas substancialmente mais complexos, por exemplo, do que em Amarante, ou Felgueiras ou na Lixa…

 

Problemas que se agudizam ainda mais quando há grande desigualdade ao nível dos rendimentos…

Exatamente. Quando vamos para o mais para o Interior do país, os custos de habitação muitas vezes são menos expressivos – ainda que estejam a aumentar de uma forma também assustadora, no passado recente -, muita das vezes há agricultura de subsistência, há um conjunto de outros instrumentos, diria assim. A comunidade funciona melhor, é mais próxima, quando vamos para as grandes cidades, os problemas tendem a tendem a agravar-se.

 

Durante os anos da pandemia, a Cáritas abriu o programa ‘Inverter a Curva da Pobreza’, de apoio à rede nacional, o qual “permitiu reforçar a capacidade de resposta das Cáritas Diocesanas às famílias mais vulneráveis”. Qual a importância deste programa, nos últimos três anos, e que problemas persistem?

A importância foi muita, quanto mais não seja é traduzida por 31 mil famílias que foram apoiadas neste período, com 700 mil euros de apoio. Será seguramente muito menor do que aquilo que nós gostaríamos de ter assegurado, mas os problemas persistem de tal forma que a Cáritas portuguesa resolveu prolongar esta campanha, pelo menos, até final de 2023. Efetivamente, nós não estamos a conseguir inverter a curva da pobreza. Por muito que possamos olhar para os números e, com alguma cosmética, dizer que desde 2020, 170 mil portugueses saíram da situação de pobreza… a verdade é que nós vivemos em clima de tensão social de uma forma permanente.

 

A intenção de criar este programa nacional permanente de emergência social mostra, de facto, que a crise está para está para ficar. A Cáritas denuncia uma crise social quase permanente, desde a pandemia. Voltando à questão da necessidade de se definir uma estratégia nacional de combate à pobreza, não considera que essa estratégia já devia ter sido definida? Já deveria estar a ser implementada?

Acho que ninguém terá dúvidas disso, o próprio Governo, o Estado, não terão dúvidas que isto é uma corrida contra o tempo, porque todos os dias em que bater à porta de uma qualquer instituição alguém com fome ou completamente desprotegido, naturalmente o Estado está a falhar.

A estratégia já deveria estar mais do que definida e os Serviços Sociais já tinham de estar no terreno, porque a situação agrava-se dia após dia.

 

A Cáritas Diocesana do Porto, em algum momento, foi ouvida sobre a definição dessa estratégia? 

Não, tem sido ouvida a Cáritas Portuguesa e parece-me bem. A Cáritas portuguesa tem um papel muito importante porque representa toda a rede, constituída por 20 Cáritas Diocesanas e, portanto, parece-me bem que o Estado, quando tem de auscultar uma entidade com esta relevância, centre as suas atenções na Cáritas Portuguesa, que tem a preocupação de estar em contacto diário com as Cáritas Diocesanas. Desse ponto de vista, acho que estou tranquilo, descansado, o diagnóstico já está feito, mas os apoios sociais estão a sair a conta-gotas, de forma avulsa, quando há mais ou menos pressão social. Deveríamos ter uma estratégia efetivamente integrada, que respondesse às questões da habitação, da pobreza e a um conjunto de outros problemas que vão surgindo no dia a dia.

Eu vou antecipar outro: estamos a um mês e pico de sabermos os resultados do acesso ao Ensino Superior. Deus queira que não tenhamos centenas ou milhares de alunos, que andaram a estudar nos últimos anos, para atingirem uma meta, no fundo cumprir um sonho de uma vida e, pelas questões das propinas, financeiras, de habitação, tenham de desistir do seu curso superior. Tem acontecido de forma mais recorrente, no passado recente, do que nós gostaríamos. Volto a dizer que estamos a desperdiçar talento e, a médio prazo, estamos a contribuir para o empobrecimento do próprio país.

 

Esse receio baseia-se nalguma perceção anterior?

Tem acontecido no passado recente e todos os problemas que existiam têm-se vindo a acentuar: a inflação, o custo médio de vida ou a própria habitação. Os custos dispararam, vamos tendo conhecimento de alunos que já estão à procura de quartos, nomeadamente nas grandes necessidades, que podem custar 400, 500, 600, 800 euros… muitas das famílias, infelizmente, não podem suportar esses custos.

 

 

A subida das taxas de juro mostra que a Europa está mais preocupada com as Finanças do que com os seus valores humanistas? Como é que se explica essa tendência num país como o nosso, em que os salários são baixos?

Devemos ser mais incisivos nas perguntas que às vezes fazemos à senhora Largarde, para todos os efeitos: aquilo que nos disse, nas últimas semanas, é que os portugueses até ganham muito, não é? E eu gostava que a Europa, como nós a conhecemos e que nasceu no pós-II Grande Guerra, não perdesse a sua raiz, não perdesse a sua matriz, não perdesse os seus valores. A Europa tem sofrido alterações muito profundas no passado recente, muitas vezes damos primazia às questões financeiras, às questões económicas do que propriamente aos valores e à humanidade. Gostaria que possamos todos refletir sobre isso e pudéssemos voltar à matriz europeia, mas tenho dúvidas que isso efetivamente aconteça.

 

Mas a verdade é que Christine Lagarde apontou a possibilidade de nova subida de taxas de juro, nos próximos tempos, nomeadamente em setembro é provável que subam +0,25%…

E já sabemos o que é que vai acontecer…

 

A explicação que deu que, a que se referia há instantes, para clarificar, é que a senhora Lagarde acha que as taxas de juro têm de subir, porque os salários também estão a subir muito…

Sim, mas a base dos aumentos das taxas de juro estava diretamente associada a uma inflação galopante que tivemos, em particular no último ano. A inflação em Portugal está nos 3, 3,5%, começa a ser normalidade. Na própria Europa, a taxa de inflação começa a diminuir, a chegar a valores razoáveis, diria. Esta escalada das taxas de juro, um dia destes, vai ter de ser estancada, não é? Porque, para todos os efeitos, nós ou pagamos as obrigações com o Banco ou passamos fome. Encontrar um equilíbrio, aqui, é que está a ser difícil nesta altura.

 

E, para quem vem do mundo empresarial, também se percebe que procura já não é assim tanta que provoque uma onda inflacionista como aquela que temos assistido…

Não é, aliás, ouvimos dizer que estamos em recessão na Europa. A maior parte dos mercados europeus estão numa situação económica de anemia, diria assim. Volto a dizer que não sou economista, não sou especialista, nem nada que se pareça, mas parece-me que se continuarmos a aumentar de forma tão expressiva as taxas de juro, vamos ter cada vez mais famílias em dificuldade e não sei até que ponto vamos reverter este fraco desempenho económico, que é comum a praticamente todos os países europeus.

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Agência ECCLESIA

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