Palavras de dois papas

António Salvado Morgado, Diocese da Guarda

Enquanto escrevo, neste momento do dia 8 de Maio, há milhares de peregrinos a caminho de Fátima. E lembro o dia de ontem, o “Dia da Mãe”, o dia em que muitos destes peregrinos terão deixado as suas terras e se lançaram a caminho. Entre eles, certamente muitas mães a pensar nos filhos e por eles rezar, e muitos filhos a pensar nas suas mães e por ela rezar.

E será assim nestes dias próximos. As nossas estradas vestem-se de caminhantes coloridos. Em marcha da fé e em marcha da esperança. E em marcha da caridade. Porque é também uma marcha em comunidade, onde se espelha a fraternidade.

Nestes dias não haverá cidade alguma de Portugal de onde não saia um grupo de caminhantes peregrinando em direcção ao Santuário de Fátima. E a 12 e 13 será um mar de gente a encher aquele recinto.

É assim todos os anos. E foi assim que aquele Santuário recebeu já quatro papas, vindos de Roma, também em peregrinação. Foi assim que me vi envolvido por uma atmosfera orante, meia do céu e meia da terra, como se ali afluísse toda a Humanidade, com gente de todas as nações, com a presença do Papa Bento XVI, em 2010 e com o Papa Francisco em 2017. O primeiro no 10.º aniversário da beatificação de Jacinta e Francisco, os pastorinhos de Fátima. O segundo, no centenário das aparições, para os canonizar. E vi então lágrimas em muitos rostos. Não de quem chora. Mas lágrimas de quem vive um momento sereno de transcendente intensidade, humanamente impossível de conter. Serão lágrimas de fé. E, talvez, lágrimas de penitência, também.

De Bento XVI, evoco aqui palavras no encontro com os jornalistas durante o voo para Portugal. Foi no dia 11 de Maio. O texto será longo, mas aqui fica para reflexão, agora, passados treze anos. Assim falou o Papa, respondendo a uma pergunta feita pelo Padre Lombardi:

«O Senhor nos disse que a Igreja seria sempre sofredora, de diversos modos, até ao fim do mundo. O importante é que a mensagem, a resposta de Fátima, não vai substancialmente na direção de devoções particulares, mas precisamente na resposta fundamental, ou seja, a conversão permanente, a penitência, a oração, e as três virtudes teologais: fé, esperança e caridade. (…) A novidade que podemos descobrir hoje, nesta mensagem, reside também no facto que os ataques ao Papa e à Igreja vêm não só de fora, mas que os sofrimentos da Igreja vêm justamente do interior da Igreja, do pecado que existe na Igreja. Também isso sempre foi sabido, mas hoje o vemos de um modo realmente terrificante: que a maior perseguição da Igreja não vem de inimigos externos, mas nasce do pecado na Igreja, e que a Igreja, portanto, tem uma profunda necessidade de re-aprender a penitência, de aceitar a purificação, de aprender por um lado o perdão, mas também a necessidade de justiça. O perdão não substitui a justiça

Não sei se, então, teremos ouvido bem o Papa Bento XVI. Ou se lhe prestámos a necessária atenção. Mas verdade é que as suas palavras são hoje bem mais pesadas do que terão sido, à altura, para a Igreja em Portugal. Entusiasmada com a visita do mensageiro, terá passado ao lado da mensagem. E elas ressoam, agora, na Igreja como um pesadelo a apelar à conversão e à penitência.

Igreja santa? Sim, mas também pecadora. Igreja santa e pecadora? Seja ela também penitente. Penitente a rezar e a pedir perdão. Mas penitente também na prática da justiça.

Do segundo, do Papa Francisco, evoco as memoráveis palavras da homilia do dia 13 de Maio de 2017: «Queridos peregrinos, temos Mãe, temos Mãe!» E aquela assembleia de muitos milhares de peregrinos, que enchia por completo aquele imenso recinto, explodiu, emocionada, em prolongada salva de palmas que, subindo, ressoou chegando aos céus. Depois seguiu-se um contrastante silêncio absoluto a pedir a Francisco para continuar. E o Papa continuou: «Agarrados a Ela como filhos, vivamos da esperança que assenta em Jesus, pois, como ouvíamos na Segunda Leitura, «aqueles que recebem com abundância a graça e o dom da justiça reinarão na vida por meio de um só, Jesus Cristo» (Rm 5, 17).

Digamos que já noutras ocasiões teremos ouvido e dito com fé e esperança aquelas palavras. Mas aquele presente verbal da frase singela «Temos Mãe», dita e ouvida naquelas circunstâncias vividas no Santuário de Fátima, transporta-nos para além do tempo. «Temos», verbalmente falando, é a primeira pessoa do plural do presente do indicativo. Mas é um presente do indicativo continuado no tempo até à eternidade. «Temos», eu, tu, nós, eles, todos. Os que ali se encontravam e que se encontravam perto ou longe deste lugar. Dos que têm mãe, dos já a perderam e daqueles que nunca a conheceram. Porque também os há. Dos viventes de hoje e dos que viveram antes e já partiram.

É um «temos» que abarca a Humanidade. Um plural que abarca toda a Igreja. Ela é a «Mãe da Igreja». Mesmo pecadora e penitente. É um «Temos Mãe» que abrange, pois, a Igreja. Esta Igreja sofredora a navegar em águas revoltas. Esta Igreja que, neste presente vivido dos tempos conturbados, bem precisa dos cuidados de «Mãe».

Guarda, 8 de Maio de 2023

António Salvado Morgado

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