Nunes Pereira: homem, artista e padre

Cinco anos após a sua morte e no ano do centenário de nascimento de Mons. Nunes Pereira, a memória ganha vitalidade com as «pegadas de Deus» na sua arte. A povoação, rodeada de montanhas, é abraçada e protegida, na sua “espécie de concha, pelos telúricos rochedos da Penalva e do Cabeço da Mata, continuados pela Serra da Rocha, Serra Amarela e Picoto da Cebola”. Foi assim que Mário Nunes, Vereador da Cultura da Câmara Municipal de Coimbra definiu a aldeia de Fajão (Concelho da Pampilhosa da Serra) e terra natal de Monsenhor Nunes Pereira, falecido a 1 de Junho de 2001. Cinco anos depois do desaparecimento deste “homem simples… e alma rural” – (Marques, José Augusto; “Uma Vida com sentido”; In: Revista «Mensageiro de Santo António» de Julho/Agosto de 2001), a candura e a sabedoria profunda “desta alma portuguesa” não foram esquecidas. Tinha 94 anos e mais de quarenta vividos na cidade universitária onde deixou a última obra: um vitral no altar-mor da Igreja de S. José (Coimbra). A obra de arte foi inaugurada a 16 de Junho por D. Albino Mamede Cleto, bispo das terras do Mondego, mas os participantes na Missa do 7º dia puderam apreciá-la antecipadamente. Homem multifacetado, Mons. Nunes Pereira tanto utilizava as frases simples e profundas como a «pedra bruta» para dar a conhecer o Criador. Ao longo de muitos anos, a sua pena mostrou na revista «Mensageiro de Santo António» a interpretação fiel do nosso sentir colectivo, “da história comum, das nossas raízes de nação multissecular” – (Marques, José Augusto). As páginas da rubrica «Calhau Rolado» do «Mensageiro de S. António» estavam acompanhadas por gravuras que a sua arte colocava no papel. Nelas colocava «N. P» (Nunes Pereira) mas a sua humildade vinha ao topo da pirâmide e gostava de sublinhar: «N.P» significa «Não Presta». Qualidades que Frei Eliseu Moroni (na altura Chefe de Redacção do «Mensageiro de Santo António) referiu: “foi devido a esta sua humildade que encontrei um «amigo», fui amparado por um «pai», animado por um «sacerdote», ensinado a olhar os horizontes da vida por um verdadeiro «homem sábio»”. E acrescenta: “na minha memória fica uma verdadeira herança espiritual”. «Perdemos uma jóia» Na homilia da missa exequial, D. Albino Cleto sublinhou as qualidades sacerdotais e artísticas de Monsenhor Nunes Pereira ao afirmar que “nós, os padres de Coimbra, perdemos uma jóia”. Era um homem da Igreja e “na Igreja aprendeu tudo o que nos deixa como legado”. É que – acrescentou o prelado – “ser artista como ele foi é ser pregador e padre. Os seus traços pictóricos são uma verdadeira pregação porque o artista aponta-nos sempre as pegadas de Deus”. Nascido a 3 de Dezembro de 1906, na pequena povoação da Mata (freguesia de Fajão), Monsenhor Nunes Pereira aprendeu com o pai as primeiras letras, depois do falecimento deste, 1915, foi para o Seminário de Coimbra. Ordenado em 1929, a primeira paróquia onde exerceu o seu múnus pastoral foi em Montemor-o-Velho de onde transitou, em 1935, para Coja. Foi pároco de S. Bartolomeu, Vigário Geral da diocese, membro da Comissão Diocesana de Arte Sacra, professor no Instituto Superior de Estudos Teológicos de Coimbra e chefe de redacção do «Correio de Coimbra» cerca de 20 anos. Com um olhar luminoso e uma postura cativante, Mons. Nunes Pereira trazia sempre consigo um papel e uma esferográfica. “Fazer retratos às escondidas, para em seguida os oferecer aos amigos, era o que lhe dava mais prazer” – (Moroni, Eliseu; “Homem Sábio”; In: Revista «Mensageiro de Santo António» de Julho/Agosto de 2001). O Cón. António Rego, Director do Secretariado Nacional das Comunicações Sociais da Igreja, testemunhou este episódio: “De repente olha-me mais fixamente, interrompe a narrativa, sorri e lança-se outra vez por inteiro sobre o postal amarelecido. Entrega-me, por fim, já com as linhas perceptíveis. Lá estou eu, com o que sou, nos traços essenciais que ele percebeu e transmitiu” (Rego, António; Editorial da «Agência ECCLESIA» de 5 de Junho de 2001). O desenho das viagens Nos finais da década de cinquenta e após viagens a França, Itália, Alemanha e Holanda, Nunes Pereira dedicou-se à aguarela. Desenhava com uma rapidez fulminante, esculpia e pintava de igual modo e, dados os seus conhecimentos na área da madeira, aprendeu numa simples tarde, a técnica da gravura em metal, com José Contente. Por isso dizia: “Na base de todos os meus trabalhos está, sem dúvida, o desenho. Desenho em casa, na rua, nos cafés, nas reuniões, nos almoços. O meu desenho, salvo o que faço no gabinete, é um desenho de viagem, aproveitando ocasiões e às vezes escassos minutos”. Dominava igualmente a técnica do vitral, tendo executado o seu primeiro trabalho na capela da Casa de Saúde de Santa Filomena, em Coimbra; seguiram-se outros em Vila de Rei, na capela de Montalto, em Arganil, nas Igrejas de Santa Maria de Celorico da Beira, de Manteigas, de Ponte Sótão (Góis), Ponte da Barca, Cardigos, Guarda-Gare, Paleão (Soure) e Carnide (Pombal). Para além deste cunho pessoal nos vitrais deixou também painéis de madeira na Igreja da Tocha, de Bustos, de Coja e no Seminário de Coimbra. A forma peculiar como comunicava com os outros e o saber polivalente fizeram deste sacerdote, jornalista, escritor, artista, poeta, professor e humanista um «ex-libris» do seu Fajão. Para tornar viva a sua memória foi inaugurado, a 13 de Setembro de 1997, um museu cujo nome deram “Monsenhor Nunes Pereira”. Este guarda as raízes dos habitantes da terra – utensílios, artefactos, literatura, contos, tradições, maneiras de criar e dizer poesia, de cantar e rezar, formas de vestir, de trabalhar, de agradecer a Deus e aos santos, de amar os animais e as aves, de dizer a lenga-lenga e chamar o gado – e está enriquecido com uma parte significativa do espólio artístico criado pelo homenageado. Nesta casa de xisto (um dos materiais utilizados para as suas obras de arte) o visitante encontra retalhos da vida e riquezas de ontem para apreciar hoje. Lições históricas que questionam a rapidez do homem contemporâneo. Personalidade ímpar no reino do Mondego Palavras pictóricas que tocam e alertam o coração do homens. “O pobre Lázaro do Evangelho bem desejaria comer as migalhas que caíam da mesa do rico, mas ninguém lhas dava. As pessoas avarentas «comem de gaveta»; se vem alguém fecham a gaveta, para não terem de oferecer” – afirmou Mons. Nunes Pereira na sessão solene da inauguração do Monumento ao Padeiro em Meda de Mouros. E acrescentou: “uma das broas que ficasse mais perto da porta do forno era esmagada… depois de cozida era migada em bocadinhos para uma bacia e regada com vinho, para todos comerem. Eram «Sopas de cavalo cansado»”. Tempos da escassez que merecem o seguinte comentário de Mons. Nunes Pereira em «Tudo, muito, pouco ou nada» – rubrica «Calhau rolado» na Revista «Mensageiro de Santo António» de Maio de 2000 – “O pouco que Deus me deu / Cabe numa mão fechada; / O pouco com Deus é tudo, / O muito sem Deus é nada”. A sua arte ia para além da seiva das palavras e uma das formas de a transmitir era através da xilogravura. Esta criação artística – contida e austera – com recurso a materiais «pobres» e imediatos era exigente. Condições que ele aceitava apesar do risco de uma golpe menos feliz. “A modéstia da modalidade dá uma ideia do perfil de quem a cultiva. Polifacetado como sempre foi, Nunes Pereira dedicou-se igualmente a outras modalidades. Mas era a gravação em madeira e em xisto – ou «calhau rolado» – que melhor retratava a sua sobriedade expressiva” – (Branco, J. Oliveira). Um símbolo do seu próprio batalhar na vida. Como as suas virtudes iam para além do âmbito eclesial, a divisão de acção cultural do município de Coimbra formulou a seguinte informação, de 24/04/2002: “Personalidade ímpar na sociedade de Coimbra, figura destacada no panorama artístico regional, Monsenhor Nunes Pereira soube conciliar, de forma notável, o exercício da sua actividade pastoral a uma velha paixão – o cultivo das artes”: E acrescenta: a cidade do Mondego “deverá manter viva a sua memória e promover a divulgação da sua vasta obra”. Ao longo da sua vida, Nunes Pereira personificou a pluralidade de conceitos e de valores. Deus e os homens, uma dualidade indestrutível e inapagável, “constituem uma unidade e autenticam um princípio eterno (Nunes, Mário; In: Revista «Munda» de Novembro de 1992). Nunes Pereira comunga e evidencia esta eternidade: amar a Deus sobre todas as coisas e os homens como a nós mesmo. Luís Filipe Santos Notícias relacionadas • Nunes Pereira: A voz de Deus na voz do povo

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