Igreja/Abusos: «Temos de ser todos a fazer a diferença» – Marta Neves

Numa semana marcada pela divulgação do relatório da Comissão Independente para o Estudo do Abuso de Crianças na Igreja Portuguesa, é convidada da Renascença e da Agência Ecclesia, Marta Neves, que coordena a Comissão de Proteção de Menores e Adultos Vulneráveis da Diocese de Coimbra e que também integra a coordenação nacional das comissões diocesanas de proteção de menores ou adultos vulneráveis

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (ECCLESIA)

Como recebeu os dados apresentados pelo relatório da Comissão Independente?

Tivemos oportunidade, no dia 13, de escutar a apresentação da Comissão independente. Os números não nos surpreendem, primeiro porque não tínhamos nenhuma ideia prévia, sabíamos apenas que existiam muitas pessoas. Porquê? Porque é um fenómeno que é sistémico, que é global e que é universal. Portanto, se nos outros países havia estes resultados, era mais ou menos expectável que em Portugal também existissem, o importante era esta coragem para os olhar de frente.

 

Surpreendeu-a, de algum modo, o número de vítimas do sexo feminino?

Depende muito da dos estudos e dos resultados, ou seja, nem sempre os estudos são representativos da realidade. Pode ter a ver com a forma como foram divulgados… a nossa amostra aqui pode não ser representativa da população. São questões que têm mais a ver com o estudo em si do que, propriamente, com a realidade. Não me surpreende que haja quer caso femininos, quer casos masculinos.

 

O estudo diz que as mulheres em Portugal têm uma representatividade nas queixas de 42,2%, o que é número superior aos resultados que conhecemos de outros países…

Não sabemos os resultados de todos os países, depende também dos estudos, eu acho que é muito prematuro estarmos já com conclusões. Precisamos, se calhar, de conhecer melhor a realidade em mais países, não podemos comparar resultados sem perceber a metodologia que está por trás.

 

São questões mais de análise metodológica do do do que está em causa, do tipo de amostra e do que é possível comparar face ao tipo de amostra de outros países. Gostaria de conversar consigo sobre uma chamada de atenção muito particular que Daniel Sampaio, psiquiatra, fez durante a conferência de imprensa, defendendo a necessidade de um estudo a nível nacional sobre abusos de menores. Lembrava, a partir de uma metanálise de vários estudos internacionais, que 18% das meninas são abusadas até os 18 anos de idade e 8% dos rapazes também…

Os estudos europeus há muito tempo dizem que uma em cada cinco pessoas pode ser vítimas de violência sexual. Infelizmente, os números não são muito animadores.

Não é uma questão de agora: se nós pensarmos no início da evolução humana, os graus de violência deviam ser muito maiores. Portanto, não é que a violência esteja a aumentar agora, mais do que no Neandertal. A questão é que nós estamos cada vez mais conscientes, estamos cada vez mais a querer olhar os problemas, a classificá-los e encontrar as respostas para eles. É óbvio que existem números assustadores de violência: existem nas famílias, existem em todas as instituições, existem na Igreja, isso não nos surpreende. O que é importante é o que nós, nesta época, aqui e agora, podemos fazer para mudar essa tendência.

 

Estudá-la será o primeiro, o primeiro passo…

Claro, claro.

 

É expectável que a divulgação destes testemunhos leve mais gente a querer falar da sua própria experiência?

Espero sim. Eu acho que há vários casos: há muitas pessoas que já têm a vida completamente organizada e que não querem mexer no assunto, porque ultrapassaram a situação – são pessoas resilientes, que conseguiram integrar esta história, esta experiência traumática, que conseguiram avançar e que não veem vantagens em andar para trás.

Há de haver outras pessoas que ainda não tiveram coragem de falar e que estão a tentar perceber o que é que vai acontecer a estes testemunhos, a estas pessoas que os deram, se é seguro ou não, se vale a pena ou não falar. Há de haver imensas realidades diferentes. O que temos d pensar é, como é que nós, sociedade podemos ser uma cultura de cuidado? Como é que nós podemos acolher não apenas as pessoas que foram vítimas, mas acolher também os abusadores e ajudar a prevenir que não aconteçam outras situações no futuro.

A minha perspetiva é muito esta, daqui para frente, o que é que nós podemos fazer.

 

As Comissões Diocesanas de Proteção de Menores merecem reparos, no relatório da Comissão Independente. Há caminho a percorrer para estabelecer uma relação de confiança, com eventuais vítimas, e para o trabalho na prevenção primária?

Claro, claro. Nós, nas comissões, precisamos de ter formação, precisamos de nos organizar. Não se esqueça que as comissões começaram a relativamente pouco tempo…

 

A partir da cimeira de 2019, em que o Papa convocou todas as dioceses a ter a sua Comissão…

Exatamente. Nós começamos, por assim dizer, de uma forma muito amadora a tentar perceber o que era necessário fazer e só agora, com dois, três anos de experiência, começamos a avaliar o trabalho feito, a perceber o que é que estava bem, o que podemos melhorar e, sobretudo, os procedimentos que podem ser uniformizados, até que ponto é que, todos juntos, conseguimos fazer um trabalho.

Todos nós temos fragilidade, podemos aprender e melhorar o nosso trabalho. Defendo que o trabalho da Comissão não é apenas de acolhimento e de acompanhamento das pessoas que foram vítimas, mas é também, sobretudo, de prevenção e de formação: formação de cultura, formação de pessoas, formação de hábitos de cuidado e também desta mentalidade da tolerância zero.

Nós não podemos virar a cara, nós não podemos fingir que não percebemos, e isto é fundamental para que cada pessoa que faz parte da Igreja interiorize este papel de corresponsabilidade. Não são só duas ou três pessoas que mudam, temos de ser todos a fazer a diferença.

 

O relatório da Comissão relata mesmo o caso em que um bispo desautorizou uma comissão diocesana. Ora, isto também prejudica essa relação de confiança indispensável?

Em cada comissão deve haver imensas situações que não agradam a uns ou outros. Somos todos pessoas que estamos a tentar colaborar e trabalhar em equipa. Qualquer pessoa que tenha um trabalho de equipa, sabe que a linguagem não é a mesma, portanto, é preciso negociar, é preciso ceder, aprofundar.

Eu até defendo a necessidade de haver conflito, diferenças, de haver discussão: é normal e é expectável que haja diferentes posições. O que eu acho importante é que esta onda da sinodalidade venha também ao encontro das comissões, que todas as pessoas sintam que podem falar e ser escutadas, que é o contributo de todos que leva depois de uma decisão mais consciente, mais responsável.

 

Até agora tivemos o relato de muitos poucos casos às comissões. Significa que não há essa confiança necessária?

Não sei, dos casos que foram reportados às comissões, cerca de 32, 33, quais foram participados, por exemplo, ao Ministério Público, através da Comissão Independente, porque esta não nos disse. Não temos conhecimento dos dados, mas faz sentido, por exemplo, pensar que as pessoas que têm denunciado situações nas Comissões Diocesanas o façam relativamente a situações mais recentes. As situações, se calhar, de há 70 ou há 50 anos, terão sido apenas reportadas à Comissão Independente. Mas não temos os dados concretos poder proceder a esses números.

 

É um trabalho, um trabalho que ainda está por fazer, de cruzamento de dados…

De cruzamento lado e não só. Concordo que há muito poucas pessoas, ainda, que confiam nas Comissões Diocesanas: por um lado, porque somos o rosto da Igreja e, se foi a Igreja que que magoou, é difícil acreditar que pode haver um outro rosto diferente na Igreja, não é? E, por outro lado, também como somos ainda muito recentes, as pessoas ainda não nos conhecem, ainda não me confiam, às vezes é preciso ver o que é que acontece aos primeiros que se chegam à frente para perceber se é um caminho seguro ou não.

Também com esta entrevista, espero que as pessoas comecem a conhecer as Comissões, a experimentar, a perceber quem é que está por trás, os rostos, as pessoas, o trabalho que está a ser feito, para podermos também todos ajudar a divulgar. Mais uma vez, a corresponsabilidade.

 

 

Mais do que um papel de denúncia falava há pouco da tolerância zero. As comissões diocesanas podem ser agentes de promoção deste princípio de tolerância zero, que tem sido assumido pela hierarquia católica?

Nós somos Igreja e quando o Presidente da CEP (Conferência Episcopal Portuguesa) diz tolerância zero, nós queremos também dizer a mesma mensagem.

 

E como é, como é que essa cultura se vai implementando porque nós os 3 sabemos muito bem o que são as Comissões e pode haver ouvintes que não saibam. É um trabalho multidisciplinar, não é? 

Sim, em 2019 o Papa e exigiu a cada diocese, portanto, a cada bispo que criasse uma Comissão para acolher as denúncias, acolher as vítimas para as acompanhar e também para fazer este trabalho de prevenção e de formação dos agentes pastorais do clero, de todas as pessoas que estão na igreja.

O que acontece é que cada bispo na sua diocese foi mais ou menos livre para constituir uma comissão, uma Comissão diocesana.

Todas as comissões são equipas multidisciplinares, são pessoas que trabalham noutras áreas, portanto, dentro da área da saúde mental, da área do direito, da área dos órgãos de segurança pública, etc., de várias áreas. E estas pessoas reúnem normalmente uma vez por mês, e discutem não apenas os processos que estão a acompanhar, mas também formas de mudar a mentalidade, mudar esta cultura que antes era de protecionismo e de obscurantismo, mudar para uma cultura de cuidado, transparência de tolerância zero.

Cada diocese tem um bocadinho o seu ritmo, tem a sua cultura, tem as suas tradições. Portanto, não estamos ainda todos a falar a uma só voz, no mesmo ritmo e aqui, temos também de encontrar o olhar Misericordioso de Deus e este amor incondicional de cada um está a fazer o

seu ritmo e o melhor que pode dentro das suas circunstâncias.

Aqui penso que compete um bocadinho quer à CEP, quer à equipa de coordenação nacional, promover a motivação e promover aqui uma homogeneização dos procedimentos das atividades que estão a ser feitas.

 

O apoio psicológico e psicoterapêutico das vítimas é certamente uma prioridade. O psiquiatra Daniel Sampaio volto a citá-lo, disse numa entrevista recente à Renascença e ao Público que é preciso uma via verde no Serviço nacional de saúde para as vítimas de abuso sexual. As comissões diocesanas estão a preparar uma resposta conjunta neste?

Sim. Algumas das dioceses já tinham respostas, nomeadamente em Coimbra. O que acontece é que há algumas comissões que disseram no dia 4 de Fevereiro, no encontro nacional, que existiram algumas comissões que disseram, porque nas zonas onde estão a saúde, se calhar, não é tão privilegiada, – zonas mais de interior – que tinham mais dificuldade em encaminhar as vítimas e as famílias das vítimas e também os agressores E a aquilo que a equipa de coordenação nacional disse é que ia tentar criar uma bolsa nacional que pudesse dar resposta às zonas com menos capacidade. Concordo com o Doutor Daniel Sampaio quando diz essa via verde do Serviço Nacional de Saúde.

Da minha experiência de vida, que não é assim tão grande; é que nem sempre o Serviço Nacional de Saúde se disponibiliza para criar assim grandes vias Verdes. Portanto, às vezes é mesmo preciso criar respostas paralelas. Não parece mal que, por exemplo, que as comissões diocesanas possam pagar o acompanhamento em psicoterapia que está a ser feito por técnicos especializados e que dá uma resposta, se calhar de mais adequada.

 

Sim essa aliás, é uma das questões do relatório em parte pelo menos….

Há outra questão que tem sido até bastante badalada na opinião pública, que é a preocupação com a situação dos alegados abusadores ainda vivos. 

Duas questões: o tratamento destes casos é uma prioridade para quem integra comissões diocesanas? e a segunda é que intervenção terapêutica é possível fazer junto destes agressores?

Sim, são 2 questões muito boas. Primeiro que tudo é preciso, de facto, identificar. Identificar e mais uma vez, a questão da tolerância zero. Portanto, se estão no ativo e se há denúncias, então isto tem de ser primeiro que tudo, encaminhado para os órgãos de decisão que aqui já não passa pelas comissões como sabem.

E aí nas dioceses existe a possibilidade – eu não sei os termos técnicos – mas existe a possibilidade de suspensão enquanto está a decidir o processo, enquanto está a fazer averiguação do processo.

Eu não sou da parte do direito, nem canónico, nem criminal. Portanto não sei a terminologia, mas existe essa possibilidade exatamente.

 

Sim, mas é uma suspensão preventiva, enquanto. corre o processo…..

Essa é uma questão. A segunda questão tem a ver com acompanhamento terapêutico. Só compete a um tribunal forçar. Ou seja, imagine que uma pessoa não quer fazer terapia, então nós não podemos forçar, só um juiz é que pode forçar a terapia, não é. Normalmente aquilo que é feito é

uma opção alternativa a uma pena efetiva a se fazer um tratamento compulsivo. E aí existem já respostas no terreno e nomeadamente aqui em Coimbra, no Hospital Sobral Cid, existem respostas nesse sentido que acompanham já agressores sexuais que existem na sociedade.

O que é que acontece? Eu acho que tem de haver aqui também quando eu falo de uma cultura de cuidado, é também neste sentido. Nós temos de olhar para os abusadores não como monstros, mas como pessoas que precisam de apoio e se todos nós conseguirmos perceber esta necessidade de apoiar, podemos até ser nós, dentro do possível, a sensibilizar a necessidade de apoio e de psicoterapia para todos os agressores. Neste sentido de apoio. Não é no sentido punitivo, mas no de reconstrução de apoio. E como também já ouviram falar o Doutor Rui Abrunhosa, entre outros, que são especialistas na matéria – eu não sou especialista nesta matéria – mas aquilo que nós sabemos é que há muitas dificuldades, mas existem processos que são possíveis de fazer e que têm possibilidade de mudança.

 

Estamos a caminhar para o final da nossa entrevista. Há ainda 2 ou 3 questões. Faz sentido falar na criação de uma nova Comissão independente com membros externos para prosseguir o acompanhamento dos novos casos?

Depende dos objetivos. Se o objetivo for o acompanhamento dos casos, então, não é a continuidade da Comissão independente, porque a Comissão independente serviu aqui para um estudo até muito sociológico e muito com base na estatística. A Comissão independente não fez acompanhamento das vítimas. Quem é suposto fazer esse acompanhamento são as comissões diocesanas que já existem e que estão no terreno. Se surgir aqui uma nova figura, aquilo que eu acho que é muito importante é que a CEP estude quais é que seriam as necessidades e os objetivos para criar aqui outra Comissão.

 

A minha pergunta final tem a ver com o encontro de 3 de março, a reunião da Conferência Episcopal portuguesa, uma Assembleia plenária extraordinária para analisar o relatório. Ao longo da semana têm-se multiplicado as declarações de bispos a falar de uma realidade triste que os envergonha. Espera que este encontro seja já um ponto de viragem para a forma de enfrentar o fenómeno?

Sem dúvida, eu acho que sim. Eu acho que a Igreja acordou, este dia 13 de fevereiro surgiu, um bocadinho, como um murro no estômago para muitas pessoas.

Acho, de facto, que os senhores bispos estão muito conscientes desta situação e estão mesmo com muita vontade para mudar esta mentalidade. A partir deles e a partir de deste momento, eu acredito que haja possibilidades para nascer uma nova forma de estar na Igreja.

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