Entrevista: Está a crescer um “novo Islão” na Europa – Catarina Belo

Professora da Filosofia Islâmica Medieval no Egito, há 14 anos, afirma que o terrorismo é sobretudo político e tem nos muçulmanos as primeiras vítimas

Na entrevista à Agência ECCLESIA e à Renascença, diz que o conhecimento é a via para criar aproximações com o mundo islâmico, sublinha a importância das lideranças religiosas na promoção da paz e analisa o crescimento do islamismo no continente europeu, em contexto minoritário, mais “pluralista” e com novas experiências “até teológicas”. A filha do poeta Ruy Belo fala também da ‘Casa Ruy Belo’,  que deve abrir no próximo verão.

Foto: Joana Bourgard/RR

Entrevista conduzida por Ângela Roque (Renascença) e Paulo Rocha (Agência ECCLESIA)

É filha do poeta Ruy Belo e de Maria Teresa Belo e descobriu o gosto pela Filosofia na biblioteca da casa de família. Mas, o que é que a levou até à filosofia islâmica?

Foi, por um lado, estar interessada pelo passado, pela história de Portugal, por haver esta presença islâmica. Mas também pelo facto de o Médio Oriente estar nas notícias, já desde há várias décadas. Foram estes dois aspetos, um mais histórico e outro mais atual. Depois, eu gostava muito de filosofia e interessava-me pelo mundo árabe, e, para juntar as duas coisas, decidi especializar-me em filosofia islâmica medieval.

 

Podemos falar em ‘paixão’ por esta área de estudo?

Sim. E é uma área que ainda precisa de mais investigação e de estudo, ainda há muita coisa para fazer e quem se quiser dedicar tem ali muito trabalho e temas muito interessantes.

 

O choque entre o mundo Ocidental e o mundo Islâmico acentuou-se nas últimas décadas, com vários conflitos. Já vamos olhar para o mais recente, entre o Irão e os Estados Unidos, mas como investigadora nesta área sente que tem havido um interesse crescente a nível académico em saber mais sobre o mundo islâmico? 

Eu acho que sim. Por exemplo, quando aconteceu o 11 de Setembro eu estava a fazer o doutoramento em Oxford e os pedidos de inscrição em cursos de estudos árabes e islâmicos dispararam nessa altura.

 

Estamos a falar em 2001.

Exatamente. E julgo que houve mais interesse a partir daí. Claro que essa foi uma situação crítica, mas acho que é uma tentativa das pessoas, dos estudantes, compreenderem a situação e a atualidade. E acho que esse interesse continua, justamente por causa das notícias.

 

Foto: Joana Bourgard/RR

Conflito Irão/EUA

Notícias marcadas agora pelo conflito entre o Irão e os EUA, que envolvem também o Iraque. Como é que tem acompanhado estes acontecimentos?

Tenho-os seguido. Vivo no Médio Oriente e trabalho numa universidade americana, que é um lugar de interação entre esses dois mundos (ocidental e islâmico). Esse é um aspeto muito interessante do meu trabalho, ver a interação entre os colegas egípcios e os colegas americanos.

 

E há pontos de vista muito diferentes? Como é que se manifestam?

Há, claro. São maneiras de ver o mundo diferentes. No Médio Oriente há a ideia de que nada acontece por acaso, não sei se tem a ver com uma perspetiva mais religiosa, mas eles acham sempre que há uma intenção, que nada acontece por acaso. Depois há outras questões, já de várias décadas, como a questão de Israel, que é uma questão muito sensível. Há perspetivas diferentes, sim.

 

E sente essas diferenças culturais e de pensamento no dia-a-dia, com colegas, com os estudantes, ou acha que essas diferenças se acentuam mais ao nível das  lideranças, a nível político?

Não, é a todos os níveis. Na universidade americana não há só alunos muçulmanos, também há cristãos e de outras religiões, porque temos várias nacionalidades. Por exemplo temos alunos libaneses que pertencem a vários grupos cristãos e islâmicos.

 

Mas há, de facto, uma maneira diferente de pensar e encarar as coisas?

Julgo que sim. Claro que também há muitos pontos em comum, mas há maneiras de ver diferentes.

 

Que não impedem a convivência?

Não. Sobretudo na sala de aula e falando sobre certos temas. A minha investigação é mais sobre a filosofia medieval, mas há muitos alunos interessados em ciências políticas e sociologia e aí são as questões da atualidade que vêm ao de cima.

 

O terrorismo veio minar definitivamente a confiança do Ocidente em relação ao mundo árabe?

O terrorismo pode ser analisado a vários níveis. Pode ser um terrorismo estatal, mas a maior parte dos grupos que são estudados agora, a Al Qaeda ou o Estado Islâmico, não são grupos estatais – se bem que o ISIS estava a tentar ser um Estado, o Estado Islâmico, e replicar o califado. Mas, depende, pode ou não haver ligações com o Estado, e há vários tipos de terrorismo. Alguns grupos acham que estão a resistir, eles próprios não se autodenominam ‘terroristas’, acham que é uma resistência a certas agressões.

 

E acham que é uma resistência correta. Isso tem algum fundamento no Islão?

Acho que é mais uma questão política. Por exemplo, o Hezbollah surgiu especificamente como um movimento de resistência à ocupação do Líbano por Israel, ocupação da parte de Beirute e do sul do Líbano. Eles têm o seu próprio discurso, a sua narrativa e maneira de ver as coisas. Mas o terrorismo é um fenómeno muito complexo, com muitos atores.

 

Ainda há muito preconceito por parte do Ocidente em relação ao Islão?

Talvez, em alguns aspetos. Mas também há vários tipos de Islão. Por exemplo, os Estados Unidos há muito tempo que são aliados da Arábia Saudita, que é um país maioritariamente sunita, portanto pode haver uma união política havendo uma visão religiosa diferente, é perfeitamente possível. Por isso é que eu acho que a questão política talvez seja mais importante, ou mais saliente quando há confrontos. Claro que a religião está relacionada, mas é uma religião misturada com política, não é só religião.

 

Foto: Joana Bourgard/RR

No Ocidente, para além do preconceito podemos falar também em ignorância em relação ao mundo islâmico?

Claro. É importante conhecer a religião e a diversidade religiosa desses países. Por exemplo, o Líbano reconhece oficialmente 18 grupos religiosos diferentes, 12 cristãos e seis islâmicos. É um país que em termos de território é um décimo de Portugal, e é impressionante a diversidade religiosa. Portanto, é importante conhecer a diversidade – os países são diferentes, os grupos religiosos são diferentes, até os grupos cristãos são diferentes -, e conhecer a história.

Outra questão muito importante é que no Médio Oriente ainda permanece a questão do colonialismo, em relação às fronteiras dos países. Há um século terminava o Império Otomano, e havia uma conceção completamente diferente da comunidade islâmica. Por isso é muito importante conhecer a história, conhecer os diversos tipos de religião ou grupos religiosos.

 

No caso do Irão é um país de maioria xiita. Matar o dirigente iraniano Soleimani revela inabilidade e falta de conhecimento por parte do presidente dos Estados Unidos, ao lançar um ataque destes contra o Irão?

Foi um ataque a um nível muito alto…. Atacar assim era como se os iranianos de repente enviassem um drone e matassem o vice-presidente dos EUA, acho que os Estados Unidos nunca esperariam que lhes acontecesse isso a eles. Isto só vai exacerbar os problemas, os próprios iranianos disseram que pode enfraquecer momentaneamente o Irão, mas vai fortalecer alguns grupos radicais sunitas, como a Al Qaeda, ou o Estado Islâmico. É uma situação muito complexa.

 

Já nos habituamos em relação ao presidente Trump a ler comentários, até de analistas políticos, sobre a sua falta de cultura e de conhecimento. Isso veio ao de cima com este ataque? E é uma falta de conhecimento perigosa?

Eu acho que sim. Ele há de ter os seus conselheiros, mas não há muita coerência, porque por um lado o presidente Trump queria diminuir a presença militar dos Estados Unidos no Médio Oriente, retirar tropas do Afeganistão, depois volta a colocar. A mesma coisa no Iraque, dizem que vão retirar, depois voltam. Julgo que há uma falta de consistência e de visão em relação àquilo que é a realidade.

 

Será a proximidade das eleições no Estados Unidos que está a motivar esta manifestação de força?

Pode ser. Quando há eleições a situação altera-se e ajusta-se sempre aos objetivos eleitorais. Não só nos Estados Unidos, também noutros países.

 

Mas não é possível olhar para estes conflitos sem ter em conta a religião e até a filosofia, que é o seu campo de estudo.

Claro. A religião, a filosofia e até a teologia também é muito importante. E há uma ligação entre a teologia e a filosofia, como na Idade Média e na Europa. São questões muito importantes. E se o sunismo é um pouco mais homogéneo, dentro do xiismo há vários grupos, se bem que neste momento estão unidos. Por exemplo, o presidente sírio Bashar Al Assad não pertence ao mesmo grupo xiita dos iranianos, mas estão mais próximos uns dos outros do que dos sunitas. Portanto, há toda esta complexidade.

 

Essas diferenças e divisões dificultam que o Islão seja visto como uma religião de paz?

Talvez, na medida em que há conflitos entre muçulmanos no Médio Oriente. Mas, as primeiras vítimas do terrorismo de caráter islâmico são os próprios muçulmanos. Claro que há ataques na Europa e na América do Norte, e noutros países…

 

E também contra minorias cristãs no Médio Oriente…

Sim, no Egito isso também tem acontecido. Mas, as primeiras vítimas (do terrorismo islâmico) são os muçulmanos.

 

Devido aos conflitos entre diferentes grupos?

Exatamente.

 

Foto: Joana Bourgard/RR

Qual o papel dos líderes religiosos na promoção da paz? Como analisa nomeadamente os apelos do Papa Francisco?

São muito importantes! Os apelos do Papa e também do líder da Al-Azhar, a Universidade e a mesquita, Ahmed el-Tayeb, que assinou o documento nos Emirados Árabes Unidos. É uma mensagem de paz! As coisas podem começar pelos crentes, mas é muito importante haver esta mensagem dos líderes religiosos em relação à paz.

 

Os líderes islâmicos poderiam ter um papel mais ativo?

Creio que têm. O problema é que não há a mesma unidade: para os católicos o Papa fala por todos, no mundo islâmico não há uma figura equivalente. No Islão, cada muçulmano pode representar todo o Islão e a questão da autoridade é diferente, como é diferente no sunismo e no xiismo. Há o grande Íman da mesquita de al-Azhar, que tem um papel muito importante, mas não é equivalente ao Papa. Tem as suas posições, condena sempre estes atentados, mas cada muçulmano pode seguir a opinião que desejar.

 

Uma mulher, católica, a viver num ambiente islâmico

Como é que a Catarina se posiciona em termos de fé? Tem religião?

Sim, sou católica.

 

E é fácil ser católica no Egito?

Há questões práticas: no centro há muitas igrejas católicas, e também poderia ir às igrejas coptas. Mas, eu moro no novo Cairo e a igreja mais próxima está a uns 15 quilómetros. De resto não há problema.

 

Não há problema a nível de convivência?

Não. E é muito interessante ver a diversidade que existe, com a presença dos cristãos do Médio Oriente, os melquitas, os caldeus… É impressionante essa diversidade. Há uma unidade teológica, mas o culto é ligeiramente diferente. É uma experiência muito interessante.

Em relação aos coptas, há os coptas ortodoxos, que seguem o Papa de Alexandria, e há os coptas católicos, porque algumas dessas igrejas orientais decidiram unir-se às Igreja Católica. É uma grande riqueza.

 

E como é que é a relação entre a maioria muçulmana e as minorias cristãs?

Neste momento está melhor. Há uma tentativa do atual governo defender a minoria cristã, de haver um equilíbrio entre as várias comunidades.

 

Mas o Egito tem sido palco de atentados, alguns contra cristãos. Sente-se segura a viver no Cairo?

De um modo geral, sim.

 

Mas trabalhando na universidade americana, sente-se mais um alvo?

Até agora não houve problemas. Quanto vamos para a Universidade temos de passar as bolsas (malas) pelo raio X. Dizem que é mais uma questão de defender os alunos de ataques como os que há nos EUA, nas escolas secundárias…

 

Vivendo no Egito desde 2006, acompanhou de perto a chamada ‘Primavera Árabe’. O que é que mudou desde aí?

A região, de um modo geral, tornou-se um pouco mais instável, por causa da guerra na Síria, na Líbia, que fica logo ao lado do Egito. Há mais instabilidade. Mas há experiências importantes na Tunísia…

 

Permanece o desejo de mudança que a ‘Primavera Árabe’ quis ser?

Foi uma experiência importante. Mas agora as pessoas são cautelosas, justamente em relação aos problemas que surgiram nalguns países. A situação mudou, de novo.

 

E como é viver no Egito sendo mulher e sendo ocidental?

É quase o melhor de dois mundos: por um lado trabalho numa universidade americana e, sendo estrangeira, não há a expetativa de seguir os preceitos islâmicos. Claro que é preciso respeitar, não vestir de certas maneiras, isso é importante! Mas, ao mesmo tempo, achar que a mulher não deve ser exposta e explorada de uma certa maneira, isso é muito saudável. Eu sinto-me lindamente!

 

Acolhimento de refugiados

A partir deste sábado as várias igrejas cristãs assinalam a Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, que este ano vai evocar a realidade dos migrantes e refugiados que tentam chegar à Europa, e acabam vítimas de naufrágios no Mediterrâneo. Como acompanha esse drama desde o Egito?

Nós vemos as coisas na perspetiva europeia e os migrantes a tentarem chegar à Europa. Mas o Egito também acolhe muitos refugiados, do Sudão, por exemplo, da Eritreia, da Síria.

 

E isso trouxe problemas ao Egito?

Não. O Egito tem uma população que ultrapassa os 100 milhões e conseguiu absorver esses refugiados.

 

E como analisa a reação que a Europa está a ter em relação aos migrantes e refugiados?

Não tenho a certeza em relação à posição oficial… Naqueles países é mais difícil controlar as fronteiras. Talvez haja mais recetividade em relação aos migrantes. Por exemplo, o Líbano tem uma população de quatro milhões e agora mais um milhão de sírios, o que veio desestabilizar muito o país e economia. Apesar disso, não expulsam esses migrantes sírios. Ainda por cima sendo da Síria, que ocupou o Líbano durante anos. Há uma posição menos formal e mais acolhedora nesses países.

 

Na Europa tem havido uma criminalização da assistência humanitária por parte de alguns países. São choques culturais a que estamos a assistir?

Julgo que sim. E ainda não há uma posição unida da Europa, dos vários países. Isso cria problemas, porque alguns estão mais expostos ao fenómeno da migração no Mediterrâneo, teria de haver mais acordos em relação à Europa do Norte. Cada país tem governos e posições diferentes em relação às migrações.

 

Islão na Europa

No contexto europeu, tudo indica que a população muçulmana aumente consideravelmente. Que impacto pode ter na Europa a nível cultural e religioso?

Parece-me que a maioria dessa população está a integrar-se (depende do sítio onde vivem, dos países, das circunstâncias) e acabam por seguir o secularismo: praticam a religião, mas não a impõem. Por exemplo, em Londres há um Mayor (presidente da câmara) muçulmano. E não temos de ter receio disso.

 

Será um Islão com características muito específicas o que se vive na Europa?

Julgo que sim. E até há certos desenvolvimentos teológicos que são muito diferentes, por haver um contexto político diferente. Será um islão diferente.

 

Um novo Islão?

Diferente. Tem de se adaptar. No Médio Oriente os muçulmanos são maioritários, na Europa são minoritários e as circunstâncias políticas são diferentes. Acho que há outras experiências, até em termos teológicos, de pensar a integração e como viver o Islão em contexto minoritário e em certos aspetos mais pluralista.

 

Como olha para o exemplo de Portugal no âmbito da liberdade religiosa e no acolhimento aos refugiados? Tem sido considerado um país exemplar…

E julgo que sim, que é um bom exemplo. Os vários grupos religiosos estão representados cá e Portugal tem acolhido. Não estamos tão expostos como a Espanha…

 

Casa Ruy Belo

Referimos, logo no início da nossa conversa, que é filha de Ruy Belo, o poeta que o cardeal Tolentino Mendonça já considerou “um dos escritores mais espirituais do séc. XX português”.  Aproveitamos para perguntar: como é que está o projeto de criar a ‘Casa Ruy Belo’, em Óbidos, uma residência para escritores?

Está a avançar. Estive em contacto há pouco com um represente da câmara que me diz que as obras estão a avançar, e possivelmente no verão vai ser possível inaugurar a ‘Casa Rui Belo’.

 

Em termos de espólio literário está tudo organizado?

O espólio ainda está onde estou a morar (casa de família em Queluz) e ainda não está todo catalogado e organizado. Houve uma parte da biblioteca que já seguiu para Óbidos, eu própria fiz a catalogação desses exemplares, mas há espólio que ainda está à espera de ser catalogado e espero que surja uma oportunidade.

 

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