É a Eucaristia que «sustenta» a vida das comunidades, também «onde não é possível ser celebrada» – D. José Cordeiro

Foto Secretariado Nacional de Liturgia

O presidente da Comissão de Liturgia e Espiritualidade, da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), está em Budapeste, na Hungria, a participar no 52.º Congresso Eucarístico Internacional, que termina este domingo, com uma celebração presidida pelo Papa Francisco.

“Há testemunhos extraordinários de verdadeiro martírio hoje mas que só conseguem essa força, essa coragem, a partir da Eucaristia; Há aqui uma enorme expectativa da visita do Papa”, disse D. José Cordeiro, que também destaca a dimensão da liberdade religiosa, o âmbito social deste encontro e comenta a visita do Papa, que da Hungria viaja para a Eslováquia.

O bispo de Bragança-Miranda, delegado da CEP aos Congressos Eucarísticos, lidera uma comitiva de 26 pessoas de Portugal, de diversas dioceses, que estão a participar no 52.º congresso, previsto para 2020, e que tem como tema ‘Todas as minhas fontes estão em Ti. A Eucaristia: Fonte da nossa vida e da nossa missão cristã’.

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença), Paulo Rocha (Ecclesia)

 

As origens dos congressos eucarísticos remontam a 1881 quando se realizou o primeiro em Lille (França) no contexto de uma cultura religiosa centrada na valorização da Eucaristia.

O que justifica a continuidade deste projeto, da realização de congressos eucarísticos nesta segunda década do século XXI?

Continuam a ter atualidade na Igreja porque são uma das grandes manifestações públicas da fé da Igreja que sublinham e valorizam o papel da Eucaristia na vida dos cristãos e na prática eclesial.

 

Em todo o caso, a realização destes congressos eucarísticos acontece onde a valorização da Eucaristia é capaz de ser bem diferente daquele em que surgiram estes congressos?

Sim, há uma necessidade ou existiu ao longo da história, e sobretudo da história recente da Igreja, desta valorização pública da celebração, da adoração e da consciencialização maior deste sacramento dos sacramentos.

A perspetiva da organização destes congressos é que eles percorram todos os continentes e as conferências episcopais que se propõem ao Pontifício Comité para os Congressos Eucarísticos Internacionais depois funcionam, um pouco, ao jeito da Jornada Mundial da Juventude. Neste caso, é de quatro em quatro anos e tem sido muito significativo sobretudo no lugar onde eles se realizam e também a universalidade da Igreja que neles se manifesta.

Neste tempo de pandemia tornou-se mais difícil, até porque este já era para se ter realizado no ano passado, em setembro de 2020, está a ser realizado agora.

Na Hungria não existem as limitações sanitárias que ainda temos em Portugal mas, mesmo assim, as representações internacionais são muito diminutas.

A delegação de Portugal tem 26 pessoas e é uma das mais visíveis, a maioria dos participantes são da Hungria e são dos países mais em torno da Hungria.

 

Falou um pouco da perceção que poderão ter os não-crentes da Eucaristia, faltará a Igreja ser mais pedagógica para evitar polémicas artificiais como aquela que assistimos há pouca semanas a propósito de um texto de São Paulo?

Claro que sim, há muita formação a fazer, aliás, é esse o caminho, a conversão pessoal, pastoral, missionária, mas exige uma formação permanente porque se não há formação permanente haverá frustração permanente. E haverá problemas permanentes porque é o fruto da ignorância religiosa e litúrgica ou pela falta de consciencialização e de profundidade, não ficar na superficialidade.

E a Eucaristia, naquilo que é a compreensão e a vida da Igreja Católica, é como que o seu tesouro e também o melhor que pode oferecer a quem anda distante ou anda à procura porque a celebração é o essencial mas a adoração, a preparação, a formação bíblica, litúrgica, pastoral e espiritual é extremamente necessária para que toda a vida seja eucarística ou, até, eucaristizada no sentido de passarmos para a vida o que celebramos na fé. E isso exige uma formação de todos os ministros a começar por aqueles que têm maior responsabilidade, aqueles que presidem à celebração, os bispos, os presbíteros, e todos os ministérios presentes na liturgia.

A liturgia fala muito mais pelos ritos e orações do que propriamente pelas palavras proferidas, ela antes de ser uma compreensão de qualquer conceito é sobretudo uma ação, é a ação de Cristo na Igreja e no mundo.

 

É possível ensinar o que é a Eucaristia, o valor da Eucaristia, ou há aqui uma experiência, nomeadamente uma experiência de fé que é necessário fazer?

A Igreja é de si mesma servidora deste mistério. Ela tem que se colocar nesse caminho de quem educa, de quem celebra, de quem festeja e, por isso, iniciar a este mistério celebrando o próprio mistério, mas com alma e também com arte.

É por contágio que acontece essa relação com a Eucaristia que é muito mais do que um mero ato celebrativo ou um culto divino, ou um culto religioso: É sobretudo encontro com Cristo em cada Eucaristia se repete por Cristo, com Cristo e em Cristo.

 

A Missa é o que passa dentro dos templos ou é uma pessoa, Jesus Cristo, vivo, que se apresenta nos dias de hoje com todas consequências sociais?

Ainda há, às vezes, muita dúvida no uso das palavras “missa” e “eucaristia”. Por Missa entende-se a parte ritual, por eucaristia a parte da adoração, do sacrário. Mas a Missa exige a missão, a missa tem que levar sempre à missão, ela por si mesma já é um ato social que não pode ficar circunscrita ao ato cultural mas tem que levar a uma vida em coerência com aquilo que celebramos, com aquilo que acreditamos, com aquilo que adoramos.

Para sermos o corpo de Cristo, como dizia Santo Agostinho, quando vamos comungar e dizemos “ámen”, não é apenas fazermos uma profissão de fé na presença real, no sacrifício, na memória, no banquete que se celebra mas é, sobretudo, o estarmos dispostos a ser membros ativos, conscientes e com fruto na comunidade deste mesmo corpo que é Cristo e a Eucaristia é a visibilização desse único corpo de Cristo.

 

Foto Secretariado Nacional de Liturgia

O congresso eucarístico, nomeadamente este que está a decorrer em Budapeste, tem alguma dimensão social, algum gesto que remeta para a missão?

Na preparação já teve muitos gestos e, concretamente, aqui em Budapeste tem gestos muito significativos na atenção aos mais pobres, aos mais desfavorecidos, em algumas obras sociais e os vários testemunhos que têm acontecido.

Para nós, e para todas as delegações internacionais, temos tido oportunidade de conversarmos, têm sido muito gratificantes e superado as expectativas na qualidade da organização, da celebração e, sobretudo, desse impacto social na comunidade e nas instituições do Estado, nas instituições sociais e nas obras sociais em que a Igreja participa.

Na relação do Estado/Igreja, e sobretudo no que concerne à educação, à saúde, à atenção aos mais pobres, este congresso eucarístico pretende ser esse sinal de fé, de esperança e de caridade mas sobretudo de unidade e de paz. É ir ao encontro das necessidades materiais mas também das necessidades espirituais e sobretudo neste tempo duro que vivemos da pandemia.

Há gestos concretos e também com outras Igrejas e outros países, nomeadamente Mianmar e também ao Iraque. Foram dois casos em que a presença e o testemunho concreto e efetivo e afetivo deste congresso já chegou.

 

Celebrar a Eucaristia em geografias de perseguição religiosa é uma forma de motivar e valorizar mais a Eucaristia?

Sem a menor dúvida. Dos testemunhos que temos vivido neste congresso, e das várias intervenções de tantas realidades do mundo, é a Eucaristia que sustenta a vida da Igreja e, sobretudo, nos momentos mais críticos de guerra, de perseguição, de fome, de tantas outras contrariedade de ordem natural ou consequências humanas.

São testemunhos arrepiantes porque a força vem justamente da Eucaristia celebrada e adorada e de pessoas que dão a sua própria vida pela vida que receberam dessa fonte inesgotável que é a Eucaristia, que o mesmo é dizer “Cristo mesmo”.

Quando dizemos “todas as minhas fontes estão em ti”, também podemos traduzir de outra maneira: “Todas as minhas fontes estão na Eucaristia”. A Eucaristia é Cristo que se dá e é ele no meio de nós que nos dá a coragem, a confiança, a esperança, para prosseguirmos como construtores da paz.

Não podemos viver sem a Eucaristia, não podemos viver sem a celebração no dia do Senhor e, em muitos casos, não pode ser celebrada ao domingo, até por proibições de vária ordem, mas é celebrada num outro dia da semana.

Mas a Eucaristia celebrada ou adorada onde não é possível ser celebrada é aquilo que sustenta a vida de tantas comunidades e nalgumas realidades não imaginamos. O que nos chega é tudo muito filtrado e, às vezes, só nos chega a parte negativa daquilo que acontece em tantos cenários de guerra e de perseguição mas há testemunhos extraordinários de verdadeiro martírio hoje mas que só conseguem essa força, essa coragem, a partir da Eucaristia.

 

Celebrar o Congresso Eucarístico na Hungria faz transparecer esse valor da Eucaristia em territórios de perseguição religiosa?

Sim, a celebração de um Congresso Eucarístico Internacional é sempre uma expressão máxima da catolicidade da Igreja. E, sobretudo a presença do Papa Francisco no final, naquilo que é chamada a Statio Orbis, quer dizer que ela é a verdadeira luz de todos os povos e de um modo especial para aqueles lugares que precisam de maior iluminação, de maior presença da celebração e daquilo que a Eucaristia significa: De doação, de entrega, de inteireza do Evangelho hoje nas realidades concretas da vida quotidiana para que possa constituir sempre a fonte, o centro, o cume da vida cristã.

Nós próprios como delegação portuguesa e com os outros irmãos que estiveram de Angola, do Brasil e de outros países de língua portuguesa fizemos essa experiência quando celebramos numa paróquia. O modo como nos acolheram e o testemunho com que nos contagiaram da sua vida de fé e daquilo que eles recentemente também passaram neste país, pela experiência comunista, socialista, e ideológica, e como a Eucaristia os torna mais fraternos, mais humanos e até mais espirituais, no sentido de traduzirem na sua vida, as verdadeiras convicções e valores sem medo. E alguns chegam mesmo a afirmar que de facto é muito difícil, é duro e às vezes até parece impossível seguir Jesus Cristo, testemunhar Jesus Cristo, celebrar a Eucaristia, porque é o sinal visível e sem isso não somos Igreja. Mas que é impossível deixar de o fazer porque não existe outra forma melhor de ser Igreja, de sermos discípulos missionários de Jesus Cristo.

 

E quando não há ministros, sacerdotes, para presidir à celebração da Eucaristia? Seria de abrir essa possibilidade a leigos ou homens casados? Que portas foram abertas ou não no Sínodo para a Amazónia, por exemplo?

Sim.  Há muitos desafios que se apresentam à Igreja, porque a Igreja não pode viver sem a Eucaristia, Como dizíamos: Sem Eucaristia não há Igreja e sem Igreja também não há Eucaristia. Mas a presidência da mesma está reservada aos ministros ordenados, aos bispos, aos presbíteros e depois existem os outros ministérios ao serviço da Eucaristia, ou da Celebração da Palavra e a distribuição da Comunhão, o serviço aos doentes, e às comunidades mais dispersas. Mas é um longo caminho que a Igreja já está a percorrer e há de continuar a percorrer porque nunca pode faltar o Evangelho e a Eucaristia que é o essencial.

 

Que ideia é possível partilhar da sociedade húngara, numa altura em que o país é dominado por um governo classificado de extremista e pouco amigo da emigração?

Aquilo que temos testemunhado com os participantes no congresso e as várias experiências das visitas e sobretudo das celebrações nas paróquias é de um país sereno, seguro, sobretudo aqui na capital. E se calhar são alguns valores que não querem perder porque experimentaram a dureza em tempos anteriores. Mas como têm muitas fronteiras, pelo menos são sete países aqui à volta, têm também essa experiência da mobilidade humana… Mas há temores nesta sociedade.

Para nós também foi muito positivo por causa dessas ideias que trazíamos e que também todos os dias nos entram em casa. Mas o concreto da realidade social, (não posso referir-me à questão política porque também não tivemos nenhuma experiência sobre isso), mas daquilo que vamos auscultando do povo mais simples, e desta paz e serenidade, não parece existir tanto qualquer ação em contrário, em desfavor daqueles que precisam de ser acolhidos ou os refugiados ou os migrantes.

Parece-me que é mais a ideia de não perderem aquilo que sentem como bem-estar, como prosperidade e que lhes foi tão difícil conseguir. Não notamos nenhuma relutância em relação a isso (migrantes). Serão mais as questões políticas e ideológicas que essas sim estão presentes e são conhecidas, mas no comum das pessoas não.

 

Gravamos esta entrevista antes celebração de encerramento presida pelo Papa: o que espera da mensagem do Papa Francisco? E já agora o que espera da visita de Francisco à Eslováquia… Visitar a Eslováquia é uma porta de entrada para o Leste Europeu?

Poderá ser vista como tal. De facto, há aqui uma enorme expectativa da visita do Papa. Ao nível do comum das pessoas é uma visita que sabe a pouco porque é muito concentrada na celebração e a parte protocolar. Mas ao mesmo tempo é um sinal que está a ser muito refletido, muito meditado, e há um cuidado muito especial mesmo naqueles que estão a organizar o congresso que agora está na velocidade de cruzeiro a expectativa é toda sobre este domingo e a celebração da Statio Orbis e da mensagem que o Papa traz e do sinal que quer traduzir com esta passagem de algumas horas aqui. Mas centrado no essencial, na celebração da Eucaristia e depois passar ao país vizinho da Eslováquia de onde também está uma boa representação no congresso.

E dizer que é um país de portas abertas que pode trazer alguma novidade contagiante para este país milenar da Hungria com tanta tradição cristã, mas que às vezes parece muito agarrado ao passado. Tanto que todos os dias é muito frisado a pessoa do Rei Estêvão, do rei fundador, dos santos que constituem a Hungria. Mas parece que falta dar o salto para o amanhã.

O hoje também é bem marcado sobretudo na Cruz da missão e com os mártires contemporâneos desta nação, mas a expectativa não é de grande rasgo. Os sinais não são daquela abertura total do coração à esperança, com as tais reservas que dizia de não querer perder aquilo que custou tanto a ganhar.

A visita do Papa não passará indiferente. Marcará certamente uma viragem na história da Igreja deste país e por consequência acreditamos que também alguma influência vai ter na construção da história do futuro deste país.

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