Cinema: O som ao redor

Num bairro da zona do Recife, Brasil, as ruas são dominadas pela família de seu Francisco que, em estilo mafioso, oferece segurança e proteção à vizinhança recebendo em troca toda a liberdade para desenvolver os seus próprios negócios ilícitos. A chegada de uma empresa de segurança  privada ao bairro vem naturalmente ameaçar este sistema: enquanto os vizinhos subjugados aderem prontamente aos serviços da empresa oferecidos pelos afoitos vigilantes de serviço, seu Francisco prepara cautelosamente a forma de manter domínio sobre o bairro.

Inicia-se assim uma guerra dura, aparentemente silenciosa, entre o direito e a lei do mais forte num bairro de classe média onde pulsam tensões e contrastes. No meio desta guerra, desdobram-se personagens que os vigilantes, divulgando os seus serviços, nos vão descobrindo de dentro para fora das casas que visitam.

As primeiras imagens de ‘O Som ao Redor’, uma composição a preto e branco evocando tempos de escravatura e senzalas em grandes fazendas, evidenciam a preposição do realizador brasileiro Kleber Mendonça Filho ao estabelecer uma relação histórica entre as expressões passada e presente de exploração humana. Testando, assim, o seu conceito.

Crónica de uma atualidade brasileira denunciando o enorme desequilíbrio social num país em crescimento económico, feito de desigualdades e injustiça, habituámo-nos a acompanhá-la no registo cinematográfico enérgico, vibrante e ruidoso de ‘Cidade de Deus’ (Fernando Meirelles), ‘Cidade dos Homens’ (Paulo Morelli) ou, mais recentemente, em ‘Tropa de Elite’ (José Padilha).

Aqui, no entanto, há um ritmo e uma gramática totalmente diferentes, apostados numa inteligente fluidez narrativa que o realizador, constituído como mero mas atento observador, desenrola aos nossos olhos e pensamento. Fluidez narrativa e boa gestão de contrastes entre o anúncio de uma paz aparente nas ruas e a denúncia de tensões ocultas crescentes, aos poucos sugeridas. Progressivamente, sob um hábil uso do som e do silêncio, bem como da câmara, espaço público e privado entrarão em conflito, um invadindo o outro, e a narrativa adensa-se, gritando, sem qualquer ruído, a complexidade das relações, desigualdades sociais, o aprisionamento, a solidão e o desejo, para alguns, de os vencer.

‘O Som ao Redor’, que se apresentou pela primeira vez em Portugal na última edição do Indielisboa e estreia agora no circuito comercial, tem merecido o aplauso da crítica um pouco por todo o mundo, além de inúmeros prémios nos festivais internacionais de cinema por onde tem passado: Gramado, Rio de Janeiro,  Roterdão e São Paulo.

Margarida Ataíde

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