Carta Pastoral sobre o Contributo dos Cristãos para a Vida Social e Política – 1974

Introdução

  1. Sensíveis aos apelos que de toda a parte nos dirigem e à obrigação de lhes darmos resposta, julgamos chegada a oportunidade de dizer uma palavra de orientação, neste momento de profundas mutações na vida do Povo português. Endereçamo-la, na qualidade de pastores colocados à frente das Igrejas que peregrinam nas terras de Portugal, especialmente aos padres, religiosos e leigos das nossas dioceses. Mas de bom grado abrimos também esta carta pastoral aos demais portugueses de boa vontade, desejosos de saberem o que pensam os Bispos e o que propõem aos cristãos na presente conjuntura da vida nacional.

 

Contributo dos cristãos para a vida social

2.A este compreensível desejo podemos desde já responder que os cristãos têm um contributo original a dar para a construção da cidade dos homens, além daquele que lhes é comum com os outros cidadãos e que devem dar de forma exemplar. Trata-se do serviço da iluminação evangélica e da animação cristã da ordem temporal. Tal serviço faz parte da missão que a Igreja tem de salvar os homens, que o mesmo é dizer, de lhes anunciar o admirável projecto de vida que Deus lhes oferece — fazê-los Seus filhos e herdeiros da Pátria celeste —, proporcionando-lhes ao mesmo tempo os meios necessários para a sua plena realização. Esta salvação, realizou-a radicalmente Jesus Cristo, que, sendo o Filho de Deus, Se fez homem, para revelar aos homens os desígnios do Pai, libertá-los do pecado que se lhes opõe e ensinar-lhes o caminho da comunhão de amor e vida que os realiza. A Igreja, comunidade dos filhos de Deus e sacramento universal da salvação, projecta no tempo e no espaço a obra salvífica de Cristo. Embora centrada no homem, a salvação, porque é para todos os homens do homem todo — do homem com as suas solidariedades e enquadramen­tos —, alarga-se, por natural consequência, também ao mundo em que os homens vivem e se integram. Na construção deste mundo, não se pode perder de vista o projecto de Deus relativo aos homens, nem desprezar as potencialidades que a fé e a caridade despertam nos cristãos, pondo-os ao serviço das mais altas expressões da verdade, da justiça, da fraternidade e da paz. Apontar as perspectivas do plano divino à concepção dos projectos humanos e infundir na vida social as energias próprias da vida cristã, eis o papel específico que os católicos portugueses podem e devem desempe­nhar, nesta hora cheia de promessas e de riscos, para assegurar ao País um futuro verdadeiramente humano.

 

Propósito da presente carta pastoral

  1. A presente carta pastoral pretende ser uma ajuda à leitura cristã dos últimos acontecimentos da vida portuguesa. Sobre eles importa fazer um juízo segundo os valores do Evangelho e descobrir quais os compro­missos que deve assumir cada cristão português, como exigência da sua vocação de homem e de baptizado. Para a reflexão que propomos, indicamos alguns pontos e esboçamos algumas linhas de pensamento e de conduta. Aos leigos, sobretudo a eles, quer individualmente quer em grupo, compete fazê-la com seriedade, e a partir dela, tomer resoluções que os levem à necessária acção. De novo lembramos palavras repetidas em documentos do Magistério (P. P. 81; O. A. 48): «Os leigos devem assumir como sua tarefa própria a renovação da ordem temporal; se o papel da hierarquia consiste em ensi­nar e interpretar autenticamente os princípios morais que hão-de ser segui­dos neste domínio, pertence aos leigos, pelas suas livres iniciativas e sem esperar passivamente ordens e directrizes, imbuir de espírito cristão a mentalidade e os costumes, as leis e as estruturas da sua comunidade de vida.»

 

  1. Depois de considerarmos, numa primeira parte, alguns aspectos mais salientes da actualidade nacional, indicaremos, nas duas restantes par­tes, o conceito cristão de democracia e os critérios a seguir nas opções políticas que as novas circunstâncias convidam a fazer.

 

O ACTUAL MOMENTO DA VIDA PORTUGUESA

  1. O movimento de 25 de Abril pôs termo a um regime político de quase meio século e abriu ao Povo português a possibilidade de um futuro marcado pelo ideal democrático. Libertadas ou despertas numerosas forças, a vida dos portugueses, em particular nos grandes centros urbanos, entrou numa tal efervescência que mal é possível acompanhar os sucessos de cada dia. Faltam o tempo e a serenidade para refletir sobre o que se passa e lhe descobrir o real significado. É, contudo, necessário fazê-lo. E o nosso primeiro apelo aos cristãos é que não se abandonem ao mero fluir dos acontecimentos, mas, num esforço de observação criteriosa e lúcida, procurem ver o que eles têm de sinais dos tempos apontando para rumos que devam explorar-se.

 

A – Situar na história este momento

  1. Como já no breve comunicado de 26 de Abril dávamos a entender, o que acontece no País é demasiado importante para ser observado ao simples nível dos factos episódicos que diariamente enchem as colunas dos jornais e os noticiários da Rádio e da TV. Em relação aos mais significativos, convém, certamente, fazer uma análise cuidadosa; e adiante nos debruçaremos sobre alguns. Mas a correcta apreciação da hora que passa implica considerá-la de mais longe, situando-a numa perspectiva histórica, indispensável para lhe medir a impor­tância relativa e lhe detectar os dinamismos profundos.

 

O fim de dois períodos históricos

  1. A esta luz, começa a tomar-se consciência de que o momento presente é, na vida nacional, o encerrar simultâneo de dois períodos his­tóricos: o período de meio século— curto na vida da Nação, mas longo na vida dos indivíduos — dominado pelo regime autoritário agora derrubado; e o período superior a cinco séculos — mais de metade da história pátria, viva nos mais profundos estratos da memória popular—iniciado pela epopeia marítima. A alma do povo, com os seus critérios e sentimentos, não pode reagir igualmente ao termo de um e outro destes dois períodos da sua história, e é bom que os saiba distinguir, não obstante os laços circunstanciais, e até certo ponto causais, que os ligam na fase final.

 

  1. O primeiro período, de Maio de 1926 a Abril de 1974, há quem o interprete como resultado de um duplo acidente na caminhada histórica do Povo português: uma experiência de vida democrática mal sucedida, depois de se arrastar por cerca de um século; seguida da instituição de um regime que, sendo acolhido, numa iminência de crise colectiva, como de salvação e renovação nacional, não conseguiu escapar inteiramente à sedução de modelos totalitários em ascensão de prestígio na Europa do tempo. Seria injustiça calar o que de positivo o País lhe deve, como o que de negativo dele herdou. Que os portugueses, atentos às lições do pas­sado, impeçam a repetição de acidentes como estes. Não desejando adiantar juízos que à história pertencem, apenas faremos referência rápida à posição do regime cessante face ao Ultramar, pelas suas incidências na forma como está a encerrar-se o segundo dos períodos em consideração.

 

  1. No clima de exaltação nacionalista em que decorreram os primeiros anos desse regime, reacendeu-se o sonho do Império. Foram acolhidas com geral agrado a Exposição Colonial (Porto, 1934) e a do Mundo Português (Lisboa, 1940), esta integrada nas celebrações do Duplo Centenário da Fundação e Restauração de Portugal. O povo gosta de se rever nas glórias da sua história, e tem razão para isso. Mas importa sobretudo que não perca o sentido da sua marcha. E o futuro dirá se a política centralista, já adoptada anteriormente em diversas ocasiões e retomada pelos novos governantes, não foi contra a corrente que, de longa data, advogava, sem usar a palavra, uma lenta mas progressiva descolonização. Sem menosprezar o surto de progresso verificado sobretudo nos últimos anos, mas sem deixar de ter igualmente em conta a deficiente promoção cultural, social e política das populações locais que o acompanhou, pode perguntar-se se tal política não terá tido um efeito de travagem no processo da natural evolução do Ultramar, precisamente numa altura em que as circunstâncias pediam a sua aceleração. Seja como for, a situação a que se chegou está em boa parte na origem das dificuldades presentes e numa certa sensação de malogro perante aquilo que deveria ser o encerrar feliz de meio milénio de história nacional. Praza a Deus se encontre em breve a solução digna e justa para o ingente e complexo problema do Ultramar, e em todo ele se instaure sem tardar a paz verdadeira que todos ambicionamos. Que o Senhor, que mesmo do mal sabe extrair o bem, tire dos erros dos homens e da história um futuro promissor para os povos a que Portugal quis dar, em partilha sincera, a sua própria alma.

 

Posição da Igreja

  1. Em ambos os períodos referidos, a Igreja marcou uma presença encarnada, como lhe é natural, embora com todos os riscos inerentes. Ninguém desconhece como viveu de perto a gesta marítima, empenhada a fundo numa actividade missionária e civilizadora que, a despeito de todas as sombras que lhe possam apontar, ficou a ser uma das suas mais belas realizações. Na sequência dessa actividade e num momento em que se antevê novo estatuto para os territórios ultramarinos, afirmamos a determinação de manter e fomentar os laços de cordial fraternidade entre as Igrejas metropolitanas e as jovens Igrejas neles instituídas ou a instituir, com troca de serviços, experiências e ajuda pessoal e material, conforme as possibilidades e as necessidades de cada um. E apelamos para que o povo cristão continue a ver na actividade missionária uma obrigação que vincula toda a Igreja e se disponha a responder com redobrado zelo às necessidades futuras das dioceses do Ultramar.

 

  1. Quanto ao período do último meio século, seguiu-se ele, como se sabe, a tempos difíceis para a Igreja em Portugal. Ela não podia deixar de se alegrar com a liberdade, ordem e segurança que o novo regime prometia. Correlações e coincidências de vária ordem ocasionaram uma evolução nalguns aspectos paralela da Igreja e do Estado. As relações entre ambos decorreram, em quase todo o período, num clima de entendimento, sem prejuízo da clara distinção das respectivas competências; em termos, portanto, que é de desejar continuem substancialmente a vigorar.

 

  1. Não deixou a Igreja de sofrer com os defeitos do regime; e tem consciência de ter contribuído para os minorar. Se nem sempre os denunciou publicamente ou da forma por alguns desejada, muitas vezes o fez mediante diligências directas, como julgou mais oportuno ou eficaz, num condicionalismo que não foi único na moderna história da Europa. Aceita, porém, que, tanto ao nível da hierarquia como do laicado, possam pesar sobre ela responsabilidades por erros cometidos ou partilhados. Negá-lo seria desconhecer que, embora o Espírito de Deus a conduza e anime com indefectível assistência, é composta de homens, sujeitos às vicissitudes e limitações da condição terrena. Tem por isso sempre presente o convite evangélico à penitência, que lhe compete ouvir e pregar; e quer entendê-lo no duplo sentido da conversão pessoal dos seus membros a uma vida cristã cada dia mais perfeita, e da renovação das estruturas e actuações pastorais que, à luz do Concílio, for exigida para o cabal desempenho da sua missão.

 

B – Fazer a crítica dos acontecimentos

  1. A perspectiva histórica ajuda-nos, como dissemos, a relativizar os acontecimentos e a detectar os dinamismos profundos que tendem a orientá-los em determinadas direcções. Mas não dispensa a observação crítica dos factos, que, além dos valores que neles descobre, permite igualmente detectar, na sua força evolutiva, dinamismos, porventura novos, que podem mudar o curso à história. E estamos em tempos de grandes viragens. Além disso, são os sucessos quotidianos que mais despertam as atenções de todos. Razões de sobra, portanto, para não nos dispen­sarmos de os apreciar.

 

Claros e escuros

  1. Em primeiro lugar, não há dúvida de que o movimento de 25 de Abril se fez sob o signo da libertação. Operou uma revolução sem derramamento de sangue, proclamou o acesso às liberdades cívicas, reintegrou na comunidade presos e exilados políticos, despertou novas esperanças em largos sectores deprimidos da população, desarmou o ostracismo a que grande parte do mundo nos votava; e, para além destes factos, fez a promessa de um. Portugal novo, a ser construído sobre alicerces demo­cráticos por todos os portugueses. Ora há em tudo isto valores evangélicos, com os quais ninguém deixará de se congratular.

 

  1. Mas nem tudo é luz neste panorama. A sombreá-lo não faltam abusos da liberdade, oportunismos, demagogia, vinganças ou mesmo perseguições; nem manchas a escurecer domínios tão importantes como os da informação, das relações de trabalho ou da vida escolar. Continuam a chegar-nos lamentos e protestos de presos por julgar, de vítimas de «saneamentos» arbitrários, de pessoas e até de sectores da população que denunciam ou temem ultrajes aos seus direitos; e são do conhecimento geral desmandos de grupos extremistas. A par da justa alegria, vive-se também, no Portugal de hoje, a experiência da perplexidade e da insegurança. Não queremos, contudo, sobrevalorizar estes aspectos sombrios, pois em parte resultam do condicionalismo próprio da fase transitória da mutação social em que nos encontramos. À turvação que a caracteriza, confiamos que sucederá o tempo clarificador da sedimentação das ideias e dos valores. E esperamos que os melhores fiquem ao de cima.

 

Problemas graves nesta hora

  1. Além daquilo que de bom a revolução de Abril nos trouxe e também dos males que sempre acompanham a iniciação na liberdade, não podemos esquecer os graves problemas que o País defronta no momento que passa. Basta enumerar os principais para se ficar com uma ideia da sua natureza e magnitude: o destino do Ultramar, a reestruturação política do País e a ameaça de crise económico-social. O peso das suas consequências, como a responsabilidade da sua solução, recaem, não apenas sobre os governantes, mas sobre a Nação inteira. Cada um dos portugueses, com realismo, clarividência, bom senso, coragem e generosidade, deve entrar com a sua quota parte na tarefa ingente de enfrentar e resolver problemas tamanhos.Sobre o problema ultramarino já dissemos atrás uma palavra. Sobre os outros dois, faremos a seguir algumas considerações.

 

A reestruturação política do País

  1. A reestruturação política do País deve entender-se num sentido muito amplo. Não está em jogo apenas a forma de governo. Trata-se de reconstruir a vida política, social, económica e cultural portuguesa segundo modelos novos, que devem, no entanto, fugir à sedução de figurinos estra­nhos à nossa realidade. Preconiza-se a via democrática para o fazer, e não julgamos que outra deva ser seguida, se por ela entendermos, como adiante propomos, aquela que dá a cada cidadão a oportunidade real de tomar parte activa e responsável na escolha e realização do género de sociedade que pretende.

 

  1. Todavia, num são realismo, importa atentar no grau de praticabilidade dos processos desta via. Numa população de fraca iniciação política e sem experiência de democracia, os grupos minoritários, desde que bem treinados na luta pelo poder, facilmente o alcançam, se não encontrarem contendores à altura; e, em nome do povo, da democracia ou da liberdade, acabam por impor soluções que a maioria não deseja. Não faltam já exemplos de assaltos destes a autarquias locais, a empresas públicas e privadas, a órgãos de informação, a estabelecimentos de ensino, a organismos sindicais, etc. Criam-se desta forma situações de facto, irregulares e mesmo ilegais, que num regime normal, respeitador do Direito, os poderes públicos têm o dever de impedir ou sanar. A sua intervenção, porém, não dispensa o esforço urgente da formação democrática do nosso povo, que aliás comporta os riscos duma iniciação experimental como a que se está a verificar.

 

A ameaça de crise económico-social

  1. O terceiro magno problema que o País enfrenta nesta hora é a ameaça de crise económico-social. Sem entrarmos em pormenores técnicos, que não são da nossa competência, julgamos conveniente uma breve referência a fenómenos a todos patentes, que atingem duramente não poucas pessoas, sobretudo das classes economicamente mais débeis do mundo rural e do mundo operário. O relativo desenvolvimento da economia nacional nos últimos anos não beneficiou proporcionalmente as camadas menos favorecidas da população, que se mantiveram numa situação de inferioridade injusta, agravada ainda pela inflação galopante. Consequências, entre outras, temos o agravamento das tensões sociais, o êxodo rural e a emigração em massa. Os contactos pastorais com os emigrantes portugueses espalhados pelo mundo, permitem-nos testemunhar como, de mistura com as alegrias duma certa promoção, sobretudo económica, a emigração proporciona amargas desilusões, sofrimentos e tragédias.

 

  1. Às dificuldades económicas anteriores, vieram juntar-se outras, com origem na situação presente. O clima de efervescência ao princípio referido, o surto de reivindicações e conflitos nas empresas, a intensa actividade sindical, com reuniões quase permanentes, tudo isto, se conseguiu obter para alguns sectores do trabalho a satisfação de direitos ou vantagens reclamadas, originou uma quebra da produção nacional, da qual depende fundamentalmente a riqueza do País. Por outro lado, a estagnação ou a falência de empresas, ocasionadas por conflitos e reivindicações laborais ou por dificuldades financeiras, começaram a provocar um surto de desemprego, que poderá aumentar no caso de regresso significativo de emigrantes, colonos ultramarinos e militares licenciados. Finalmente, um clima de insegurança está a originar perigosa paragem no desenvolvimento económico do País, pela retracção dos investimentos nacionais e estrangeiros e das entradas de divisas dos emigrantes e turistas.

 

Apelo à consciência dos portugueses

  1. Fazemos votos por que o regresso da economia à normalidade, o acerto das medidas tomadas e a tomar, e a entrada em jogo de novos recursos, possam em breve clarear tal panorama. Mas, diante dele, não podemos deixar de apelar para a consciência cívica e para os sentimentos cristãos dos portugueses. Que todos, sobrepondo generosamente o interesse comum aos interesses particulares, e dando-se harmonicamente as mãos, evitem quanto possa contribuir para agravar a situação, retomem com diligência acrescida o ritmo normal das actividades produtivas, e procurem, com espírito de justiça e caridade fraterna, ajudar aqueles que, mais frágeis social e economicamente, foram ou venham a ser as maiores vítimas da crise. Em especial, lembramos aos trabalhadores que tanto as suas reivindicações, mesmo quando fundadas em justos anseios, como o exercício do direito de greve, legítimo em si, estão condicionados pelas exigências do bem comum e pelas possibilidades das empresas e da economia nacional. Aos empresários lembramos igualmente que as mesmas exigências do bem comum tornam ilícitos os procedimentos lesivos dessa economia. Aos poderes públicos e às empresas solicitamos a adopção de todas as medidas susceptíveis de urgentemente criarem novos empregos e bem assim de garantirem a satisfação das necessidades humanas dos desempre­gados e suas famílias. A todos, enfim, recomendamos aquela disciplina de vida e de trabalho e aquela sensatez no uso dos bens económicos, sem as quais não é possível criar riqueza e sobretudo distribuí-la devidamente.

Às organizações católicas que se entregam ao apostolado sócio-caritativo pedimos que se debrucem com inteligência sobre a presente situação e lhe respondam com as expressões mais oportunas de uma caridade inven­tiva e zelosa, em constante apelo à justiça social.

 

CONCEITO CRISTÃO DE DEMOCRACIA

  1. Com o 25 de Abril, de um dia para o outro, a palavra democracia adquiriu entre nós uma voga comparável à que teve pelos fins da guerra de 1939-45 numa Europa que se libertava do nazismo. Ouvimo-la hoje, em tom eufórico, afirmada por muita gente; e se na boca da maioria não terá mais que um significado emocional e vago, noutras exprime ou encobre concepções bem diversas, para não dizer antagónicas. É que há democracia e democracia.

 

A democracia no magistério da Igreja

  1. Já no fim do século passado, noutro surto de euforia democrática, Leão XIII distinguia democracia liberal, democracia socialista e democracia cristã, entendendo-as em sentidos que fizeram o seu tempo. Na célebre rádio-mensagem do Natal de 1944, perto do fim da guerra, Pio XII, com flagrante oportunidade, deixou-nos uma lição de mestre, ainda cheia de actualidade, sobre o conceito cristão de democracia. Mais recentemente, num tempo em que a democracia deixou de ser objecto de polémicas, os documentos dos dois últimos Papas, do Concílio Vaticano II e do Sínodo dos Bispos quase esquecem a palavra, sem deixarem, porém, de lhe aprofundar o conteúdo na dupla direcção dos direitos humanos e da participação activa na vida das comunidades. Temos assim, no magistério da Igreja, ensinamentos abundantes e actuais, de que podemos tirar o conceito cristão de democracia, a que se contrapõem outros, nomeadamente o liberal e o marxista. Mas, antes de passarmos a estes ensinamentos, digamos uma palavra introdutória sobre a democracia e as democracias.

 

O que é democracia

  1. É clássica a definição: «Democracia é o governo do povo, para o povo, pelo povo.» Sem entrarmos em análises minuciosas, diremos que ninguém contesta que o governo seja para o povo, esteja ao serviço dele e não dos governantes; diremos ainda que poucos também contestam que poder venha do povo, explicando os teólogos que tal concepção é perfeitamente compatível com a ideia da origem divina do poder.O problema, teórico e prático, surge quanto ao terceiro ponto: como pode o povo exercer o poder? Pondo de parte, por inviável, o exercício directo do poder, resta o recurso de as funções de governo serem confiadas a governantes que recebem do povo a competente autoridade. A forma de o fazer, a extensão dos poderes, o controlo do seu exer­cício, as relações governantes-governados, tudo isto é que nos aparece con­cebido e realizado em termos muito diversos, correspondendo a diversos con­ceitos de democracia, por sua vez subsidiários das ideias básicas que se tenham sobre o homem, a sociedade e, consequentemente, o estado. Podem reduzir-se a três, que interessa referir; ainda que de forma muito esquemática.

 

Conceito liberai de democracia

  1. O primeiro conceito de democracia inspira-se nas ideias da Revolução Francesa, cujas raízes mergulham em movimentos filosóficos e reli­giosos dos séculos anteriores. Essas ideias acentuam como valor maior, além da igualdade, a liberdade individual. Numa sociedade de indivíduos, sem corpos sociais intermédios, o estado aparece fundamentalmente com a missão de salvaguardar o exercício das liberdades dos cidadãos. É mínimo o seu poder de iniciativa. Esta pertence aos cidadãos. Num sistema de livre concorrência, triunfam os mais hábeis e os mais fortes. No campo económico, este tipo de democracia favorece o capitalismo e dá-lhe suporte ideológico. A ele se deve o rápido aumento da riqueza, mas também a sua desigual repartição. Paradoxalmente, onde a democracia teve realizações mais próximas deste modelo, embora partindo-se do princípio de que todos os homens são iguais, o culto da liberdade individual acabou por efectivamente acentuar entre eles as desigualdades tanto em riqueza como em poder, contrapondo o grupo dos muito ricos à multidão dos muito pobres. A Igreja, desde Leão XIII na «Rerum Novarum» até Paulo VI na Octogesima Adveniens», repetidamente o tem denunciado e condenado na pureza da sua construção ideológica.

 

Conceito marxista de democracia

  1. O segundo conceito de democracia inspira-se no pensamento marxista. Este, dando, corno no capitalismo, o primado ao económico, considera que a fonte de todas as alienações dos homens subsistirá enquanto se não realizar a completa socialização dos meios mais ortodoxa, a conquista revolucionária do poder, a instauração da ditadura do proletariado e a conse­quente extinção de todas as classes. A esta primeira fase, que na óptica dos teorizadores não deve ser demasiado longa, segue-se a fase do socialismo colectivista, em que se irá dando o desaparecimento progressivo das restantes alienações, entre as quais a estatal e a religiosa. Chega-se por fim ao período do comunismo, em que o homem entrará na posse definitiva e edénica de si mesmo, pela recon­ciliação com o seu semelhante, com a natureza e consigo próprio. Presentemente, as realizações marxistas encontram-se nas fases iniciais deste processo, de que são exemplo característico as chamadas democracias populares. Neste conceito de democracia, o poder também parte do povo, entendendo-se aqui por povo nuclearmente as massas trabalhadoras. Delas emergem os militantes e os quadros do partido, conscientes do sentido fatal da história, dispostos a realizá-lo e empenhados na activação da luta de classes. São eles os intérpretes mais autênticos dos interesses e aspirações das massas. O partido, aparelho e fonte directa do poder, estrutura-se em pirâmide a partir das células de base. Os níveis superiores formam-se com elementos do nível imediatamente inferior, por um processo de segregação dos que melhor conseguem captar o pensamento do seu escalão. Este critério de selecção, rigorosamente seguido, explica a forma como, na lógica do sistema, quanto mais alto se está na hierarquia do partido, mais autêntico intérprete se é do pensamento das massas e melhor se sabe conduzi-las. A estas compete obedecer confiadamente. O partido é, evidentemente, único, e detém toda a autoridade, que exerce sob a forma de governo ditatorial, aliás de acordo com a exigência da eficácia revolucionária própria da ideologia marxista. Segundo a Igreja, não só esta ideologia é condenável, dados os seus pressupostos materialistas e ateus, mas há ainda uma incompatibilidade profunda entre o conceito marxista de democracia e o conceito cristão.

Conceito cristão de democracia

  1. Finalmente, este conceito cristão de democracia parte da ideia do homem como pessoa, livre e responsável, com destino próprio e transcendente, mas essencialmente solidário dos outros homens. Esta solidariedade exprime-se pela natural Integração em grupos sociais, desde a família ao estado, passando pela escola, empresa, sindicato, igreja, comunidades cívicas, etc. Nesta concepção de democracia, o estado não se limita a uma função policial nem é senhor omnipotente, como nas democracias dos dois primeiros tipos; mas, entre extremos, desempenha o papel importante na vida dos homens de promover o bem comum, no respeito da competência dos organismos intermédios e suprindo as suas eventuais carências. Através de órgãos de diálogo e de participação, entre os quais se destacam os meios de comunicação social, os partidos políticos e os sindicatos, todos e cada um dos homens tomam parte activa e responsável nos diversos escalões da vida social. O conceito cristão de democracia, brotando simultaneamente da vida de afirmações doutrinais que a interpretam, aparece-nos com um realismo e com uma verdade que não se encontram nos outros. Aliás, na prática, as outras democracias, nas suas realizações concretas, tendem cada vez mais a encontrar na concepção cristã as formas que mitiguem a rigidez dos seus esquemas teóricos.

Povo e massa

  1. Democracia e povo são realidades correlativas. Na já referida mensagem natalícia, Pio XII distingue luminosamente povo de massa. «Esta, diz, é a inimiga capital da verdadeira democracia e do seu ideal de liberdade e igualdade». Na massa, explica depois, a liberdade degenera em pretensão tirânica de dar livre curso aos impulsos e apetites humanos, sem respeito pelos demais; a igualdade degenera em nivelamento mecânico, em uniformidade de cor única. O sentimento de honra, a actividade pessoal, o respeito da tra­dição, a dignidade própria, numa palavra, tudo o que dá à vida o seu valor, tudo isso pouco a pouco se vai diluindo e desaparece. Apenas ficam, de um lado, a multidão dos enganados, e do outro, os oportunistas e os exploradores que, pela força do dinheiro, ou da organização, se guindaram, não democrática mas demagogicamente, às posições de privilégio ou de poder.

 

Exigências da sã democracia

  1. Na concepção cristã, a democracia, mais que simples forma de governo das nações, é um sistema de vida social em que o homem, longe de ser considerado simples objecto ou elemento passivo, é, pelo contrário, sujeito, fundamento e fim de todas as expressões dessa vida. Para haver tal democracia é necessário um certo grau de maturidade, cultural e cívica dos cidadãos. Nas sociedades politicamente subdesenvolvidas, a democracia é utópica; e uma introdução extemporânea dos proces­sos democráticos facilmente degenera numa anarquia que abre caminho às ditaduras. A maturidade dos cidadãos que a democracia verdadeira supõe, revela-se na capacidade de ter opiniões justas, de saber expressá-las convenientemente, e de as fazer valer de maneira conforme ao bem comum; e isto em todos os níveis da vida comunitária dos homens, nos quais se encontrarão estruturas de diálogo e participação normais numa sociedade democrática.

 

  1. A verdadeira democracia não sacrifica os homens de hoje à utopia duma sociedade futura. Encarna primordialmente o homem: o homem como pessoa; respeita a sua dignidade e os seus direitos; encara-o nos seus enquadramentos sociais, a começar pela família; sabe ouvi-lo sobre os deveres e sacrifícios que o bem comum lhe pede; e dele suscita uma participação responsável na vida da comunidade. Isto exige da parte das pessoas um alto sentido de serviço, quer do serviço da autoridade nos que são chamados a exercer cargos de mando, quer no serviço da obediência colaborante em todos; sentido de serviço que supõe uma apurada consciência moral e um forte sentido de solidariedade fraterna. É sobretudo a este nível das bases espirituais da verdadeira demo­cracia, que a Igreja tem papel importante a desempenhar na sua realização.

 

Espírito cristão da sã democracia

  1. Um doutrinador cristão da democracia vai ao ponto de dizer que «não há espírito democrático que não seja de inspiração evangélica, ou que possa subsistir sem essa inspiração». E desenvolvendo esta ideia, conclui que a vivência da democracia é de tal modo exigente que só é possível graças a uma inspiração e a uma fé heróicas, como só Jesus Cristo suscita no mundo. (Cf. Maritain, «Christianisme et démocratie», p. 55-56). No mesmo sentido, Pio XII, na já citada mensagem afirma que «a Igreja tem a missão de anunciar, a um mundo ávido de formas cada vez melhores mais perfeitas de democracia, a mais alta e a mais necessária das mensagens: a dignidade do homem e a sua vocação de filho de Deus». Diremos assim, a esta luz, que a Igreja muito contribui para os fundamentos e realização da democracia, pela denúncia de todas as idolatrias, pelo evangelho da fraternidade que prega, pela consciência que dá aos homens da sua dignidade, dos seus direitos e dos seus deveres, e pelo empenho que põe no triunfo da verdade, da justiça, do amor e da paz no mundo em que vivemos.

 

Construir a sã democracia

  1. Por esta democracia não hesitamos em declarar-nos; e a todos convidamos ao esforço comum por a realizar entre nós, fazendo-a descobrir ao nosso povo, cultivando o espírito que a deve animar e colaborando com inteligência e generosidade na construção das estruturas necessárias para lhe dar forma em todos os níveis e sectores da vida do País. Destas estruturas, as circunstâncias actuais convidam-nos a focar duas, que têm lugar decisivo na educação do povo para a democracia: o ensino livre e os meios de comunicação social.

 

Democracia e ensino livre

  1. A primeira é o ensino. Na perspectiva cristã de democracia, a maior exigência é que ele faça de cada homem uma pessoa, com tudo o que esta palavra encerra de consciência de si e sentido dos outros. O autêntico ensino, na linha da educação familiar, forma personalidades e cria solidariedades. Não actua portanto à maneira fabril, de produção em série; mas sim no pleno respeito das pessoas e das famílias, e das respectivas opções ideológicas e religiosas. O monopólio estatal do ensino poderá estar na lógica marxista das democracias populares; mas não da verdadeira democracia que advogamos. Nesta, como aliás podemos ver nos países de maior prestígio democrático, o ensino é primordialmente livre, competindo ao estado apoiá-lo e suprir as suas lacunas com as estruturas do ensino oficial. No concreto da situação portuguesa, queremos manifestar a esperança — que é desejo e confiança — de que, na actual abertura democrática, o Estado assegure as condições legais, financeiras e de equiparação pedagógica, indispensáveis para a existência digna, embora sem privilégios, dum ensino livre. Temo-lo como um direito das famílias, conforme o Concílio claramente o afirma na Declaração sobre a Liberdade Religiosa (D.H. 5). Que todos aqueles que assim pensam, e em primeiro lugar os pais e educadores cristãos, o façam valer, recorrendo aos meios próprios da democracia.

 

Democracia e meios de comunicação social

  1. A segunda instituição referida é a dos meios de comunicação social, com destaque para os órgãos de Informação diária. Se os queremos ao serviço da opinião pública, e não da massificação do povo ou de interesses de sector, é preciso que, entre nós, evoluam para uma liberdade e dignidade maiores. Neles ainda se não afirmam com a generalidade e clareza bastantes, nem a sã diversidade própria duma informação livre, nem a seriedade incompatível com processos irresponsáveis, ataques injuriosos ou difamantes e abertura a propagandas corrosivas. É de lamentar a audiência que alguns órgãos dão a campanhas libertárias e libertinas, que vão da sistemática difusão de ideias materialistas à pornografia mais degradante. O repúdio do sistema da censura não exclui a necessidade de uma justa regulamentação da liberdade de imprensa. Não basta, porém. Num contexto democrático, essa liberdade assenta sobretudo na consciência profissional dos homens da informação e no sentido crítico do público. Apelamos, pois, para que os jornalistas cristãos, dando-se as mãos, se empenhem, com os outros, na promoção duma imprensa cada vez mais digna; apelamos para que os educadores e todos os que estiverem em condições de o fazer, se entreguem à tarefa urgente de iniciar o público no uso criterioso dos vários meios de comunicação social e na forma de actuar perante o que de bom e mau eles difundem; e apelamos ainda para que os católicos apoiem com inteligência e generosidade os órgãos de infor­mação de inspiração cristã.

 

O CRISTÃO E A OPÇÃO PARTIDÁRIA

  1. O movimento de 25 de Abril, ao abrir as portas à democracia, lançou aos portugueses o desafio de serem eles a escolher e construir o Portugal de amanhã. Que ninguém, cristão e português, iluda tal desafio, fugindo a uma obrigação de que terá de dar contas tanto a Deus como às gerações futuras.

 

O Portugal de amanhã

Uma pergunta de capital importância surge desde logo: que Portugal construir? Está em jogo um projecto fundamental, e começam a pulular os modelos concebidos à luz de ideologias e quiçá de interesses de grupo. Queremos que o País seja uma democracia; mas que democracia? Nas páginas anteriores ficaram apontados vários géneros; qual escolher? Dentro de cada um, muitas concretizações são possíveis; por qual optar? Uma tarefa gigantesca de reflexão e inventiva está reservada aos portugueses. E, se nenhum deles se lhe pode furtar, muito menos os cristãos, que, no dizer de Cristo, tem de ser, onde estiverem, o sal da terra e a luz do mundo. Portugal há-de continuar a ser cristão. Estamos convictos de que é este o desejo íntimo da maioria dos seus filhos.

 

Pluralidade de opções políticas

  1. A opção por um Portugal cristão limita, é certo, o vasto campo das hipóteses, a excluir aquelas que assentam numa concepção do homem e da sociedade incompatível com o pensamento evangélico. Mas não dirime a procura, que tem de prosseguir até às formas que, parecendo as mais adequadas, forem possíveis. Uma pluralidade de opções está à vista. E se temos de nos habituar à ideia de que portugueses nossos irmãos optem por soluções para nós inaceitáveis, temos de admitir também que, mesma entre cristãos, sem prejuízo da unidade da fé e caridade, são lícitas e normais as divergências políticas.

 

  1. A pluralidade de opções no domínio da política — como, aliás, na generalidade dos outros domínios da vida humana — é expressão normal de uma liberdade que se encontra condicionada pelas limitações da inteligência e da vontade e pelas mais diversas circunstâncias da existência. Ninguém tem o conhecimento perfeito, nem do ideal a prosseguir, nem da situação de que se parte, nem das possibilidades que se oferecem, nem dos melhores caminhos a seguir. E menos ainda aqueles a quem não foi dado mover-se à vontade nos diversos campos em que se joga a vida, pública. Mas esta mesma impossibilidade radical da certeza infalível nas opções políticas, tem a inestimável vantagem de, sem ofender a consciência, permitir os ajustamentos e acordos inevitáveis no jogo político em regime democrático.

 

Procura das opções partidárias

  1. Neste regime, as opções políticas dos cidadãos, teoricamente tantas quantas eles são, encontram nos partidos as possibilidades de aglutinação e esclarecimento. Cada pessoa, confrontando as suas ideias, tantas vezes parcelares e confusas, com um qualquer programa partidário, descobre programas de partidos diversos, vê-se impelido a uma salutar atitude crítica. E se continuar a procurar com seriedade e afinco, poderá chegar suficientemente consciente e livre. Há, porém, a fraqueza e a malícia dos homens. A ignorância, a inércia, a leviandade, a preguiça, por um lado, e as propagandas, promessas e manobras inábeis ou desleais, por outro, acabam, na prática, por roubar ao processo democrático boa parte da verdade que a teoria lhe confere. Mas há que contar com isso.

 

  1. Aproxima-se, pois, para os portugueses, a altura de se definirem politicamente, num contexto de pluralismo e confronto partidário a que não estavam habituados. Sem inovarmos em matéria mais que esclarecida pelo magistério comum da Igreja, tentaremos, nas páginas seguintes, orientá-los da maneira mais clara e simples que pudermos.

 

Cumprir os deveres cívicos

  1. Em primeiro lugar, ninguém se deve furtar ao cumprimento dos seus deveres cívicos. Entre eles conta-se o de votar, quando legitimamente chamado a manifestar a sua posição. Este dever assume particular significado num regime verdadeiramente democrático e pode ser grave quando o resultado do sufrágio for de importância decisiva. Faz parte do dever de votar, o inscrever-se a tempo nos cadernos eleitorais, verificando se na verdade a inscrição se encontra feita; e sobretudo o votar bem, que o mesmo é dizer, votar depois de haver procurado e conseguido aquele esclarecimento necessário a uma opção quanto possí­vel certa e responsável.

 

A filiação partidária

  1. Se todo o cidadão se deve comprometer politicamente, nem todos o farão de igual forma. Assim, relativamente aos partidos políticos nem todos estão obrigados a uma filiação, e menos ainda a uma acção militante. Mas não devem recusar uma ou outra coisa aqueles para quem isso aparecer como serviço útil ou necessário ao País. Os cristãos conscientes devem ser nesta matéria particularmente generosos, por amor da Pátria e da Igreja.

 

A hierarquia e os partidos

  1. A Igreja não tem partido ou partidos seus. E a hierarquia, salvo casos extremos, não tem que apontar aos cristãos os programas ou os partidos que devem perfilhar ou recusar. Não é da sua competência, nem seria respeitar a liberdade dos cidadãos, que apregoa. Concomitantemente, importa recordar que nenhum partido ou movimento político se pode legitimamente arvorar em defensor exclusivo ou privilegiado do pensamento e interesses da Igreja.

 

Limites às opções dos cristãos

  1. Se os cristãos são livres nas suas opções partidárias, essa liberdade tem limites. Estão-lhe vedadas as opções que impliquem adesão a princípios ou tomadas de posição incompatíveis com o cristianismo que professam. É questão de coerência. Essa incompatibilidade pode surgir dos programas ou, de maneira mais subtil, das ideologias e projectos que os inspiram.

 

Critérios de escolha do partido

  1. Na escolha de um partido, é de ter em conta, genericamente, o seguinte: a qualidade dos princípios e do sistema que serve; a sua viabilidade e oportunidade no caso concreto que está em jogo; as garantias que a organização partidária oferece de fidelidade e eficiência na acção; e, extrinsecamente ao partido, as exigências do bem comum, que podem pedir em favor deste o sacrifício das preferências partidárias. Devem ter-se ainda em conta, especificadamente, o programa do partido e a ideologia que o inspira. Importa considerar estes dois pontos em especial.

 

Discernimento sobre programas partidários

  1. A concordância de um programa com os ensinamentos sociais da Igreja é, para o cristão, um dos principais critérios de opção partidária. Em particular, não lhe merecem confiança os programas que não assegurem o respeito dos valores humanos e cristãos mais fundamentais, como: a religião e a liberdade de a praticar; a vida humana, espiritual e física,posta a salvo da ignorância, da miséria, das discriminações, das várias formas de coacção, do aborto e demais atentados contra ela; a família, fundada no matrimónio uno e indissolúvel, e apoiada na sua missão de educar os filhos, nomeadamente num sistema de ensino livre; o trabalho a livre iniciativa, em termos de realização pessoal e de contribuição para o bem comum; a propriedade privada, mesmo de bens de produção, na linha da justa liberdade e independência da pessoa e com as limitações exigidas pela sua função social; os direitos da verdade e à verdade, com as liberdades de pensamento e expressão, e com a exigência de uma informação objectiva; a participação na vida pública, no exercício efectivo das liberdades políticas; a justiça ao alcance de todos, para a defesa imparcial e eficaz dos direitos das pessoas físicas e morais. Esta lista, meramente evocativa, convida à procura cuidadosa daquelas balizas dentro das quais o cristão pode encontrar o programa ou programas partidários por que optar.

 

A consideração das ideologias

  1. Pode acontecer que o programa de um partido não traduza o seu projecto verdadeiro, ou por estratégia ou por se referir a uma fase apenas desse projecto. Para além do programa, interessa por isso considerar ainda a eventualidade de, por detrás dele, se encontrar uma ideologia ou jogo de interesses, condicionantes da opção. De facto, na actual panorâmica partidária entre nós, apesar de ainda por definir completamente, não é difícil descobrir correntes e formações que bebem a inspiração em ideologias incompatíveis com o pensamento cristão.

 

Ideologias e movimentos históricos

  1. É certo, como já disse o Papa João XXIII na encíclica «Pacem in Terris» e repetiu o actual Pontífice na carta apostólica «Octogesima Adveniens», que «não devemos identificar falsas teorias filosóficas sobre a natureza, a origem e o fim do universo e do homem, com movimentos históricos baseados numa finalidade económica, social, cultural ou política, embora estes últimos tenham tido a sua origem e continuem a haurir a sua inspiração nessas teorias filosóficas. A doutrina, uma vez formulada, é aquilo que é, não muda; ao passo que os movimentos, dado que têm por objecto condições concretas e mutáveis da vida, não podem deixar de sofrer o influxo profundo dessa evolução. De resto, na medida em que estes movi mentos estão em conformidade com as normas da recta razão e interpretam as justas aspirações humanas, quem ousará negar que neles possa haver elementos positivos e dignos de aprovação?» (O.A. 30).

 

  1. Tal distinção é justa, e não sem consequências práticas, porquanto, nela baseados, encontramos, nos casos em que é legítimo aplicar-se, católicos de recta consciência a militar em partidos ou movimentos que, no nome ou na inspiração original, apelam para ideologias que um católico não pode globalmente perfilhar. Impõe-se, porém, um discernimento cuidadoso. «O cristão haurirá nas fontes da sua fé e no ensino da Igreja os princípios e os critérios oportunos, para evitar deixar-se fascinar e depois aprisionar num sistema, cujas limitações e cujo totalitarismo ele se arriscará a ver só quando é já demasiado tarde, se não se apercebe deles nas suas origens.» Esta regra prudencial, dá-no-la o Santo Padre Paulo VI na mesma carta apostólica (O.A. 36), depois de fazer uma rápida apreciação das principais correntes ideológicas do nosso tempo, o socialismo, o marxismo e o liberalismo, renovando as reservas e as condenações que o magistério católico nunca deixou de lhes fazer. Todo este documento, aliás, é do maior interesse para quantos pretendem sintonizar as suas ideias sociais e políticas com os ensinamentos da Igreja nestes domínios.

 

O cristão e o socialismo

  1. Não pode negar-se que muitos «cristãos, hoje em dia, sentem-se atraídos pelas correntes socialistas e pelas suas diversas evoluções. Nelas procuram descobrir um certo número de aspirações que acalentam em nome da sua fé». Atraídos pelo socialismo, têm tendência para o idealizar, aliás em termos muito genéricos: desejo de justiça, de solidariedade e de igualdade; e recusam-se a reconhecer as pressões dos movimentos históricos socialistas que permanecem condicionados pelas suas ideologias de origem. Deve reconhecer-se que nem todos os socialismos que hoje correm pelo mundo e nos podem bater à porta, estão dominados por organizações e ideologias inaceitáveis para um cristão. É necessário por isso fazer um esforço de discernimento. Só depois se poderá «estabelecer o grau de compromisso possível nessa causa, salvaguardados os valores, principalmente da liberdade, da responsabilidade e da abertura ao espiritual, que garantam o desabrochar integral do homem» (O.A. 31).

 

O cristão e o marxismo

  1. O juízo sobre a ideologia marxista é muito mais rigoroso. «O seu materialismo ateu, a sua dialéctica da violência, a maneira como absorve a liberdade individual na colectividade, negando simultaneamente toda e qualquer transcendência ao homem e à história pessoal e colectiva», são tomadas de posição que «se opõem, radicalmente ou em pontos essenciais, à fé do cristão e à sua concepção do homem» (cf. O.A. 26). Infelizmente, nem por isso o marxismo, nas suas diversas expressões, deixa de atrair certos cristãos, que, menos atentos à lógica interna desta ideologia e à fidelidade que o sistema lhe guarda, perguntam se não serão aceitáveis certos aspectos específicos de que o marxismo se reveste nas suas concretizações. Não podemos deixar de lhes responder com o Papa que «seria ilusório, e até perigoso, chegar-se ao ponto de esquecer a ligação íntima que os une radicalmente, e de aceitar os elementos de análise do marxismo sem conhecer as suas relações com a ideologia, e ainda de entrar na prática da luta de classes e da sua interpretação marxista, esquecendo-se de atender ao tipo de sociedade totalitária e violenta a que conduz este processo». (Cf. O.A. 34.)

 

O cristão e o liberalismo

52 .É também inaceitável para o cristão o liberalismo, «que crê exaltar a liberdade individual, subtraindo-a a toda a limitação, estimulando-a com a busca exclusiva do interesse e do poderio, e considerando, por outro lado, as solidariedades sociais como consequências mais ou menos automáticas das iniciativas individuais, e não já como um fim e um critério mais alto do valor e da organização social» (0.A. 26). Esta ideologia tem servido um capitalismo lesivo dos direitos das classes trabalhadoras e da dignidade de um público manipulado pelas propagandas de consumo; e revive hoje em novas expressões dum capitalismo à escala mundial, nas «empresas multinacionais que, dada a concentração e flexibilidade dos seus meios, podem levar por diante estratégias autónomas, em boa parte independentes dos poderes públicos na­cionais, e portanto sem controlo do ponto de vista do bem comum (…), levando assim a nova forma abusiva da dominação económica nos campos social, cultural e político» (0.A. 44). Apesar disso, também o liberalismo continua a seduzir não poucos cristãos. «Esta corrente procura afirmar-se, tanto em nome da eficiência económica, como para defender o indivíduo contra a ingerência progressiva das organizações, como ainda contra as tendências totalitárias dos poderes políticos». Levados pela «propensão para idealizar o liberalismo, vendo-o como uma proclamação da liberdade», os cristãos «esquecem facilmente que, nas suas raízes, o liberalismo filosófico é uma afirmação errónea da autonomia do indivíduo, na sua actividade, nas suas motivações e no exercício da sua liberdade». (Cf. O.A. 35.) Também aqui, portanto, se impõe um discernimento que distinga os valores e contra-valores dos sistemas que se inspiram nesta ideologia.

 

Apelo à afirmação política dos cristãos

  1. Julgámos que não devíamos deixar de fazer esta referência crítica às principais ideologias hoje mais correntes, num momento em que o País se vê invadido pela sua propaganda e assaltado por movimentos que nelas encontram a orientação e o dinamismo. Nem podemos ocultar a preocupação que nos causa ver como as massas populares, perigosamente despolitizadas, estão a ser intensa e habilmente trabalhadas por alguns desses movimentos, ao mesmo tempo que tardam ou ainda não atingiram projecção plena aqueles que podem vir a dar garantias de respeito pelo pensamento social cristão. Apelamos, pois, para a presença activa dos católicos, ao lado de todos os homens de boa vontade, nas primeiras linhas da luta pelo Portugal de amanhã: nos partidos, sim, mas também nos sindicatos, nos meios de comunicação social, nos centros de cultura, etc. É palavra de ordem que assumam os seus compromissos temporais, sem excluir uma tomada de posição política definida. Assumam-nos de forma consciente, livre, generosa e responsável. Conformem-se com os princípios da doutrina social da Igreja e com as orientações da hierarquia; mas, como já dissemos no começo desta carta pastoral, não se quedem à espera de indicações concretas que a hierarquia não pode nem deve dar.

 

Indicações de carácter pastoral

  1. Além e antes das opções partidárias, promovam os católicos iniciativas de esclarecimento e de iniciação ou formação político-social das várias camadas da população, em ordem à conscientização dos respectivos direitos e deveres cívicos e seu exercício adequado.

 

  1. Nestas iniciativas, na medida em que se enquadram na formação geral da consciência cristã dos leigos, podem ou devem ter parte activa os sacerdotes. Abstenham-se, no entanto, por exigências de ordem pastoral, de atitudes e actividades partidárias, lembrados de que o padre não pode ser nem aparecer como homem de partido. Além de outras razões, esta restrição resulta da identificação espontânea que se é levado a fazer entre o ministro da Igreja e a própria Igreja. Ora, esta não deve imiscuir-se no terreno das opções livres, quer por não ser da sua competência, quer por respeito pela liberdade cívica dos cristãos quer ainda para não prejudicar a sua missão de lugar de reunião, concórdia e unidade entre quantos, por sobre as divergências e lutas partidárias, querem ser e chamar-se irmãos.

 

  1. Considerem também todos a esta luz as restrições postas ao uso, por grupos e movimentos partidários, mesmo de cristãos, dos salões paroquiais e outros espaços da Igreja, que só devem servir para as actividades de convívio, cultura, apostolado e caridade próprias do povo de Deus como tal.

 

CONCLUSÃO

  1. Quando o País se vê na premência de encontrar novos rumos na sua caminhada histórica, impõe-se aos portugueses reavivar a consciência de povo com personalidade bem definida, para descobrir, na fidelidade às grandes constantes do seu passado, os caminhos certos do seu futuro. Para isso, não podem desperdiçar a oportunidade presente. Antes, num espírito de verdadeira fraternidade, que supere o que os divide e mobilize o que os une, saibam responder ao desafio desta hora com a inteligência e o vigor de que repetidamente deram provas nos oito séculos da sua vida colectiva.

 

  1. Como no passado, a Igreja estará presente neste momento decisivo da história de Portugal, que é em grande parte também a sua própria história. Estará presente com lealdade e espírito de serviço. Liberta hoje de compromissos de ordem temporal que os séculos passados lhe pediram que assumisse, ela está consciente de que o seu contributo para a marcha do País se confina ao essencial da sua missão. Que, para o perfeito cumprimento desta missão, nela brilhe, entre todos os seus membros, aquela unidade na caridade que é, no mundo em que vive, sinal de credibilidade e fermento de conversão.

 

  1. A nossa última palavra será de confiança. Confiança no bom senso do povo português, que saberá descobrir o rumo exacto na encruzilhada histórica em que se encontra; confiança na capacidade de ideal e de generosidade da sua juventude, que tão grande parte tem na construção do Portugal de amanhã; confiança na força do testemunho evangélico e da acção apostólica dum clero e dum laicado entregues, em união Com os seus Bispos, à tarefa da iluminação e animação cristãs dessa construção; confiança, enfim, na misericordiosa assistência divina, alcançada pela intercessão da Virgem Santa Maria.

Lisboa, 16 de Julho de 1974

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