A Eucaristia, dom de Deus para a vida do mundo

Documento Teológico de Base para o Congresso Eucarístico Internacional de Quebeque. Canadá – 2008 Introdução “Fazer a memória de Deus hoje” O Congresso Eucarístico Internacional de Junho de 2008 em Quebeque oferecerá à Igreja local e à Igreja universal um tempo forte de oração e de reflexão para celebrar o dom da Sagrada Eucaristia. Sendo o 49º na série de congressos que marcaram a vida da Igreja no espaço de um século, o Congresso de Quebeque coincidirá com o 400º aniversário da fundação da primeira cidade francesa na América do Norte, chamada a tornar-se no século XVII um posto missionário importante para o conjunto do continente. O Congresso Eucarístico será uma Statio Orbis, expressão que significa uma celebração da Igreja Universal através do convite da Igreja local de Quebeque, para fazer memória do dom de Deus que é a eucaristia oferecida a toda a humanidade. A cidade de Quebeque, com a sua divisa “O Dom de Deus, farei render”, está no coração da história de um povo cujo lema proclama: “Recordo-me”. Esta divisa recorda a palavra que Jesus deixou aos seus apóstolos na última Ceia: “Fazei isto em memória de mim” A Eucaristia recorda a Páscoa do Senhor, é o seu “memorial” no sentido bíblico do termo que significa não somente recordação mas presença do acontecimento salvífico. O Congresso Eucarístico será uma ocasião privilegiada para prestar homenagem a este dom de Deus no centro da vida cristã e para recordar as raízes cristãs de muitos países que esperam uma nova evangelização. A Eucaristia alimentou o anúncio do Evangelho e o encontro das civilizações europeia e autóctone neste continente. Ela permanece ainda hoje como fermento de cultura e uma garantia de esperança para o futuro do mundo em vias de globalização. “A aspiração do mundo por liberdade e amor” O tema central do Congresso aprovado pelo papa Bento XVI é: A Eucaristia, dom de Deus para a vida do mundo. É particularmente importante fazer memória hoje do dom de Deus, porque o mundo actual conhece, no meio de progressos técnicos notáveis, nomeadamente no domínio das comunicações, um vazio interior dramático, vivido como uma ausência de Deus. Fascinado pelas suas próprias exibições criativas, o homem contemporâneo tende com efeito a esquecer o seu Criador e a colocar-se como o único senhor do seu próprio destino. Esta tentação de substituir Deus não anula contudo a aspiração de infinito que o habita e os valores autênticos que ele se esforça por cultivar, mesmo que tragam riscos de desvio. O apreço pela liberdade, o cuidado pela igualdade, o ideal da solidariedade, a abertura à comunicação sem fronteiras, a capacidade técnica e a protecção do ambiente são valores inegáveis que suscitam a admiração, honram o mundo actual e produzem frutos de justiça e fraternidade. “O drama dum humanismo que esqueceu Deus” Além disso, o esquecimento do Criador leva ao risco de fechar o homem em si mesmo, num egocentrismo que cria incapacidade de amar e de se comprometer de maneira estável, conduzindo a uma frustração crescente da aspiração universal ao amor e à liberdade. Por que o homem, criado à imagem de Deus e para a comunhão com Ele, “não pode plenamente encontrar-se senão pelo dom desinteressado de si mesmo” (1). O desabrochar da sua personalidade passa pelo dom de si mesmo que significa abertura ao outro, acolhimento e respeito da vida. Mas o homem de hoje rejeita sem cessar os limites postos ao seu domínio na transmissão e no fim da vida. A intromissão descontrolada sobre este poder de vida e de morte, embora tecnicamente possível, ameaça perigosamente o próprio homem. Porque, usando a forte expressão do papa João Paulo II, uma “cultura de morte” impõe-se em muitas sociedades secularizadas. A morte de Deus na cultura conduz quase inevitavelmente à morte do homem, o que pode ser constatado não somente nas correntes de pensamento nihilista, mas sobretudo nas relações conflituais e nos fenómenos de ruptura que se multiplicam a todos os níveis da experiência humana, perturbando o casamento e a família, multiplicando os conflitos étnicos e sociais e aumentando o afastamento entre ricos e a imensa maioria dos pobres. Apesar da consciência mais afinada sobre a dignidade do homem e dos seus direitos, assiste-se à multiplicação da violação destes direitos um pouco por todo o planeta; acumulam-se as armas de destruição maciça, contradizendo os discursos de paz; uma concentração crescente de bens materiais em poucas mãos, hipoteca o fenómeno da globalização, enquanto as necessidades fundamentais das massas empobrecidas são vergonhosamente ignoradas. A paz do mundo está ameaçada pela injustiça e a miséria, e o terrorismo torna-se cada vez mais a arma dos desesperados. No plano religioso, o homem de hoje não quer mais submeter-se como outrora a uma autoridade que lhe dite o seu procedimento. Vê-se confrontado pela circulação de informação com uma multidão de crenças e com uma dificuldade crescente de transmitir às novas gerações a herança recebida da sua própria tradição religiosa. A fé cristã não é excepção, muito mais ainda quando a sua transmissão assenta sobre uma revelação que escapa ao controle da razão. Cioso do bem excelente que é a sua própria liberdade, o homem elabora a sua própria espiritualidade desligada da religião, cedendo assim por vezes à inclinação excessivamente individualista das culturas democráticas contemporâneas. A sagrada eucaristia contém o essencial da resposta cristã ao drama de um humanismo que perdeu a sua referência constitutiva a Deus criador e salvador. Ela é a memória de Deus em acto de salvação. Memorial da morte e ressurreição de Jesus Cristo ela traz ao mundo o Evangelho da paz definitiva, que permanece contudo um objecto de esperança na vida presente. Celebrando a sagrada eucaristia, em nome de toda a humanidade resgatada por Jesus Cristo, a Igreja acolhe o dom de Deus que ele prometeu: “O Espírito Santo que o Pai enviará em meu nome vos ensinará todas as coisas e vos recordará tudo o que vos disse” (Jo 14,26). É o próprio Deus que em definitivo, recorda a aliança com a humanidade e que se dá em alimento de vida eterna. “Ele recorda-se do seu amor”, canta a Virgem Maria no seu Magnificat (Lc 1,54). I PARTE A Sagrada Eucaristia, o Dom de Deus I – A Eucaristia, Dom de Deus por excelência A. – No centro e no cume da história da salvação “A Igreja recebeu a Eucaristia de Cristo seu Senhor não como um dom, por precioso que ele seja, entre muito outros, mas como o dom por excelência, porque ele é o dom de si mesmo, da sua pessoa na sua santa humanidade, e da sua obra de salvação”. (2) O servo de Deus João Paulo II concluiu e coroou o seu longo pontificado durante o Ano da Eucaristia que ele instituiu na sequência da sua encíclica Ecclesia de Eucharistia. Ele queria reavivar no coração da Igreja a admiração pelo dom por excelência, da sagrada eucaristia e suscitar uma renovação da adoração deste sacramento que contém a própria Pessoa do Senhor Jesus na sua humanidade. O Sínodo dos Bispos em Outubro de 2005 sobre a Eucaristia na vida e missão da Igreja prolongou e aprofundou a reflexão sobre as implicações pastorais do mistério eucarístico. Este dom por excelência foi longamente preparado por Deus na história da salvação. A sagrada eucaristia recapitula e coroa com efeito, uma multidão de dons de Deus feitos à humanidade depois da criação do mundo. Ela leva à sua realização o desígnio de Deus de estabelecer uma aliança definitiva com a humanidade; apesar de ser uma história trágica de pecado e de rejeição que permanece desde as origens, Deus instaura concretamente, por este sacramento, a nova aliança selada no sangue de Cristo. Esta aliança sela definitivamente uma longa história da aliança entre Deus e o povo nascido de Abraão, nosso pai na fé. Como a celebração da Páscoa judaica no tempo da Promessa, a sagrada eucaristia acompanha a peregrinação do povo de Deus na história da nova aliança. Ela é um memorial vivo do dom que Jesus Cristo fez do seu corpo e do seu sangue para resgatar a humanidade do pecado e da morte e comunicar-lhe a vida eterna. Na sua liturgia e na sua oração milenárias, o povo judeu aprendeu a celebrar a grandeza do seu Deus Santo, criador e libertador. A Páscoa esteve sempre no centro da liturgia que recorda de geração em geração o acontecimento do Êxodo: “Esse dia vos servirá de memorial” (Ex 12.14) Celebrada por gerações de crentes, ela relaciona-se com o acontecimento fundador da primeira aliança: a saída do Egipto do povo hebreu e a passagem do Mar Vermelho graças à intervenção do Senhor Deus: “Israel viu a mão poderosa com que o Senhor actuou contra o Egipto. O povo temeu o Senhor, e acreditou nele e em Moisés seu servo” (Ex 14,31). Este acontecimento fundacional iria ser selado no Sinai pelo dom sagrado da Lei e o compromisso do povo:”Eis o sangue da aliança que o Senhor concluiu convosco, mediante todas estas palavras” (Ex 24,8). E o povo respondeu: “ Tudo o que o Senhor disse, nós o poremos em prática” Esta primeira “passagem” duma parte da humanidade da escravidão para a liberdade anunciava e preparava a intervenção decisiva do Deus vivo e Pai em favor da humanidade, o envio da sua última Palavra, pessoal e definitiva, na incarnação do Verbo. Então, num momento particular da história humana “a graça de Deus manifestou-se para salvação de todos os homens”. (Tt 2,11) A memória reconhecida da Igreja proclama-o: “De tal modo amastes o mundo, Pai santo, que chegada a plenitude dos tempos, nos enviastes como Salvador o vosso Filho Unigénito” (3) A vinda do Verbo à nossa carne, marca o cume do dom que Deus faz de si mesmo: “Muitas vezes e de muitos modos, falou Deus aos nossos pais, nos tempos antigos, por meio dos profetas. Nestes dias, que são os últimos, Deus falou-nos por meio do Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, e por meio de quem fez o mundo”(Heb 1,1-2). A epístola aos Hebreus mostra que a incarnação do Filho de Deus e a oferenda sacrificial da sua vida fundam e estabelecem o culto da nova aliança no seu sangue. Este culto instaurado por Jesus Cristo leva a seu cumprimento os esboços do culto da primeira aliança, oferecendo um só sacrifício, válido uma vez por todas, mas diferente dos sacrifícios de animais da antiga Lei, porque é o Sacrifício do Cordeiro sem mancha, “que se oferece ao Pai no Espírito eterno”, “para que prestemos culto ao Deus vivo”(Heb 9,14) Este culto eterno, Cristo torna-o presente no nosso tempo e no nosso espaço pela sagrada eucaristia, cume do dom de Deus, Verbo feito carne e Espírito vivificante na fonte do culto da nova aliança. B. A instituição da Sagrada Eucaristia “O nosso Salvador instituiu na última Ceia, na noite em que foi entregue, o sacrifício eucarístico do seu Corpo e do seu Sangue para perpetuar pelo decorrer dos séculos, até Ele voltar, o Sacrifício da cruz, confiando à Igreja, sua esposa amada, o memorial da sua morte e ressurreição: sacramento de piedade, sinal de unidade, vínculo de caridade, banquete pascal em que se recebe Cristo, a alma se enche de graça e nos é concedido o penhor da glória futura.” (4) O que o Salvador instituiu na noite em que foi entregue, é o dom de si mesmo, levado pelo seu amor extremo: “Antes da festa da Páscoa, Jesus, sabendo bem que tinha chegado a sua hora da passagem deste mundo para o Pai, Ele, que amara os seus que estavam no mundo, levou o seu amor por eles até ao extremo”(Jo 13,1). A instituição da sagrada eucaristia, é o dom do Amor em Pessoa, é Deus que se dá a si mesmo no sacramento da Páscoa de Cristo. Jesus institui este sacramento por um rito que perpetua o dom da sua vida em sacrifício de expiação pelos pecados e traduz este seu sentido por um gesto de serviço, o lava-pés. A refeição memorial da Páscoa judaica permitia ao povo de Israel recordar a sua aliança com Deus e de reviver pelo rito a intervenção real e eficaz de Deus na sua história. Na tarde de quinta-feira santa, Jesus sabe que leva ao seu cumprimento o memorial da refeição pascal judaica: toma o pão, pronuncia a bênção e diz. “Tomai e comei todos: ‘Este é o meu corpo entregue por vós’”; depois toma o cálice com vinho e diz: “Tomai e bebei todos: ‘Este é o meu sangue derramado por vós’”. Fazei isto em memória de mim. Por estes gestos e palavras, Jesus institui um novo rito, o seu rito pascal, pelo qual ele se substitui ao cordeiro tradicional dando-se e sacrificando-se por amor. O seu acto de amor realiza a nova aliança no seu sangue, libertando a humanidade do pecado e da morte. É sempre impelido por este mesmo amor que Cristo ressuscitado, no poder do seu Espírito, actualiza o dom da sua eucaristia cada vez que a Igreja celebra o rito que dele recebeu na última Ceia, na véspera da Paixão. Celebrando este rito sacramental, a Igreja está intimamente associada à oferenda de Jesus Cristo e portanto ao exercício da sua função sacerdotal para o culto de Deus e salvação da Humanidade. “Em tão grande obra que permite que Deus seja perfeitamente glorificado e que os homens se santifiquem, Cristo associa sempre a si a Igreja, sua esposa muito amada, a qual invoca o seu Senhor e por meio dele rende culto ao Eterno Pai.” (5) A instituição da eucaristia contém em si um profundo mistério que transcende a nossa capacidade de compreensão e as nossas categorias. É o mistério da fé, por excelência. A Igreja alimenta-se dela sem cessar, porque dela vem a sua razão de vida e a sua razão de ser. Na última Ceia, Jesus entrega-lhe como presente a sua presença sacramental, que é uma presença “real e substancial ”(6), embora escondida sob os humildes sinais do pão e do vinho. Deu-lhe acolhimento perpétuo, brotando sem cessar do seu Coração eucarístico, a sua declaração de amor e o dom do seu corpo e sangue como um acontecimento sempre novo que estava a ponto de se produzir. É este o sentido profundo do “memorial” que, como já acontecia na tradição judaica, tem o sentido de acontecimento objectivo e não somente o de um acto subjectivo da memória do passado. A celebração do memorial mergulha os participantes no mistério da Páscoa do Senhor. II – A Eucaristia, memorial do mistério pascal A. O memorial da Páscoa de Cristo, um dom trinitário Qual é portanto o conteúdo deste memorial que a Igreja desde as origens celebra como o dom por excelência do Senhor ? Jesus estabeleceu a forma essencial na última Ceia pronunciando as palavras da instituição sobre o pão e o vinho para os mudar no seu corpo e no seu sangue. Mas este acto de dom pessoal de Cristo encerra um conteúdo inesgotável do qual nunca se acabará de aprofundar porque contém toda a sua Páscoa, isto é, a sua oferenda de amor ao Pai até à morte na cruz e ressurreição de entre os mortos pelo poder do Espírito Santo. Quando a Igreja celebra a Eucaristia, acolhe o dom de Cristo que se entrega nas mãos dos pecadores por obediência à vontade do Pai. S. Paulo proclama solenemente no hino aos Filipenses: “Tornando-se semelhante aos homens e sendo, ao manifestar-se identificado como homem, rebaixou-se a si mesmo, tornando-se obediente até à morte e morte de cruz. Por isso mesmo é que Deus o elevou acima de tudo e lhe concedeu o nome que está acima de todo o nome, para que, ao nome de Jesus, se dobrem todos os joelhos, os dos seres que estão no céu, na terra, e debaixo da terra; e toda a língua proclame: ‘Jesus Cristo é o Senhor !’ para glória de Deus Pai ” (Fl 2,8-11). A Igreja acolhe assim o dom que o Pai faz ao mundo do seu Filho único, incarnado e crucificado: “Tanto amou Deus o mundo, que lhe entregou o seu Filho Unigénito, a fim de que todo o que nele crê não se perca, mas tenha a vida eterna” (Jo 3,16). “Vede como a magnífica generosidade de Deus rivaliza com os homens, – exclama Orígenes: Abraão ofereceu a Deus um filho mortal que não devia morrer. Deus entregou à morte pelos homens um Filho imortal.” (7) O sacrifício de Isaac na antiga aliança anunciava e preparava o sacrifício por excelência da nova aliança, a do verdadeiro Cordeiro. O acto de amor do Filho que se entrega corresponde perfeitamente ao acto de amor do Pai que o entrega, e esta perfeita correspondência do amor do Pai e do Filho a nosso respeito é confirmada pelo Espírito Santo que ressuscita Cristo de entre os mortos. O Espírito confirma com a sua autoridade divina esta pregação e seus gestos, justificando ao mesmo tempo o assentimento total requerido pela fé cristã. Eis o centro da Boa Nova que a Igreja anuncia a todas as nações desde as origens e que ela celebra em cada eucaristia: “O Evangelho de Deus, com respeito a seu Filho, nascido da linhagem de David segundo a carne, estabelece o Filho de Deus com poder segundo o Espírito de santidade, pela sua ressurreição de entre os mortos, Jesus Cristo nosso Senhor”. (Rm 1,4) O dom por excelência da eucaristia torna presente Cristo ressuscitado com toda a sua vida e o seu mistério pascal. É um dom trinitário que opera a reconciliação do mundo com Deus pelo oferecimento do amor do Filho até à morte e pela sua ressurreição que confirma a vitória do amor trinitário sobre o pecado e a morte. O Espírito Santo confirma a perfeita comunhão do Pai com o Filho no centro do mistério pascal pelo seu próprio dom que, glorificando o Filho, glorifica assim também o Pai que o envia. É por isto que a comunhão dos fiéis no corpo e sangue de Cristo é também uma comunhão no Espírito Santo. Santo Efrém escreve: “Chamou o pão seu corpo vivo, encheu-o de Si próprio e do seu Espírito […] E aquele que o come com fé, come Fogo e Espírito. […] Tomai, comei-o todos; e, com ele, comei o Espírito Santo. De facto, é verdadeiramente o meu corpo, e quem o come viverá eternamente”(8) B. O sacrifício pascal “Porque é o memorial da Páscoa de Cristo, a Eucaristia é também um sacrifício,” lembra-no-lo com insistência o Catecismo da Igreja Católica (9). “Por eles, sacrifico-me a mim mesmo”, confia Jesus aos seus discípulos na sua última oração (Jo 17,18). Uma vez chegada a sua hora, Jesus não se esquiva à vontade do Pai; ele ama o Pai e entrega-se livremente nas mãos dos homens por amor de seu Pai e por amor dos pecadores. A eucaristia é o memorial deste sacrifício, isto é, deste acto de amor redentor que restabelece a comunhão da humanidade com Deus suprimindo o obstáculo levantado pelo pecado do mundo. A desobediência incessante do homem rompeu a relação de aliança com Deus ao longo da história. A obediência de amor de Cristo resgata todas as desobediências culpáveis dos filhos e filhas de Adão. “Sacrifício que o Pai aceitou, retribuindo esta doação total de seu Filho, que “se fez obediente até à morte” (Fl 2,8), com a sua doação paterna, ou seja, com o dom da nova vida imortal na ressurreição”. (10) Esta troca restabeleceu a comunicação e a comunhão entre o céu e a terra, entre Deus, que é Amor, e a humanidade, que é chamada a comunicar o seu amor pela fé. O sacrifício de Cristo é portanto um sacrifício pascal, um dom total de si mesmo, que faz “passar” toda a humanidade da escravidão do pecado para a liberdade dos filhos de Deus. “Em verdade, em verdade vos digo, quem comer a minha carne e beber o meu sangue tem a vida eterna e Eu hei-de ressuscitá-lo no último dia “ (Jo 6,54) Este verdadeiro sacrifício acarreta para o Filho de Deus uma carga incomensurável de sofrimentos, incluindo a sua descida ao abismo da morte. Os Evangelhos referem alguns aspectos da Paixão de Jesus que revelam o abismo do seu sofrimento e do seu amor. A sede do Senhor na cruz, as suas feridas, o abandono, o grande grito e o seu coração trespassado deixam adivinhar de certa maneira todos os sofrimentos corporais, morais e espirituais. “Na sua morte de cruz, escreve o papa Bento XVI, cumpre-se aquele virar-se de Deus contra si próprio, com o qual Ele se entrega para levantar o ser humano e salvá-lo – o amor na sua forma mais radical” (11) Contemplando este amor sofredor e agonizante na cruz, aprendemos a medir o amor sem medida do seu coração e adivinhamos a imensidade do dom do santíssimo sacramento da eucaristia. À luz desta doutrina vê-se ainda melhor a razão pela qual a vida sacramental da Igreja e de cada cristão atinge o seu cume e plenitude na eucaristia. Neste sacramento, com efeito, o mistério de Cristo oferecendo-se a si mesmo em sacrifício ao Pai no altar da cruz, renova-se continuamente pela sua vontade. E o Pai responde a esta sua oferenda pela vida nova do Ressuscitado. Esta vida nova manifestada na glorificação corporal de Cristo crucificado, tornou-se sinal eficaz do dom novo feito à humanidade. “ A ressurreição de Cristo é muito mais; trata-se duma realidade diferente. Ela é – se podemos por uma vez utilizar a linguagem da teoria da evolução – a maior mutação, o salto absolutamente mais decisivo numa dimensão totalmente nova que jamais tinha acontecido ao longo da história da vida e os seus progressos: um salto duma ordem completamente nova, que nos diz respeito a nós e a toda a história” (12) A eucaristia como memorial da morte e ressurreição do Senhor faz muito mais que recordar um acontecimento passado; representa sacramentalmente um acontecimento sempre actual, pois a oferenda de amor de Jesus na cruz foi aceite pelo Pai e glorificada pelo Espírito Santo. Esta oferenda transcende por consequência o tempo e o espaço e por vontade explícita do Senhor, permanece sempre disponível para a fé da Igreja. Fazei isto em memória de mim. Quando a Igreja celebra o banquete eucarístico, ela não faz “como se” fosse a primeira vez. Ela acolhe o acontecimento definitivo, escatológico, “ o acontecimento de amor único” que está sempre em vias de se produzir para nós. Este banquete de Amor tem a sua substância inesgotável no sacrifício de amor do Filho de Deus feito homem que foi exaltado e intercede para sempre a nosso favor. II Parte A Eucaristia, Nova Aliança III – A Eucaristia edifica a Igreja, sacramento da salvação O dom por excelência da eucaristia é um mistério de aliança, um mistério nupcial entre Deus e a humanidade. O Deus vivo com ele faz renascer sem cessar a sua Igreja como povo reunido, como Corpo e Esposa de Cristo, como comunidade viva que é ao mesmo tempo uma só Pessoa mística com ele. “Congratulemo-nos, pois, e dêmos graças, exclama S. Agostinho, pelo facto de nos termos tornado não apenas cristãos, mas o próprio Cristo” (13) A Igreja é com efeito o povo da nova aliança inseparável da eucaristia, como o corpo é inseparável da cabeça, como a esposa vive do dom do seu esposo. Como herdeira e associada ao mistério eucarístico, a Igreja, animada pelo Espírito e modelada pela fé de Maria, participa no dom de Deus no mundo. Ela mesma é como um sacramento, isto é, “o sinal e o instrumento da íntima união com Deus e de unidade de todo o género humano.”(14) Com efeito, é o sacramento universal da comunhão trinitária dada ao mundo. A. O dom da Igreja – comunhão a) Maria, primeira Igreja e mulher eucarística O dom de Deus ao mundo é realizado devido a uma mulher, bendita entre todas as mulheres, que acreditou e que se entregou sem condições à Palavra misteriosa do seu Senhor: Maria de Nazaré é a mulher por excelência que respondeu “sim” ao Deus da aliança, realizando assim na Anunciação o cumprimento da Filha de Sião, a Igreja nascente. O seu “sim” acompanhou a incarnação do Verbo de Deus desde o primeiro momento da sua concepção até à morte e ressurreição. Nenhuma outra criatura possui uma memória tão concreta do Verbo que se fez carne até à sua carne eucarística. Nenhum outro ser humano sabe tão perfeitamente o que significa misericórdia, perdão, compaixão e sofrimento do Amor redentor. Nada se diz da presença de Maria na Ceia, quando o rito da nova aliança foi instituído, mas estava de pé junto à cruz, onde foi consumado o santo sacrifício do Cordeiro que tira o pecado do mundo. Ela é a mulher eucarística por excelência (15), a nova Eva toda disponibilidade para deixar livre curso à fecundidade do novo Adão. Mater Dei et Mater Ecclesiae. Nela e por ela, a Igreja comunga desde já perfeitamente na cruz, na oferenda sacrificial do Filho de Deus. Prometida como ela para a glória de ser esposa do Cordeiro, a Igreja contempla Maria ao pé da cruz como um ícone doloroso e glorioso do seu próprio mistério de comunhão. Com a Virgem imaculada que se torna então na mãe fecunda de toda a humanidade reconciliada, a Igreja aprende a comungar o amor redentor e nupcial do Cordeiro imolado, por pura graça do Deus-Amor. b) Povo de Deus e sacramento de salvação É no quadro da refeição eucarística que a Igreja acolhe e realiza de maneira privilegiada o seu profundo mistério de comunhão. O dom de Jesus que ela comemora por fidelidade à sua Palavra, funda e alimenta a relação de aliança que ela vive com ele, em nome de toda a humanidade. O banquete pascal de Jesus introdu-la no Seu amor trinitário, que reenvia para a fonte primeira que é o Pai e para o dom último que é o Espírito Santo. É o Pai, com feito, que convoca a humanidade para o banquete de núpcias de seu Filho (Mt 22,1-14), banquete pascal, onde ele mesmo serve o Cordeiro imolado desde a criação do mundo e o cálice do Reino que comunica a embriaguez do Espírito de que fala S. Pedro no dia do Pentecostes. Dando assim à Igreja o seu Filho e o seu Espírito, o Pai associa a Igreja ao seu mistério de amor e fecundidade. Ele a exalta e enobrece, acolhendo-a à sua própria mesa celeste onde o Amor é o único manjar e a fonte eterna de Vida. A Igreja, mistério de comunhão trinitária destinada a todos os homens, é sacramento de salvação enquanto povo de Deus congregado na unidade. Este povo é convocado por Deus e ordenado pelo seu Espírito, de acordo com as diversas funções hierárquicas e segundo os múltiplos ministérios carismáticos para serviço da nova aliança. Ele exprime a sua plena vitalidade eclesial e assegura a sua unidade pela comunhão sacramental dos seus membros no corpo e sangue de Cristo. “Alimentando-nos do Corpo e Sangue do vosso Filho, cheios do seu Espírito Santo, sejamos em Cristo um só corpo e um só espírito” (16) Em cada missa, a oração da epiclese retoma a oração do próprio Jesus pela unidade dos seus discípulos: “ Eu dei-lhes a glória que Tu me deste, de modo que sejam um, como Nós somos Um” (Jo 17,22). O Espírito Santo que desce sobre as oferendas e sobre a assembleia é esta glória da comunhão trinitária que actua em cada eucaristia. É por isso que a Igreja, povo de Deus e sacramento de salvação, deve ser convocada e reunida por ele, para se abrir à compreensão das Escrituras, e deixar-se reconciliar sem cessar e comungar a Vida Eterna desde este mundo, pela virtude do sacramento da Páscoa. c) A Esposa do Cordeiro e o Corpo de Cristo Para se dar ao mundo neste mistério da aliança, Deus conta com a Igreja, sua humilde ‘esposa’. Mesmo pobre e frágil por causa dos pecados de seus filhos, a Igreja compromete-se pela penitência e pela sagrada eucaristia, na renovação constante da graça do seu baptismo. Ela deve cada vez mais esforçar-se por se purificar e reformar tanto quanto ela tenha consciência de abrigar em si o mistério da comunhão do Deus três vezes santo e de ser chamada a corresponder duma maneira não somente exemplar mas também ‘nupcial’. Porque “toda a vida cristã é marcada pelo amor esponsal de Cristo e da Igreja. Já o Baptismo, entrada para o grémio do povo de Deus, é um mistério nupcial: é, por assim dizer, o banho de núpcias (Ef 5,26-27) que precede o banquete nupcial, a Eucaristia” (17) No ponto culminante da oração da anáfora, a Igreja coloca esta exclamação na boca do seu ministro: “Mistério da fé !” Este grito de júbilo reconhece o acontecimento que está em vias de produzir-se, (NT*)a saber, a conversão do pão e do vinho no corpo e no sangue de Cristo, pelo poder do Espírito Santo. Reconhece também o mistério da nova aliança, o encontro nupcial de Cristo-esposo que se dá e a Igreja-esposa que o acolhe e se une à sua oferenda. Pelo poder da sua Palavra e da epiclese sobre as espécies eucarísticas, Cristo vivo, de quem anunciamos a morte até que venha, une-se à comunidade eclesial como seu corpo e sua esposa. Ele transforma a oferenda da comunidade reunida no seu próprio corpo e dá-lhe em comunhão o seu corpo eucarístico como prenda nupcial. “É grande este mistério”, exclama o apóstolo Paulo, pensando na união de Cristo e da Igreja, como modelo e o mistério do casamento sacramental (Ef 5,32) S. Ambrósio vê na eucaristia “a prenda nupcial” de Cristo à sua Esposa e na comunhão o beijo de Amor. E Cabasilas pode justamente observar: “ ‘Este mistério é grande’, diz o bem-aventurado Paulo para exaltar esta união. Porque é então o matrimónio tão exaltado quando o Esposo puríssimo desposa a Igreja como virgem. É aqui que Cristo “alimenta” o coro daqueles que o rodeiam, e é por este único sacramento que “nós somos carne da sua carne e ossos dos seus ossos” (18) A eucaristia lança-nos na oferenda de Jesus. Não receberemos somente o Logos incarnado de maneira estática, mas somos envolvidos na dinâmica da sua oferenda. A imagem do casamento entre Deus e Israel torna-se realidade de uma maneira extraordinariamente inconcebível: aquilo que era estar diante de Deus torna-se agora, através da participação na oferenda de Jesus, a participação no seu corpo e sangue; torna-se união. A mística do sacramento, que se baseia no abaixamento de Deus em direcção a nós, tem um alcance muito superior e mais profundo do que qualquer outra elevação mística humana o poderia conduzir” (19) B. A resposta eucarística da Igreja a) Crer e amar como Maria, em Jesus O dom de Deus no banquete do amor, leva o compromisso da Igreja partilhar esse dom com a humanidade inteira, que é chamada a tornar-se Corpo e esposa de Cristo. A primeira homenagem da Igreja a este mistério é o de uma fé plena, admirativa e adoradora. Porque, ao mistério do dom eucarístico por excelência do mesmo Deus, deve corresponder o mistério de fé por excelência como adesão total e plena de gratidão da Igreja, unida à fé imaculada de Maria. A missão do Espírito Santo é justamente assegurar esta correspondência nupcial entre a actualização perpétua do mistério eucarístico e o acolhimento da Igreja que alimenta assim a esperança do mundo pelo seu testemunho. A primeira forma de partilha que brota imediatamente do coração eucarístico de Jesus é o novo mandamento do amor: ”Assim como vos amei, assim vos deveis amar uns aos outros” (Jo 13,34) Este mandamento é novo porque a sua medida não é amar o próximo como a si mesmo, mas como Jesus amou. É novo, porque ele põe a exigência essencial de entrar na comunidade escatológica dos discípulos que estão unidos a Ele pela fé; também o é, na medida em que requer humildade e uma vontade de serviço que conduz a tomar o último lugar e a morrer pelos outros. “A plenitude do amor com que nos devemos estimar mutuamente, irmãos muito amados, o Senhor o definiu quando disse: “ Não há maior amor do que dar a vida pelos seus amigos”. – Daqui se segue o que o próprio evangelista S. João diz na sua carta: “ Da mesma maneira que Cristo deu a vida por nós, da mesma maneira devemos dar a nossa vida pelos irmãos”. Sim, devemos amar-nos mutuamente como ele nos amou, Ele que deu a vida por nós”(20) “A união com Cristo é ao mesmo tempo união com todos aqueles aos quais ele se dá. Não posso ter Cristo para mim somente; não posso pertencer-lhe senão em união com todos os que se tornaram ou tornarão seus. A comunhão leva-me para fora de mim mesmo em direcção a Ele e ao mesmo tempo, para a unidade com todos os cristãos. Tornámo-nos um só corpo, fundidos numa única existência. O amor de Deus e o amor do próximo estão agora verdadeiramente unidos: o Deus incarnado atrai-nos todos a si. A partir desta realidade compreendemos agora como o agapé de Deus se tornou um nome de eucaristia: em conclusão, o agapé de Deus vem a nós corporalmente para continuar a sua obra em nós, através de nós. É somente a partir deste fundamento cristológico e sacramental, que se poderá compreender correctamente o ensinamento de Jesus sobre o amor “ (21) b) Deixar-se reconciliar na unidade A celebração da eucaristia desperta a responsabilidade dos discípulos de Cristo face à sua própria e permanente necessidade de se reconciliar e de ser artífices de reconciliação. Exprimem-no pelo recurso ao sacramento da reconciliação que purifica o seu coração pela comunhão eucarística e na decisão que tomam de se acolherem nas suas diferenças culturais e opções de vida. Exprimem-se também na sua procura de perdão na oração de intercessão por todos na oração do Senhor, na troca do abraço da paz, na partilha de um só pão e dum só cálice, no cuidado de levar a comunhão aos doentes ou no tornar-se solidários dos pobres e dos marginais. Quantos sinais deste amor fraterno se procuram viver na assembleia eucarística e se constroem sem cessar no Corpo de Cristo: “Se vos amardes uns aos outros, todos reconhecerão que sois meus discípulos” (Jo 13,35) “Uma só e única Igreja foi instituída por Cristo, Senhor. E portanto, as várias comunhões cristãs apresentam-se aos homens como as verdadeiras herdeiras de Jesus Cristo. É porém certo que esta divisão não corresponde à vontade de Cristo. É para o mundo um motivo de escândalo e torna-se obstáculo à mais santa das causas: a pregação do Evangelho a toda a criatura”. (22) O facto de por todo o mundo as Igrejas cristãs estarem separadas para cumprir o memorial do Senhor mostra as divergências históricas e doutrinais, impossíveis de calar ou ignorar. Unidos por um só e mesmo baptismo, os discípulos de Cristo não podem esquecer as consequências das suas divisões sobre o testemunho individual ou colectivo que dão ao mundo. Tomar consciência de que não podem reunir-se todos em plena comunhão à volta da mesma mesa, sentir-se atingidos pelo enfraquecimento do testemunho missionário que daí brota, abre os corações à busca de uma reconciliação entre todos os membros do Corpo de Cristo para que “sejam um” (Jo 17,11). Cada eucaristia é celebrada na expectativa e esperança da reunião no único povo de Deus à volta da única mesa do Senhor. c) Reunir-se ao domingo, Dia do Senhor A Igreja é a comunidade dos discípulos que professam a sua pertença ao Senhor pela prática do amor fraterno para todos e do amor mútuo como sinal distintivo. Não se pode amar com o mesmo amor como ele ama sem receber este amor constantemente d’Ele. O seu mandamento novo não é um simples ideal moral oferecido à nossa liberdade. É uma aliança, um amor partilhado entre o Senhor e os seus discípulos, que cresceu e se expandiu pelo mundo com a condição de ser constantemente alimentado na fonte da eucaristia dominical. O Senhor manifestou-se a primeira vez na tarde de Páscoa no Cenáculo, depois voltou oito dias depois para o encontro com Tomé, o incrédulo. Estas aparições confirmaram a fé dos discípulos e preparou-os para a nova forma de presença do Senhor nos sacramentos e de uma maneira muito especial na eucaristia dominical. “Celebramos o domingo por causa da venerável ressurreição do Senhor Jesus Cristo, não somente na Páscoa, mas em cada ciclo semanal”; é assim que se exprime no começo do séc.V, o papa Inocêncio I, testemunhando uma prática já bem arreigada que se desenvolveu desde os primeiros anos que se seguiram à ressurreição do Senhor. S. Basílio fala do “santo domingo, honrado pela ressurreição do Senhor, primícias de todos os outros dias”. S. Agostinho chama ao domingo “o sacramento da Páscoa”(23) O domingo é o dia em que, mais do que em nenhum outro, o cristão é chamado a lembrar-se da salvação que lhe foi oferecida no baptismo e que fez dele um homem novo em Cristo. “Sepultados com ele pelo baptismo estais ressuscitados por ele, porque acreditastes na força de Deus que o ressuscitou dos mortos” (Cl 2, 12; Cf Rm 6, 4-6). A presença do cristão na reunião da Igreja para a eucaristia dominical não obedece primeiramente a um preceito. É o testemunho de identidade do baptizado e portanto da sua pertença ao Senhor. Esta pertença traduz-se na escuta da palavra de Deus, na participação na oferenda e na comunhão no amor do Senhor. Importa hoje re-evangelizar o domingo, porque em muitos lugares o seu sentido foi obscurecido pela pressão de uma cultura individualista e materialista. Como redescobrir o sentido da reunião dos discípulos à volta do Senhor ressuscitado ? Recordando as origens cristãs não faltam testemunhos eloquentes. No princípio do séc. IV, na África do Norte, alguns cristãos preferiram deixar-se morrer a deixar-se viver sem domingo, isto é sem o Senhor que eles encontravam celebrando a sagrada eucaristia.Estes mártires da Abitínia interpelam-nos nestes inícios do terceiro milénio e intercedem por nós afim de descobrirmos a riqueza do encontro vital com o Senhor ressuscitado que se dá na eucaristia. O mundo espera este testemunho da Igreja reunida, sacramento de salvação, do qual se alimenta secretamente III Parte Pela Vida do Mundo A Igreja, como partícipe do Senhor ressuscitado, vive do dom de Deus e une-se a Jesus Cristo, soberano sacerdote, na comunicação deste dom à humanidade. O mundo beneficia da caridade dos cristãos e também do culto da Igreja que glorifica a Deus intercedendo pelo mundo. Dialoga com Deus no culto ou com o mundo na missão; a Igreja não vive para si mesma, mas para aquele que “veio para que tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10) A sua vida é um testemunho da Vida do Senhor dada em partilha na sagrada eucaristia. IV – A Eucaristia, Vida de Cristo nas nossas vidas A) O culto espiritual dos baptizados “ Pelo baptismo, os homens são enxertados no mistério pascal de Cristo: mortos com ele, sepultados com ele, ressuscitados com ele: recebem o Espírito de adopção dos filhos” no qual clamamos Abba – Pai” (Rm 8,15) e eles tornam-se assim verdadeiros adoradores que buscam o Pai” (24). “O baptismo é imersão total na água asfixiante da morte, de onde se emerge na alegria de respirar de novo, de respirar o Espírito. Porque a água, que era causa de morte se tornou vivificante, incorpora agora, segundo o seu simbolismo natural, o poder de ressurreição do Espírito (25). O baptismo na fé da Igreja introduz o fiel na experiência do mistério pascal de Jesus Cristo, que é morte para o pecado e vida para Deus. A imersão simboliza a morte e a emersão simboliza a vida nova do cristão que se compromete a seguir Jesus Cristo na obediência ao Pai pelo poder do Espírito Santo. É por isso que Paulo exorta os baptizados a viverem uma vida nova. “Exorto-vos irmãos, pela misericórdia de Deus, a que ofereçais os vossos corpos como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus. Seja este o vosso verdadeiro culto, o espiritual” (Rm 12,1). Este culto espiritual consiste, na visão paulina, no oferecimento total de si mesmo em união com toda a Igreja. Significa uma vida totalmente renovada: “Quer comais, quer bebais, quer façais qualquer outra coisa, fazei tudo para glória de Deus” (1Cor 10,31). “Não vos acomodeis a este mundo. Pelo contrário deixai-vos transformar, adquirindo uma nova mentalidade, para poderdes discernir qual é a vontade de Deus” (Rm 12,2). Este culto novo manifesta-se por outro lado na humildade e no serviço, “e de acordo com a medida da fé que Deus distribuiu a cada um”(Rm 12,3). Porque, continua o apóstolo, “é que, como num só corpo, temos muitos membros, mas os membros não têm todos a mesma função, assim acontece connosco: os muitos que somos formamos um só corpo em Cristo, mas individualmente, somos membros que pertencem uns aos outros.” (Rm 12,4) O culto espiritual consiste em exercer o seu próprio carisma em espírito de solidariedade e de serviço humilde, com um amor sincero, na alegria e quanto possível na paz com todos. E o apóstolo conclui lembrando a luta constante que deve conduzir o cristão contra as forças do mal.: “Não te deixes vencer pelo mal, mas vence o mal com o bem” (Rm 12,21). “O sacrifício mais agradável a Deus, escreve S. Cipriano, é a nossa paz e a concórdia fraterna, e um povo cuja união seja o reflexo da unidade que existe entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo” (26) A Vida de Cristo, que alimenta a nossa oferenda pela eucaristia, torna-nos semelhantes a ele e disponíveis para os outros, na unidade de um só Corpo e dum só Espírito. Ele transforma a comunidade num templo vivo de Deus para o culto da nova aliança: “É o vosso próprio mistério que colocais para vós na mesa do Senhor; é o vosso mistério que recebeis. É a afirmação daquilo que sois (o Corpo de Cristo) ao qual respondeis : “Ámen”, e a vossa resposta é como que a vossa assinatura” “Eis o sacrifício dos cristãos: serem todos um só Corpo em Jesus Cristo. É o mistério que a Igreja celebra no sacramento do altar, onde aprende a oferecer-se a si mesma na oblação que faz a Deus” (27) B) A verdadeira adoração A celebração eucarística torna presente Cristo no acto de adoração por excelência que é a sua morte sobre a cruz. Pelo seu acto de amor absoluto até à morte, Cristo volta para o Pai com a humanidade reconciliada e obtém para todos o Espírito de amor e de paz que anima a adoração da Igreja em espírito e verdade. Por ele, com ele e nele, é toda a Igreja que é adoradora, em nome da humanidade resgatada. O acto de adoração por excelência de Cristo e da Igreja realiza-se na oferenda do santo sacrifício in Persona Christi, Caput et Corpus, como diz S. Agostinho, incluindo a participação activa dos fiéis neste mistério de louvor, de acção de graças e de comunhão. Esta participação, primordialmente interior, exprime-se nas palavras e nos gestos: na resposta às palavras do presidente, na escuta da Palavra, no canto, na oração universal, nas aclamações eucarísticas e muito particularmente no ámen; na comunhão do pão da vida, e também no cálice da salvação. Em tudo isto se exprime o sacerdócio real dos baptizados, consagração da sua dignidade primeira e inalienável de seres humanos. O acto de adoração de Cristo e da Igreja na celebração eucarística não cessa todavia com a acção litúrgica, prolonga-se na presença sacramental permanente, impulsionando à participação dos fiéis pela adoração do Santíssimo Sacramento. A adoração eucarística fora da missa prolonga o memorial, convidando os fiéis a permanecer junto do Senhor presente no santíssimo sacramento: “O Mestre está ali e chama-te”. (Jo 11,28) Pela adoração eucarística os fiéis reconhecem a presença real do Senhor e unem-se ao seu acto de oferecimento ao Pai. A sua adoração participa da sua, de certa maneira, pois é por ele, com ele e nele que toda a oração e adoração sobem para o Pai e lhe são agradáveis por ele. Cristo que anuncia à Samaritana que o Pai procura adoradores em espírito e verdade (Jo 4,23-26) não é ele mesmo o primeiro adorador e o que vai à frente de todos os adoradores e adoradoras ? (Hb 12, 2,24) “Esperando o Cristo Senhor eles gozam da sua íntima familiaridade e, diante dele expandem o seu coração, para si mesmos e para todos os seus, rezam pela paz e a salvação do mundo. Oferendo a sua vida inteira ao Pai com Cristo no Espírito Santo, colocam nesta admirável permuta um acrescentamento à sua fé, esperança e caridade”. (28) “É bom conversar com ele e debruçados sobre o seu peito, como o discípulo amado, (Jo 13,25) ser tocados pelo amor infinito do seu coração. Se, no nosso tempo, o cristianismo deve distinguir-se sobretudo pela arte da oração, como não sentir a necessidade renovada de permanecer longamente em conversação espiritual, em admiração silenciosa, em atitude de amor diante de Cristo presente no santíssimo sacramento” (29) Esta “arte da oração” que João Paulo II associa à adoração eucarística conhece uma retoma de fervor nos nossos dias um pouco por toda a Igreja, aumentando dum mesmo impulso o seu testemunho de amor de Deus e a sua intercessão pelas necessidades do mundo. A prática da adoração reforça com efeito nos fiéis o sentido do sagrado na celebração eucarística que infelizmente está baixando em certos meios. Porque reconhecer a presença divina nas santas espécies, fora da missa, contribui para cultivar a participação activa e interior dos fiéis na celebração e os ajuda a ver mais do que um rito social. Os frutos da adoração eucarística tocam assim o culto espiritual de toda a vida que consiste no cumprimento quotidiano da vontade de Deus. Contemplar Cristo no estado de oferenda e de imolação no santíssimo sacramento leva a dar-se sem limites, activa e passivamente, a dar-se até ser dado como pão eucarístico que passa de mão em mão na santa comunhão. Aquele que é visitado e adorado no tabernáculo, não ensinará a ser perseverante no amor, ao ritmo do quotidiano, acolhendo as circunstâncias, os acontecimentos e os minutos que passam com o seu conteúdo, sem nada excluir excepto o pecado, procurando produzir o maior fruto possível ? A adoração verdadeira, é o dom de si mesmo no amor, é “o êxtase do amor” no momento presente, para a glória de Deus e serviço do próximo. É assim que se prolonga no coração da comunidade e dos fiéis a adoração de Cristo e da Igreja actualizada sacramentalmente na celebração da eucaristia. C) Os ministros da nova aliança No centro do culto da nova aliança, a participação activa dos membros do povo de Deus é solicitada, quer sejam fiéis laicos, quer ministros ordenados. A apresentação das oferendas e a acção do ministro simbolizam de certa maneira o conjunto desta participação. “O pão e o vinho tornam-se em certo sentido no símbolo de tudo o que a assembleia eucarística traz dela mesma como oferenda a Deus, e oferece em espírito” (30) Pela mediação do ministro que age em seu Nome e mesmo na sua Pessoa (in Persona Christi) pronunciando as palavras da consagração, Cristo assume a oferenda da assembleia na sua e transforma-a no seu corpo e sangue. “Com efeito, os apóstolos, nas suas memórias a que chamamos evangelhos, transmitiram-nos a ordem de Jesus: tomou o pão, deu graças e disse: Fazei isto em memória de mim. Isto é o meu corpo. Do mesmo modo Ele tomou o cálice, deu graças e disse: Este é o meu sangue. E foi somente a eles que o distribuiu. Desde então, não deixamos jamais de renovar essa memória entre nós” (31) A assembleia que faz memória torna-se sinal da Igreja. Constituída por membros tão diversos estão portanto ligados entre si e os outros membros das outras comunidades na Igreja universal. Esta Igreja de Cristo, confiada a Pedro e aos sucessores, acolhe o sinal de que é presidida por Ele no ministro que age em nome de Cristo no meio da assembleia. O ministério dos bispos e dos sacerdotes manifesta então que esta assembleia recebeu sempre o memorial do Senhor como um dom, um dom que ela mesma produz mas que recebe do Pai, de quem toda a paternidade recebe o nome no céu e na terra (Ef 3, 14-15). Uma tal responsabilidade chama os ministros do Senhor, particularmente na Igreja latina, a viver o compromisso do celibato que configura o sacerdote com Jesus Cristo, Cabeça e Esposo da Igreja. “A Igreja, como esposa de Jesus Cristo, quer ser amada pelo sacerdote de maneira total e exclusiva com a qual Jesus Cristo, Cabeça e Esposo a amou. O celibato sacerdotal então é dom de si em e com Cristo à sua Igreja, e exprime o serviço prestado pelo sacerdote à Igreja em e com o Senhor” (32). O celibato permanece, por conseguinte, apesar das incompreensões da cultura ambiente, um dom inestimável de Deus, como um “estímulo da caridade pastoral” (PO,16), como uma participação particular na paternidade de Deus e na fecundidade da Igreja. Profundamente radicado na eucaristia, o alegre testemunho dum sacerdote feliz no seu ministério é a primeira fonte de novas vocações. V – A Eucaristia e A Missão Depois de reconhecer o Senhor ao partir do pão, os discípulos de Emaús “Levantaram-se no mesmo instante” (Lc 24,33) para ir comunicar o que tinham visto e ouvido. Quando se fez uma verdadeira experiência do Ressuscitado, não se pode guardar para si a Boa Nova e a alegria experimentada. O encontro com Cristo, aprofunda em permanência a intimidade eucarística, e suscita na Igreja e em todo o cristão a urgência do testemunho e da evangelização. (33) A. A Evangelização e transformação do mundo “As alegrias e esperanças, tristezas e angústias dos homens dos nossos tempos, dos pobres sobretudo de todos aqueles que sofrem, são as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo” (34) Quando a Igreja celebra o memorial da morte e da ressurreição de Cristo, não cessa de pedir a Deus: “Lembra-te Senhor”, de todos aqueles para quem Cristo veio trazer a Vida. Esta oração constante exprime a identidade da igreja e sua missão, porque ela reconhece-se solidária e responsável pela salvação de toda a humanidade. Vivendo da eucaristia, participa na intercessão universal de Cristo e traz a toda a humanidade a esperança da vida eterna. A Igreja cumpre a missão pela evangelização que transmite a fé em Cristo e pela busca da justiça e da paz que operam a transformação do mundo. Ora a eucaristia é a fonte e o cume da evangelização e da transformação do mundo. Tem o poder de despertar a esperança da vida eterna naqueles que estão tentados pelo desespero. Abre à partilha aqueles que são tentados a fechar as mãos. Faz avançar a reconciliação em vez da divisão. Situa a vida e a dignidade humanas no centro do compromisso da fé. Numa sociedade muito frequentemente dominada pela “cultura da morte”, exarcebada pela busca do conforto individual, do poder e do dinheiro, a eucaristia lembra o direito dos pobres e o dever da justiça e da solidariedade. Desperta a comunidade para o dom imenso da nova aliança que chama a humanidade inteira a tornar-se maior que ela mesma. “Que quer dizer evangelizar ? Evangelizar é levar a Boa Nova a todos os lugares da humanidade e por impacto, transformar a partir de dentro, tornar nova a própria humanidade.: “ faço novas todas as coisas” (Ap 21,5) Não haverá nova humanidade se não houver, primeiramente, seres novos, da novidade do baptismo e da vida, segundo o Evangelho; a evangelização visa esta mudança interior. A Igreja evangeliza quando, pelo poder da Boa Nova que proclama, procura converter ao mesmo tempo a consciência pessoal e colectiva dos homens, a actividade na qual estão envolvidos, a vida e o meio concreto em que estão inseridos.” (35) A partir do centro eucarístico da sua vida, a Igreja de Cristo contribuiu muitas vezes para a construção de comunidades humanas, reforçando o laço de unidade entre as pessoas e os grupos. Foi assim que as comunidades cristãs, mesmo pequenas e pobres, cresceram no meio dos povos onde lançaram raízes. Em várias nações, como foi o caso em terras da América, para as nações ameríndias e europeias, a Igreja de Cristo inscreveu a fé no espaço das novas culturas. Neste espaço, o cristianismo não cessou, através dos crentes, de buscar soluções novas aos problemas inéditos que apareciam às comunidades humanas que se implantavam. Acompanhou frequentemente o nascimento, a evolução e a sobrevivência dos povos, como o fez no “Novo Mundo”, enquanto o memorial do Senhor punctuava o desenvolvimento religioso e social. Em razão do seu alto valor social e espiritual, ajudou a construir um verdadeiro estar-em-comum; a partilha da Palavra e do Pão da vida prolongou a partilha de outras realidades humanas. O dom de Deus inscreveu-se na vida do mundo. Em terras de América, como por toda a parte, a Igreja começou por um projecto missionário. A fé e as instituições eclesiais, deram origem a uma Igreja particular que busca inspirar-se na primeira comunidade de Jerusalém; contribuíram para modelar os traços do povo que nascia. Esta Igreja, como a sociedade em que se inseria, foi marcada por um impulso primeiro: Ursulinas e Hospitaleiras, Recoletos e Jesuítas, leigos associados e padres seculares, atravessaram o oceano para anunciar o Evangelho de Deus em terra nova. Esta Igreja iria deixar, na aventura mística destes homens e mulheres, aventura levada aos limites da resistência física da coragem e da fé, a sua profunda identificação com o país que crescia. Este grande impulso missionário, bebido na fonte eucarística, que tanto marcou a história deste país, é chamado a prosseguir e a aprofundar-se perante os novos desafios da secularização. B. Construir a paz, a justiça e a caridade A Igreja é testemunha no meio dos homens do dom realizado “para que o mundo tenha vida” A eucaristia é então um constante desafio posto à qualidade de vida e do amor dos discípulos de Cristo. Que fiz do meu irmão ? Que fizestes de mim ? “Tive fome, tive sede, era estrangeiro, estava nu, doente e na prisão”. (Mt 25, 31-46) O que celebram é compatível com as suas relações sociais, familiares, inter-raciais e inter-étnicas ou com a vida política e económica na qual participam ? O memorial que consideram o acontecimento central da história da humanidade acaba por mostrar a sua inconsequência de cada vez que toleram qualquer forma de miséria, injustiça, violência, exploração, racismo e privação de liberdade. A eucaristia convoca os cristãos para participarem na restauração contínua da condição humana e da situação do mundo, contanto que sejam seriamente convidados à conversão para viver o apelo do Evangelho: “Deixa a tua oferta diante do altar e vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão; depois volta para apresenta a tua oferta” (Mt 5,23.24). A situação actual do mundo interpela de um modo particular a consciência dos cristãos a propósito do lancinante problema do respeito pela vida humana desde o momento da sua concepção até ao seu termo, ao mesmo tempo que a fome e a miséria das massas. Uma globalização da solidariedade em nome da dignidade inalienável da pessoa humana, convida-os a impressionar-se sobretudo quando seres sem defesa são atingidos por catástrofes naturais, geradas pelas cegas máquinas de guerra e de exploração económica e os confinados aos campos de refugiados. Todos estes e estas, a quem a miséria, por assim dizer, destituiu da condição de seres humanos, são o próximo por quem Cristo morreu. O seu Coração “eucarístico” assumiu na cruz, antecipadamente, todas as misérias do mundo, e o seu Espírito impele-nos a tomar partido como Ele, pacifica e eficazmente, a favor dos pobres e das vítimas inocentes. No seguimento de João Paulo II, o papa Bento XVI não cessa de chamar à responsabilidade todos os homens, e em particular aos dirigentes e chefes de Estado: “Baseando-se nos dados estatísticos disponíveis, pode-se afirmar que menos de metade das somas imensas que são destinadas globalmente aos armamentos seriam mais que suficientes para salvar da indigência, de uma maneira estável, o exército inumerável dos pobres. A consciência humana é interpelada por esta situação. “Às populações que vivem no limiar da pobreza, por causa da situação de dependência originadas pelas relações políticas, comerciais e culturais internacionais, mais do que de circunstâncias incontroláveis, o nosso compromisso comum pela verdade pode e deve dar uma nova esperança” (36) “Sabemos, contudo, que o mal não tem a última palavra; – reafirmou-o com força na sua mensagem de Páscoa, – porque o vencedor é Cristo crucificado e ressuscitado, e o seu triunfo manifesta-se com a força do amor misericordioso. A ressurreição dá-nos esta certeza: apesar de toda a obscuridade que existe no mundo, o mal não tem a última palavra. Sustentados por esta certeza, podemos comprometer-nos com mais coragem e entusiasmo para que nasça um mundo mais justo” (38) VI – Testemunhas da Eucaristia no Coração do Mundo A. – O apelo universal à santidade “Deus criou o ser humano à sua imagem e semelhança”(Gn 1, 26ss): chamando-o à existência por amor, chama-o ao mesmo tempo ao amor” (39). As vocações ao amor são portanto tão diversas quantas as pessoas. A graça baptismal conforma-os ao amor de Jesus Cristo que o mistério eucarístico alimenta e aperfeiçoa até ao testemunho da santidade. Seja qual for o estado de vida, celibatário, casado ou consagrado, no qual o homem ou mulher estejam comprometidos, todos são chamados à perfeição do amor que Cristo tornou possível pela graça da redenção. Na unidade da vida cristã, as diferentes vocações são como os raios da única luz de Cristo “que resplandece sobre o rosto da Igreja”. Os leigos, em virtude do carácter secular da sua vocação, reflectem o mistério do Verbo incarnado, sobretudo como sendo Alfa e o Ómega do mundo, fundamento e medida do valor de todas as realidades criadas. Os ministros sagrados por seu lado, são as imagens vivas de Cristo, chefe e pastor, que guia o seu povo no tempo “do já e do ainda não”, esperando a sua vinda gloriosa. A vida consagrada tem o dever de mostrar o Filho de Deus feito homem como o termo escatológico para o qual tudo converge, o esplendor frente ao qual toda a outra luz empalidece, e a beleza infinita que somente ela pode preencher o coração do homem. B) A família, Igreja doméstica, para uma civilização do amor “A Eucaristia é fonte mesma do matrimónio cristão. De facto o sacrifício eucarístico, representa a aliança de amor entre Cristo e a Igreja, enquanto selada com o sangue da sua cruz. Neste sacrifício da Nova e Eterna Aliança é que os esposos cristãos encontram a raiz donde brota, e que interiormente plasma e continuamente vivifica a sua aliança conjugal. Como representação do sacrifício de amor de Cristo pela Igreja, a eucaristia é fonte de caridade. E no dom eucarístico da caridade a família cristã encontra o fundamento e a alma da sua ‘comunhão’ e da sua ‘missão’. O Pão eucarístico faz dos diversos membros da comunidade familiar um único corpo, revelando a participação na unidade mais ampla da Igreja. A participação no Corpo ‘dado’ e no Sangue ‘derramado’ de Cristo, torna-se fonte inesgotável do dinamismo missionário e apostólico da família cristã.” (40) A missão específica da família é incarnar o amor e de o pôr ao serviço da sociedade. Amor conjugal, amor paternal e maternal, amor fraterno, amor de uma comunidade de pessoas e de gerações, amor vivido sob o signo da fidelidade e fecundidade do casal para uma civilização do amor e da vida. Para que este testemunho toque concretamente a vida da sociedade, a Igreja chama a família a frequentar assiduamente a missa dominical. Porque será na referência a esta poderosa fonte de amor que a família protegerá a sua estabilidade. E mais ainda, fortalecendo assim a sua consciência de ser Igreja doméstica ela participará mais activamente no testemunho de fé e amor que a Igreja incarna no seio da sociedade. Este testemunho de Igreja doméstica é marcado nos dias de hoje pelo sinal da cruz, por exemplo, quando um dos cônjuges é infiel ao seu compromisso ou quando um ou vários filhos abandonam a fé e os valores cristãos que os pais se esforçaram por transmitir, ou ainda quando as famílias divididas se recompõem depois de um divórcio ou de um re-casamento. Através destas experiências dolorosas, Cristo não chamará o cônjuge abandonado, os filhos feridos e os pais mortificados a participar duma maneira especial na sua própria experiência de morte e ressurreição ? As situações difíceis e complexas das famílias de hoje convidam os pastores a muita “caridade pastoral” afim de acolher todas as famílias e encorajar todos aqueles e aquelas que vivem em situações irregulares a participar na eucaristia e na vida da comunidade, mesmo que não possam receber a sagrada comunhão. C) A vida consagrada, penhor de esperança perante o Esposo “Pela sua própria natureza, a eucaristia está no centro da vida consagrada, pessoal e comunitária. É o seu viático quotidiano e fonte de espiritualidade das pessoas e Institutos. Nela, todo o consagrado é chamado a viver o mistério pascal de Cristo, unindo-se a ele numa entrega de vida ao Pai pelo Espírito. A adoração assídua e prolongada de Cristo presente na Eucaristia conduz de certa maneira a reviver a experiência de Pedro na Transfiguração: “Que bom é estarmos aqui !”. E na celebração do mistério do Corpo e do sangue do Senhor, fortalecem-se e progridem a unidade e a caridade daqueles que consagraram a Deus a sua existência” (41) “Que seria do mundo se não houvesse consagrados ? “ Para além das considerações superficiais sobre a sua utilidade, a vida consagrada é importante precisamente por que é sobre-abundante a gratuidade do amor , sendo-o tanto mais num mundo que se arrisca a ser abafado pelo turbilhão do efémero. “Sem este sinal concreto, a caridade do conjunto da Igreja correria o risco de arrefecer; o paradoxo salvífico do Evangelho emudeceria, o “sal” da fé diluir-se-ia num mundo em vias de secularização”. A vida da Igreja e da própria sociedade precisam de pessoas capazes de se consagrar totalmente a Deus e aos outros por amor de Deus “ (42) “Ainda que eu fale a língua dos homens e dos anjos, se não tiver amor, nada sou (…) A caridade não acaba nunca (…) Agora permanecem a Fé, a esperança e a caridade; estas três coisas, mas a maior de entre elas é a caridade (1Cor 13, 1.8.13.). Teresa do Menino Jesus, no coração do Carmelo, descobriu a sua vocação lendo a palavra do apóstolo sobre a excelência da caridade. “A minha vocação é o amor”, escrevia ela; “No coração da Igreja, minha Mãe, eu serei o amor, e assim eu serei tudo” Possuída pelo amor misericordioso de Deus Pai aproveitou cada instante da vida para unir-se intimamente a Jesus, o seu Tudo, e por dar testemunho dele pela contemplação e serviço. Rezando pelos criminosos, caminhando pelos missionários, sustentando os sacerdotes pela penitência, formando as suas noviças na perfeição do amor, Teresa é reconhecida como um ícone moderno da vida consagrada: mestra do caminho da infância espiritual, padroeira universal das missões, doutora da Igreja. “Não me arrependo de me ter entregue ao Amor” diz ela no fim da vida. O Sínodo sobre a Eucaristia, em Outubro de 2005 falava assim às pessoas consagradas: “O vosso testemunho eucarístico no seguimento de Cristo é um grito de amor na noite do mundo, um eco do Stabat Mater e do Magnificat . Que a mulher eucarística por excelência, coroada de estrelas e imensamente fecunda, a Virgem da Assumpção e da Imaculada Conceição, vos guarde no serviço de Deus e dos pobres, na alegria da Páscoa, para a esperança do mundo” (43) Conclusão Deus tanto amou o mundo Como conclusão, alguns textos do Concílio Vaticano II retomaram sinteticamente a perspectiva trinitária, nupcial e missionária que quisemos dar ao tema do Congresso Eucarístico Internacional de 2008. Deus amou tanto o mundo que lhe deu o seu Filho único afim de que por Ele, com Ele e n’Ele o mundo viva da vida trinitária. A sagrada Eucaristia é Dom de Deus por excelência, uma prenda nupcial, acolhida e celebrada na Igreja e que faz da Igreja o sacramento universal da nova aliança. Este dom de amor compromete essencialmente a Igreja na missão do Espírito Santo, ao encontro da aspiração universal da humanidade para a liberdade e o amor. “O Verbo de Deus, pelo qual todas as coisas foram feitas, fazendo-se homem e vivendo na terra dos homens (Jo 1,3 e 14) entrou como homem perfeito na história do mundo, assumindo-a e recapitulando-a (Ef 1,10). Ele revela-nos que “Deus é Amor” (I Jo 4,8) e ensin

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