DO PASSADO, UM PRESENTE – São Vicente de Paulo e a Segurança Social

Padre José Alves, Congregação da Missão

Se por “Segurança Social” entendermos certo conforto, algum apoio, nas dificuldades causadas por debilidades, como a doença, a velhice, o desemprego, ou por crises sociais, tais como guerras e epidemias, podemos dizer que São Vicente de Paulo também pensou nisso e, assim, relacioná-lo com a ideia de algo que se aproxime do conceito de Segurança Social. Não imaginemos quotas, taxas, descontos ou subsídios fixos ou pensões. Nada disso. Tal, vai ser obra dos fins do século XIX e princípios do século XX. Mas a ideia de estar presente e atuante para ajudar a libertar-se da desgraça, quem por ela foi atingido, andava-lhe na cabeça porque a miséria tanto dentro da cidade de Paris como nas longínquas terras das províncias devastadas pela guerra, urgia. Ali, em Paris, todos os dias esbarrava com a miséria mais gritante; das longínquas terras da Lorena (guerra entre a França, a Áustria e a Prússia) vinham descrições horríveis de verdadeiro inferno e apelos lancinantes de auxílio.

De Paris, da casa de São Lázaro, qual ministério de Segurança Social, partiam lanchas pelo rio Sena acima, e carroças pelas estradas, ora poeirentas ora enlameadas, carregadas de roupas, mantimentos e de tudo o que era necessário para a sobrevivência de milhares e milhares de pessoas. Para além da dureza dos transportes, era preciso contar com os assaltantes, igualmente pobres e mendigos esfomeados; mas perigosos eram também os soldados mercenários a quem não eram pagos os devidos soldos.

E o que levavam esses carregamentos saídos da casa de São Lázaro e da “loja da Caridade”, espécie de armazém onde tudo era preparado pelas Confrarias da Caridade? (1) Roupas, agasalhos, alimentação… Tudo bem aconchegado graças às senhoras das Confrarias e às religiosas dos conventos…

A certa altura, o Padre Vicente percebe que o dinheiro começa a faltar e a generosidade das pessoas tem limites.  As necessidades são permanentes e as ajudas são sempre pontuais! E que as pessoas não se alimentam com dinheiro se não houver nada para comprar. E, assim, começou a desenvolver uma pedagogia que pretendia levar ao autossustento. Ao artista, a par do alimento de emergência, fornecer-lhe-á a ferramenta do seu trabalho; ao camponês, se houver terra livre, fornecer-lhe-á enxadas, charruas e sementes. E não faltam conselhos de quem tem alguma experiência adquirida na infância: «que aproveitem qualquer bocado de terra», «que a remexam bem» e «a estrumem, porque não sei se, no próximo ano, terei algo para enviar». Eis alguns excertos das cartas ou de simples bilhetes que acompanhavam estes carregamentos. Não resisto a transcrever parte de uma carta cujas ideias fundamentais são insistentemente repetidas noutras com igual destino:

«Rogo-lhe, que, entretanto, veja em que lugares da Campanha e da Picardia há gente mais pobre e com mais precisão de uma assistência destas: mais precisão, repito. Poderá recomendar-lhe, ao passar, que amanhem qualquer bocado de terra, o removam e o estrumem e peçam a Deus que lhes mande sementes. E, sem nada prometer, poderá deixar a esperança de que Deus os ouvirá». «Quereríamos igualmente conseguir que todos os outros pobres – homens e mulheres – que não têm terras, ganhassem a vida. Para isso, daríamos àqueles, ferramentas e, às mulheres, rocas e estopa ou lã para fiarem. Isto só aos mais pobres! Se os soldados os não roubarem, poderão amealhar alguma coisa e refazer-se de tudo, pouco a pouco.» (2)

Dentro da cidade de Paris refugiavam-se muitas pessoas; fugindo dos horrores da guerra, enfrentavam agora os horrores do desemprego, da fome. Calculava-se à volta de 40 mil mendigos. Um comerciante ofereceu ao Padre Vicente de Paulo uma substancial quantia de 100.000 libras. Resolve ele pôr em prática uma ideia que ia ganhando cada vez mais força e alguma forma: criar uma casa, à experiência, com capacidade para 40 utentes (20 homens e 20 mulheres), a cujo internamento se podiam candidatar todos os artesãos que tivessem desempenhado uma profissão e a quem a guerra tinha atirado para a miséria. Pensou na obra, esboçou-a, mas entregou a sua concretização a Luísa de Marillac, o seu braço direito no serviço aos mais pobres e cofundadora da Companhia das Filhas da Caridade.

Por ser obra inédita ao serviço dos pobres, esmerou-se ela por que tudo corresse bem. Num pequeno bilhete ao Padre Vicente de Paulo, Luísa diz-lhe que só falta preencher dois lugares, que as senhoras da Confraria confecionaram roupas novas para todos, e pede-lhe que, no dia seguinte, a viesse inaugurar. (3)

Nessa casa desenvolveriam a sua antiga profissão e o produto dos seus trabalhos destinava-se às suas despesas pessoais (exemplificando, dizia-se que podia ser para o seu copito de vinho), inspirando alguma segurança no futuro. E saiu-se tão bem a concretização da ideia que despertou o entusiasmo das várias associações da Caridade da cidade de Paris, que quiseram fazer algo, mas em grande: o chamado “Hotel Dieu”. Mas, por ser tão grande, o poder político tomou conta da ideia e puxou para si a sua concretização, empregando para tal a força policial. Claro que não resultou. Tão bela ideia, falhou no seu objetivo.

Destas e de muitas outras iniciativas do Padre Vicente de Paulo, que seria fastidioso continuar a citar, ressaltam algumas ideias, novas para o tempo e que continuam a fazer caminho:

  1. A caridade cristã e o apoio social não podem reduzir-se a mero assistencialismo. É uma questão de dignidade. Despertar nas pessoas, idosas ou desempregadas, a criatividade, conservar e desenvolver a sua capacidade produtiva; torná-las agentes do seu próprio desenvolvimento e da luta contra a situação em que se encontram e acompanhá-las, também faz parte da caridade cristã.
  2. Numa visão cristã, quem se empenha numa obra destas é expressão da Providência de Deus: «que peçam a Deus… e sem nada prometer poderá deixar a esperança de que Deus os ouvirá». Deus só atuará se houver quem seja expressão viva da sua solicitude e assim ajude a “refazer” e a “reconstruir” a vida com dignidade.
  3. É patente a exigência de organização, a necessidade de um levantamento sério dos necessitados. A assistência não pode ser a esmo, obedecendo à lei do “salve-se quem puder”: «Será preciso que escrevais os nomes destes ditos pobres para que no tempo de distribuir, lhes vá ter a esmola e não a outros que conseguissem passar em seu lugar. Para os distinguir convenientemente, é preciso vê-los em suas próprias casas e conhecer “de visu”, os mais necessitados e os que são menos». (4)
  4. A vida cristã sempre se desenvolveu e, para ser autêntica, tem que continuar a desenvolver-se à volta destes três pilares que têm Cristo como pedra fundamental: o aprofundamento da fé, na evangelização; a celebração, na liturgia; e a concretização, na prática da caridade. Assim o entendeu São Vicente de Paulo, inspirador de não só das obras da Caridade Cristã, mas também de outras obras sociais que se foram desenvolvendo ao longo destes quatro séculos.

 

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(1) As Confrarias da Caridade, a primeira fundação de Vicente em 1617, consistiam em grupos organizados de caridade paroquial.

(2) J. Calvet, Cara Caridade: Vicente de Paulo, p. 163.

(3) Cfr. J. Calvet, Santa Luísa de Marillac, p. 142.

(4) J. Calvet, Cara Caridade: Vicente de Paulo, p. 163.

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