«Dilexit nos»: «O Papa Francisco apresenta-nos um Deus que é amor, seguramente a chave de leitura do seu pontificado»

Sílvia Monteiro, cardiologista, lembra que o coração é «um órgão único que dita o pulsar da vida e do amor»

O coração é o centro da vida humana. Também da vida espiritual? O pulsar do coração é condição para o ritmo da vida, em cada dia. Também para uma experiência crente, marcada necessariamente pelo amor?

O coração é uma das metáforas humanas mais poderosas, um órgão único que dita o pulsar da vida e do amor.

Vivemos a um ritmo alucinante que consome as nossas vidas, num tempo marcado pela cultura do individualismo, da indiferença e do imediato, que privilegia a razão, a vontade e a liberdade. Mas, como nos sugere o Papa Francisco, precisamos voltar à centralidade do coração.

O coração é o reflexo mais íntimo daquilo que somos, lugar de sinceridade e autenticidade, onde se revela o nosso verdadeiro ser. Por isso, é tempo de olhar para dentro, para o mais profundo do nosso ser, reconhecer as sedes que nos habitam e procurar a fonte que as pode saciar. Neste caminho interior, Jesus vem sempre ao nosso encontro, procura-nos na nossa fragilidade, na nossa pequenez, naquilo que somos e onde nos encontramos. Tenhamos a coragem de nos esvaziar de nós mesmos, das nossas certezas e abrir o coração às surpresas e maravilhas de Deus.

De facto, reconhecer o amor incondicional do Sagrado Coração de Jesus e manter uma relação de proximidade e união com o próprio Cristo, abre-nos novos horizontes de transcendência e interpela-nos a assumir a vida como um dom e a entregá-la por inteiro ao serviço do bem comum.

 

Como ativar o pulsar do coração, do amor, na vivência cristã, que não dispense a “ternura da fé, da alegria do serviço, do fervor da missão pessoa-a-pessoa”, como escreve o Papa?

Quando nos sentimos filhos de Deus, amados por pura graça, este amor transborda e leva-nos a ir ao encontro do próximo, numa atitude de acolhimento, entrega e compaixão.

Para humanizar o nosso mundo, o nosso querido Papa Francisco convida-nos a implementar uma verdadeira revolução da ternura, aquele amor que se faz próximo e concreto, um caminho que permite a abertura da inteligência e o acolhimento do coração.

Seguindo o exemplo de Jesus, tantas vezes descrito no Evangelho, é urgente:

– Olhar de forma atenta e profunda, com olhares que geram encontro e são fonte de vida.

– Escutar com o ouvido do coração, numa atitude de acolhimento e respeito pela singularidade de cada pessoa.

– Reconhecer o poder transformador do toque, para voltar a abraçar, segurar a mão, beijar e acariciar sem medo.

– Fazer renascer a esperança e ajudar a encontrar um sentido para a vida de cada pessoa marcada pelo sofrimento e pela vulnerabilidade.

– Despertar a consciência para a dor do outro, deixarmo-nos ferir interiormente para nos tornarmos participantes na vida concreta das pessoas e cuidar com compaixão.

Com uma vida centrada no essencial do nosso coração, podemos experimentar que é possível ser feliz mesmo nos ambientes e contextos mais adversos. Na realidade, a verdadeira felicidade encontra-se na felicidade do outro, no bem que se faz ao próximo e na construção de um mundo melhor. Assim, somos todos chamados a percorrer um caminho de felicidade, diria mesmo de santidade, construído de forma humilde naquilo que somos e fazemos, nas pequenas coisas do dia-a-dia, na pequena história que protagonizamos.

 

De que forma o cuidado com o coração, com a saúde do coração, pode inspirar a “falar a partir do coração”, a “agir com o coração”, a cuidar o amor nas relações?

A experiência de cuidar de cada pessoa doente é sempre intensa, não tratamos apenas casos clínicos em abstrato, cuidamos de pessoas com rosto, com história e com família como nós.

No sofrimento e fragilidade de cada doente, tocamos a nossa própria fragilidade, confrontamos e vencemos os nossos medos e demónios, descemos ao mais profundo que há em nós.

Comunicar com a pessoa doente, particularmente nas fases mais críticas, exige um diálogo aberto e acolhedor, procurando falar com o coração e testemunhar a verdade no amor. Uma missão importante, que exige um coração purificado e uma entrega por inteiro, como reflexo íntimo daquilo que somos e trazemos cá dentro.

O cuidado é, sem dúvida, a grande experiência humanizadora onde aprendemos o verdadeiro significado da vida e cumprimos plenamente a nossa missão: amar e cuidar rostos concretos, promovendo a dignidade de cada vida humana.

O amor que brota do coração de cada um, em união com o Sagrado Coração de Jesus, conduz ao milagre do encontro e à pacificação de vontades, para que o Espírito nos possa guiar segundo os desígnios de Deus, para a construção de um mundo mais justo e compassivo. É no Coração de Cristo, o centro ardente do amor, que nos reconhecemos como filhos amados e aprendemos a amar a humanidade.

Porque o segredo da vida é amar. E o segredo do amor é cuidar.

 

E uma última pergunta de enquadramento deste encíclica no pontificado do Papa Francisco: é uma chave de leitura do seu pontificado, marcado pelo amor e pelo acolhimento de todos, todos, todos, pela ternura, pela misericórdia, pela compaixão entre próximos e entre nações?

Nesta encíclica, o Papa Francisco apresenta-nos um Deus que é amor, seguramente a chave de leitura do seu pontificado.

Temos um Deus que se fez homem, morreu por nós pregado na cruz, a expressão máxima do Seu amor pela humanidade. Da ferida do lado aberto de Cristo brota em permanência a corrente do Amor que não se esgota, oferecido de forma incondicional, a cada um de nós tal como somos, apesar de todos os erros, culpas e diferenças.

Com o nosso coração renovado e profundamente unido ao Coração de Cristo, tenhamos a coragem de colaborar com o Papa Francisco na difícil, mas importante, missão de construir uma Igreja inclusiva, missionária, em saída, de portas abertas, sem medo de percorrer as estradas do mundo e as periferias da humanidade, centrada no verdadeiro espírito do Evangelho. Uma Igreja sinodal, onde todos – leigos e consagrados, caminhem em conjunto, iluminados pelo Espírito Santo e guiados apenas pela vontade de Deus.

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