Todos fazemos pornografia!

Padre Miguel Neto, Diocese do Algarve

Foto: Agência ECCLESIA/MC

O mundo digital trouxe inúmeras vantagens, ao quebrar barreiras e aproximar pessoas, mesmo fisicamente. Conseguimos acompanhar a vida dos nossos familiares e amigos instantemente, mesmo que eles estejam a vários quilómetros de distância. Frequentemente, vemos pessoas a mandar fotos das refeições e até a fazer diretos, para que, quem não está presente, possa sentir-se menos ausente.

Porém, se antes íamos a um restaurante para simplesmente nos alimentarmos, agora, cada vez mais, vamos a um restaurante específico para ver, ser visto e dizermos que estivemos lá. É mais importante dizer que se esteve, do que saber se a refeição é boa.

No Algarve, durante os meses de julho e agosto, podemos precisamente comprovar os vários níveis de abdicação da vida privada, para a publicitação uma vida inteira, que se transforma em “verdade”, no mundo digital. A difusão, abdicação daquilo que só a nós diz respeito e a defesa de toda a transparência da vida de qualquer um, é um dos exemplos de falta de literacia mediática, de falta de competências mediáticas.

A forma como, não só renunciamos facilmente da nossa privacidade, como também não percebemos e aceitamos a privacidade dos outros, exigindo a quem é mais mediático a absoluta privação desse espaço individual, é sinal dessa distopia existencial. Cada vez menos sabemos lidar e respeitar o lugar do outro, porque se expusermos toda a nossa vida, também queremos e pensamos que os demais têm a obrigação de o fazer. Mais: nesse processo mental e real (porque o digital não é virtual, atenção!) acontece ainda outro fenómeno: não há espaço para o erro, para as falhas humanas, para o imperfeito. Tudo tem de ser bonito, porque só se dá nota desse lado da vida, esquecendo, por completo, o restante. Somos estrelas, no sentido mais prosaico da “star” hollyodesca.

Não havendo espaço para a privacidade, não há espaço para o amor, para a aceitação do outro como ele é realmente, mas limitamo-nos a ser constantemente pornográficos, já que tudo é mostrado como sendo perfeito e o que tem valor é a beleza instantânea, fútil, superficial, onde unicamente conta o desempenho exterior e visível.

O essencial, nesta era, é o oposto e não o que está no interior mais profundo. Há dois autores que explicam está sociedade pornográfica muito bem. Byung-Chul Han[1], que é quem aplica o termo pornografia em relação à incapacidade de mantermos uma vida privada; e Shoshana Zuboff[2], que desenvolveu o conceito de capitalismo da vigilância.  A “sociedade da transparência” é caracterizada pela eliminação das fronteiras entre o público e o privado, onde tudo deve ser visível e exposto. Han critica essa obsessão pela transparência, argumentando que ela leva à perda de nuances e à transformação das pessoas em objetos de observação constante, o que pode destruir aspetos fundamentais da vida social, como a confiança e o mistério. Essa busca constante por visibilidade total elimina qualquer espaço para a privacidade, o segredo ou o mistério, reduzindo a complexidade da vida social. As pessoas tornam-se objetos expostos, vivendo sob o escrutínio constante de outras pessoas, com claras consequências para a saúde mental a vários níveis, já que uma exigência permanente pela positividade da vida, onde só há perfeição e bons resultados, não dá resposta à natureza humana. A negatividade, como dúvida, falha ou crítica, é suprimida. Isso cria um ambiente onde não há espaço para reflexão crítica ou contemplação. E com o tempo, essa circunstância deixa de ser somente parte do ambiente digital, para ser também parte do ambiente físico, uma vez que ambos são parte integrante da vida humana. Para estes dois pensadores o excesso de visibilidade (vigilância ou transparência) leva ao controle e à perda de liberdade individual. Em ambos os casos, os indivíduos tornam-se objetos passivos, quer seja do controle corporativo (Zuboff), ou da pressão social pela exposição (Han). Há nitidamente uma dissolução das fronteiras entre o público e o privado, como um sintoma de uma sociedade obcecada pela visibilidade total.

Não façamos da nossa vida uma vida “pornográfica”, onde tudo é visto, consumido e descartado. A privacidade e o direito a uma vida íntima são essenciais para a nossa saúde mental. Querer mostrar tudo, abdicando do que é mais profundo no nosso âmago, não é querer transparência na sociedade, mas uma sociedade transparente, sem pudor e sem o essencial, que será sempre invisível aos olhos, aquele essencial que Saint -Exupéry mencionava no livro O Principezinho.

 

[1] Han, Byung-Chul (2014). A Sociedade do Cansaço. Lisboa: Relógio D’Água Editores.

[2] Zuboff, Shoshana (2019). The Age of Surveillance Capitalism: The Fight for a Human Future at the New Frontier of Power. New York: PublicAffairs.

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Agência ECCLESIA

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