Não é bom que o homem e a mulher estejam sós

Padre Vítor Pereira, Diocese de Vila Real 

No passado domingo, D. José Tolentino Mendonça, como enviado especial do Papa Francisco, presidiu à Missa da coroação da imagem de Nossa Senhora da Soledade da Basílica de Mafra. Na homilia que proferiu, alertou: “Hoje morre-se de solidão e a solidão não se cura com comprimidos. Somos a medicina uns dos outros. O drama da solidão responsabiliza-nos a perguntar que tipo de sociedade queremos ser. Queremos ser consequentes com a afirmação de que cada vida tem valor? Estamos dispostos a lutar uns pelos outros, não só quando é fácil, mas também quando é árduo e demorado?”. E lançou o desafio: “Precisamos de um sobressalto, de um despertar, de um romper decidido com os automatismos que nos enclausuram nas nossas zonas de conforto. Precisamos de romper com a indiferença. Associemo-nos à paixão de Cristo e não à nossa vaidade, à nossa indecisa confusão, ao nosso egoísmo, mesmo que se, por vezes, mascarado de militância caritativa”.

Todos os tempos têm as suas contradições. Os nossos não fogem à regra, e algumas são mesmo impensáveis. Uma delas é a informação/desinformação. Vivemos na era áurea da informação, nunca se teve tanta informação ao nosso dispor, de forma rápida e instantânea, tanto saber e conhecimento à nossa disposição, mas, ao mesmo tempo, vemos perdurar a desinformação e persistir a ignorância. Primeiro porque informação não significa conhecimento, não se faz o trabalho laborioso e maturado de se fazer a síntese e filtrar o que é verdadeiro conhecimento e verdade e o que não é. Depois porque a verdade sempre esteve sujeita às flutuações dos interesses e dos poderes e continua a reinar a manipulação de se construir a verdade que dá jeito e que vá de encontro às aspirações do momento.

Outra contradição, que se mostra aguda e insuperável atualmente, é a existência de incríveis e abundantes meios de comunicação e o crescimento da solidão entre as pessoas. A pandemia veio agravar a situação, mas a solidão já estava em crescendo antes da pandemia. Nos mais velhos já é há muito constatada, um pouco em todos os aglomerados humanos, aldeias, vilas e cidades. A interioridade, onde vivo, despida de gente, poderá vir a ter (ou já tem) preocupantes índices de solidão. Em alguns países é mesmo alarmante, como é o caso do Japão, país com grande número de velhos, onde muitos se veem obrigados a cometer pequenos delitos, como furtos, para poderem ter companhia na prisão e passar melhor o tempo. Mas também segundo nos é dado a ler, o mais surpreendente é a solidão a crescer entre os jovens, e muito por culpa do consumo excessivo e viciante das redes sociais. Estas têm graves efeitos psicológicos, como sentir desvalorização, invisibilidade, mediocridade, exclusão, face à popularidade, ao sucesso e maior diversão dos outros. Poderão ser estas franjas da sociedade, que se sentem um pouco perdidas, isoladas, à margem da prosperidade e do sucesso social, que manifestam opções políticas surpreendentes nas eleições. O grande fomento económico e tecnológico, que se verificou nos últimos anos, promoveu a cultura individualista, o desinteresse pelos outros, a falência do espírito de comunidade, a superlativa valorização e consagração da fruição e satisfação pessoal em detrimento do serviço e da interação com os outros. Nasceu todo um novo mundo de solidão forçada, que é um mundo triste e desumano. É urgente que se recupere a verdadeira atenção e preocupação pelos outros, o interesse e dedicação a todos, se desenvolvam e criem redes de aproximação, acompanhamento e interação com todos, se promova mais inclusão e vida comunitária.

É espantoso, salvo seja, como em pleno século vinte e um a solidão está a ser decretada como epidemia. Com tanto avanço científico e tecnológico, com tanto conhecimento que temos da natureza humana e em todas as áreas do saber, com tanto progresso que se verificou nos últimos séculos, com tantos meios que temos ao dispor e tanta diversão, com tanto saber na área da empatia e educação, no entanto, estamos a constatar que estamos a ficar cada vez mais sós. Muitas pessoas relatam que se estão a sentir cada vez mais sozinhas.

Todas as pessoas na vida têm momentos de solidão. É inevitável. Há a boa solidão, que os criadores e artistas reclamam para se dedicarem às suas atividades e artes, aquilo a que Leonardo da Vinci chamava a solidão criadora, o retirar-se do ruído e do convívio dos outros para refletir, pensar, pintar, escrever, rezar, entre tantas outras atividades. E há momentos em que precisamos da solidão e do silêncio para gerir a vida, com os seus desafios, apelos, tempestades, decisões, voragens e intensidades. Esta solidão é necessária e não é penosa, ajuda-nos a sintetizar, encaixar e a equilibrar a vida. Segundo os Evangelhos, Jesus Cristo também recorria à solidão para rezar, a sua vida tinha momentos de atendimento às multidões, mas também de retiro e encontro com Deus Pai. Refiro-me, certamente, à má solidão, aquela em que o ser humano se sente muito só e desligado dos outros, até perdido e desencontrado com os outros, abandonado por tudo e por todos. Nestes casos, que são muitos, há uma solidão geradora de sofrimento, em que estar vivo tem pouca graça e pouco sentido, e é uma experiência angustiante e inquietante.

Numa abordagem mais filosófica, alguns estudiosos referem que as sociedades contemporâneas criaram as condições perfeitas para esta solidão negativa: o surgimento das grandes cidades, onde se concentra a maior parte das pessoas e onde grassam o anonimato, a indiferença e a desumanização; a excessiva industrialização; no campo cultural e civilizacional, a proclamação e promoção do império do individuo e consequente individualismo, o abandono da religião, o viver sem Deus e abertura ao sagrado e à transcendência. O homem tudo tem feito para estar cada vez mais só e viver cada vez mais só. Assim sendo, em parte se compreende o consumismo em que vivemos: preencher uma carestia que nos habita, a ausência de companhia, atenção e afeto de que é feita a moldura da nossa vida.

Por todo o lado, vemos e ouvimos idosos, jovens, adolescentes, crianças, até pessoas que vivem imersas em empresas e redes, e que coabitam multidões, a expressarem que se sentem muito sós e vivem num grande desconforto existencial. Até Deus está a ficar cada vez mais só neste mundo, como escreve um padre escritor católico num dos seus livros, um Deus que já não é procurado, que cada vez significa menos e importa cada vez menos na vida das pessoas, um Deus que está no sacrário, mas tem cada vez menos crentes que lhe façam companhia e que o queiram adorar.

É mais um desafio que se coloca à Igreja e suas comunidades: sair ao encontro desta solidão e ser presença junto daqueles que se sentem abandonados, desligados de tudo e de todos, e de muitos que não importam a ninguém.

 

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Agência ECCLESIA

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