«Sinto-me muito na pele daquele que sofre» – D. António Marto

O bispo de Leiria-Fátima é o convidado desta semana na entrevista conjunta Renascença/Ecclesia, na qual diz que receber de novo o Papa em 2023 será “uma alegria”. O responsável fala, ainda, da crise que reduziu para metade as receitas do Santuário, e da experiência limite de ter estado nos cuidados intensivos

Entrevista conduzida por Ângela Roque (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

As celebrações do 12 e 13 de maio vão decorrer ainda com limitações à participação dos peregrinos – só podem entrar 7500, ainda assim um pouco mais do que aconteceu na última peregrinação de outubro… foi difícil decidir manter estas restrições?

Esta costuma ser a peregrinação maior do ano, costumava ter à volta de 250 mil, 300 mil peregrinos. Este ano, devido à pandemia, acolherá 7.500, é como uma gota da água no oceano. Mas temos de ter em consideração a situação, e tudo isto é resolvido num diálogo com a Direção-Geral de Saúde. Fátima tem de dar o exemplo também para todo o país, seria muito triste se porventura houvesse aqui um foco de infeção.

 

O comunicado do Santuário sublinha que está é “uma atitude responsável e consciente”, porque “a saúde está acima de tudo”. Os fiéis têm compreendido esta cautela da Igreja e as decisões que têm sido tomadas?

No ano passado houve uma certa contestação por termos de fazer a peregrinação sem a presença de peregrinos, este ano acho que toda a população, inclusive os nossos fiéis católicos, estão conscientes do que está em causa, e que toda a precaução é pouca. Por conseguinte, todos nos sentimos responsáveis pela saúde uns dos outros, é o cuidar uns dos outros que está em causa, e como eu às vezes digo, o respeito por estas regras é-nos dado exemplarmente pelo Santo Padre, é um ato de amor para com o próximo.

 

As imagens do 13 de maio de 2020 ainda estão muito presentes na memória de todos. É um marco na história do Santuário? Como é que prevê que esse dia seja recordado no futuro?

Vai ser recordando como um marco na história do Santuário, na história de Portugal, mesmo, e até do mundo inteiro, porque Fátima é, de facto, um Santuário com dimensão mundial, internacional. Essa imagem será um dos ícones do que significou a pandemia e a sua interpelação também, porque foi no início da pandemia, como aconteceu também com a imagem icónica do Papa Francisco, no dia 27 de março, que sozinho atravessou a praça de São Pedro vazia, e como que transportava consigo o sofrimento da humanidade e com o seu gesto e as suas palavras deu uma primeira luz para a escuridão que o mundo atravessava naquele momento.

 

A nível nacional o ano que passou teve vários marcos, um deles o discurso do Cardeal Tolentino Mendonça no 10 de junho de 2020, com forte impacto na sociedade. É importante contar com esta presença no 13 de maio, num momento em que os peregrinos voltam ao Santuário?

Naturalmente que é importante. Quando o convidei foi já com um ano de antecedência, e convidei-o para ele vir aqui presidir, sabendo que o fará com toda aquela sabedoria de que ele é capaz, de uma maneira única e original, capaz de interpretar e de trazer a palavra justa, própria, para este momento que será certamente, imagino eu, uma palavra de esperança para superar este momento, para saber dar um sentido a toda esta fragilidade e vulnerabilidade, que o mundo e todos nós experimentamos. É um ponto de referência cultural e cristã para todo o país.

 

As restrições também têm afastado do Santuário as crianças. Em junho haverá peregrinação, como é habitual nos anos anteriores? O ano passado não houve…

E este ano, infelizmente, também não vai haver. É uma pena, mas como compreendem seria uma aglomeração muito grande, e não podemos expor as crianças ao contágio. Poderá, porventura, fazer-se uma peregrinação espiritual, cada um nas suas comunidades cristãs.

 

Quando é que espera retomar a normalidade total das peregrinações em Fátima?

É uma pergunta à qual eu gostaria de dar uma resposta plena, mas não sabemos. Em outubro esperemos que já possa ser possível um maior número, uma vez que nessa altura a vacinação já estará bastante espalhada.

 

O processo da vacinação será determinante para haver mais segurança?

Sem dúvida, mas penso que isto ainda se vai prolongar. Esta precaução toda para conter a pandemia vai-se prologar pelos inícios de 2022, pelo menos estas regras normais de cada dia, de usar a máscara, o distanciamento físico, a higienização das mãos. É algo que deve continuar, certamente.

 

As restrições sanitárias implicaram muito contacto da Igreja Católica com as autoridades de saúde, e em Fátima isso também foi fundamental. Como é classifica esta colaboração?

É uma colaboração exemplar, necessária, porque está em causa o bem comum, a saúde como bem comum. Todos somos responsáveis e a Igreja não poderia eximir-se a esta sua tarefa, missão e responsabilidade.

 

Fátima é um dos 30 santuários do mundo envolvidos na “maratona” de oração pelo fim da pandemia, que foi convocada pelo Papa. A recitação do terço de dia 13, às 17h – a que, de resto, irá presidir – será transmitida para o mundo inteiro. É importante o Santuário estar unidos a esta iniciativa? O que é que isto também revela da centralidade de Fátima?

O Santo Padre convocou todos os santuários do mundo para uma maratona de oração, e faz-me recordar aquela frase que ele disse a 27 de março do ano passado: ‘à pandemia nós queremos responder com a universalidade da oração, da compaixão e da ternura’. Por conseguinte, é uma mobilização de toda a Igreja a partir daqueles locais centrais de atração e de peregrinação, mas para que possa envolver toda a Igreja católica universal, por isso, o Santuário de Fátima não podia ficar de fora.

É uma maratona de oração, para cada dia do mês de maio há uma intenção, e a que nos foi destinada pelo Pontifício Conselho para a Nova Evangelização é orar pelos presos, na medida em que eles e as suas famílias também foram atingidos pela pandemia. Muitas vezes constituem uma periferia no nosso coração, e portanto, trazemo-los para o nosso coração, para o coração de cada um e para o coração da sociedade e do mundo, para manifestar a nossa proximidade, a nossa compaixão e a nossa ternura a estes nossos irmãos.

 

Ainda estamos no meio da tempestade, por assim dizer, mas já são vários meses desta experiência. Sente que a pandemia reforçou, de alguma forma, a convicção das pessoas na força e poder da oração?

Eu penso que sim, é algo que se manifesta. Mesmo até durante o confinamento foi uma oportunidade para descobrir e exercitar a oração a nível familiar. Muitas famílias descobriram este aspeto da importância da oração em família, porque a oração sobre ao coração de Deus, mas estabelece uma solidariedade, uma comunhão, a chamada comunhão dos Santos, que é uma solidariedade entre todos. Por conseguinte, esta oração pelo fim da pandemia dá um sentido espiritual para viver, dá uma força que vem do alto para a superar e para todos darmos as mãos e nos unirmos no combate a esta pandemia.

 

Este foi um ano difícil para si em termos de saúde, esteve internado. Isso mudou de alguma forma o seu olhar sobre a realidade e o modo de encarar o sofrimento?

Eu estive internado, mas não foi por causa da Covid.

 

Sim, mas foi uma coincidência ter sido neste tempo. Com o olhar da fé essas coincidências têm sempre outra interpretação…

Certamente, até porque quando estive internado foi numa altura de intensidade da epidemia, nem sequer havia visitas no hospital para evitar os contágios. Tudo começou de uma maneira muito simples, com uma febre, não tinha dores sequer. Pensei inicialmente que fosse uma gripe, como não passava, pus a hipótese de ser Covid. Agendado um teste deu negativo e a febre continuava a subir, até que fez tremer o corpo todo e a pessoa inteira, e fui aconselhado a ir para a urgência, para o hospital, onde fiz uma experiência que nunca na vida tinha feito, que foi estar nos cuidados intensivos, e quem lá esteve sabe que é uma experiência bastante dura, fica-se sem a noção do tempo, sem relação com o exterior… enfim…

 

Foi uma experiência marcante…

É uma experiência marcante, até porque quando me mandaram para lá o diagnóstico era assustador. Pensava-se que fosse uma infeção sistémica, de todo o organismo, até que depois se chegou à conclusão que não era isso e fui para uma enfermaria, depois para um quarto particular. Mas, isso fez-me refletir sobre a nossa fragilidade, que muitas vezes sabemos falar, teoricamente, e para os outros, outra coisa é vivê-la no próprio corpo, na própria pele, e procurar vivê-la também na fé, no meio da dor. Não era propriamente uma dor física, era a dor psíquica de me sentir frágil, vulnerável, de não saber quais as consequências que ficariam. E isso torna-nos muito mais humildes, muito mais solidários e compassivos, capazes de compreender o outro que sofre e de ter compaixão, no sentido mais etimológico e profundo do termo, ser capaz de partilhar a dor do outro.

 

Sente que vai viver de outra forma a tradicional bênção dos doentes, no final das grandes peregrinações?

Quem me conhece sabe que eu já vivia aquele momento sempre de forma muito emocional, agora naturalmente que ainda é mais forte. Sinto-me muito na pele daquele que sofre. É uma característica que talvez tenha herdado da minha família, concretamente do meu pai, mas agora de uma maneira especial, depois de ter passado por este tempo e por esta provação, sinto-me ainda mais unido e mais solidário com quem sofre e com esse momento dos doentes. Tanto que eu sempre tive um certo acanhamento em falar de sofrimento aos doentes, porque acho que é difícil falar sobre o sofrimento a partir do coração, a partir de dentro. Dizer teorias é fácil, dizer uma mensagem que sai do coração para tocar o coração do irmão, é um bocadinho mais exigente. É bastante mais exigente.

 

 

A crise económica é uma preocupação, nesta altura. Que impacto é que está a ter na Diocese de Leiria-Fátima? As instituições ligadas à Igreja têm recebido mais pedidos de ajuda?

Sem dúvida, isso é uma evidência, ao nível de todo o país e concretamente aqui, também. Praticamente duplicaram, sobretudo pedidos de famílias que foram atingidas pelo desemprego, que tinham até uma vida estável e chegam à Cáritas a dizer: “nunca pensei que haveria de recorrer à Cáritas”. Primeiro partilhavam, para dar aos outros, agora são eles que pedem. E ainda estamos para ver, depois, quando acabarem os lay-off e as moratórias… Preanunciam-se maiores dificuldades, do ponto de vista social.

Também sentimos isso nas próprias paróquias, uma vez que foram suspensas as celebrações comunitárias, uma vez que há restrição quanto ao número dos participantes. As ofertas dos fiéis caíram bastante, muito mesmo, como acontece em relação ao Santuário (de Fátima).

 

Em relação ao Santuário, aliás, houve quem ficasse chocado quando começaram a sair as notícias de que a crise teve impacto económico na instituição, devido à ausência de peregrinos. Houve um processo de rescisões, de reorganização. O Santuário está em crise? Houve uma quebra de receitas de que ordem?

Da ordem dos 50%, mais ou menos. Ultimamente não sei, mas até ao fim do ano passado era à volta de 49,9%. O Santuário tem algumas reservas, para fazer face aos próximos anos, para que não haja despedimentos, esse aspeto é um ponto de honra. Vamos ver até quando…

Esperamos que no próximo ano possamos retomar a normalidade, das peregrinações e das ofertas dos peregrinos, também. Estive em conversa com o Santo Padre, que quis saber estas informações, e basta só ver a queda do número de peregrinos: em 2018, foram 7 milhões; em 2019, à volta de 6 milhões e meio; em 2020, 1 milhão e 400 mil. O Santo Padre ficou espantado e disse-me: “Olha, é como aqui no Vaticano, também”.

 

O Papa Francisco tem curiosidade em conhecer a atualidade de Fátima?

Eu não sei se ele tem acompanhado todos os dias, mas eu mesmo, de vez em quando, mando informações, também, para as receberem da nossa própria fonte e não apenas do que se diz na Comunicação Social.

O Santo Padre tem uma ligação, que eu não imaginava que fosse tão grande, a Fátima. Quando lhe perguntei se confirmava a sua vinda a Fátima, por ocasião da Jornada Mundial da Juventude (2023), ele disse com uma força de convicção tão grande que gostaria até que fosse filmado para que as pessoas pudessem ver e ouvir a sua afirmação: “Não teria sentido ir a Portugal sem ir a Fátima”.

 

É uma paragem obrigatória?

Sim. E repetiu a frase, para que ficasse bem gravado! Fiquei completamente esclarecido, quanto a isso. É um motivo de alegria e de contentamento para Fátima e todo o Portugal.

 

Em termos pessoais, receber o Papa de novo em Fátima será uma alegria?

Será uma alegria, pois claro. Eu tive a felicidade de receber o Papa Bento XVI, com quem tinha uma relação afetiva, até de amizade, particular. E agora já recebi este nosso Papa Francisco, tão querido por todos, e por mim, pelos tantos sinais de estima que me tem dado. É com a maior alegria que o quero receber, também.

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Agência ECCLESIA

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