Uma Igreja fora da sua «zona de conforto»

Octávio Carmo

A expressão começa a ficar gasta e corre o risco de não fazer justiça ao primeiro grande documento escrito exclusivamente por Francisco, a exortação apostólica ‘Evangelii Gaudium’ (a alegria do Evangelho), mas é talvez a forma mais direta de sintetizar mais de 150 páginas e várias horas de leitura: o Papa quer uma Igreja fora da sua «zona de conforto».

A “alegria” proposta pelo documento (em 89 referências) quer levar a uma nova etapa no caminho da vida das comunidades católicas, ao longo da história, e é a chave que guia a proposta espiritual, social e ética que nasce da mensagem de Jesus: cativar pelo testemunho, pelo entusiasmo, pela capacidade de mudar o mundo e de ir ao encontro do outro.

Mais de oito meses depois de ter sido eleito como sucessor de Bento XVI, Francisco deixa claro neste documento – onde aborda um número significativo de temas – o que entende ser necessário para uma renovação e “conversão”, que se estende ao próprio papado, em chave missionária e evangelizadora.

“Abrir as portas” é a palavra de ordem, não só para deixar entrar quem se aproxima da Igreja mas também para lançar os católicos pelas estradas do mundo, as já famosas “periferias” que são, afinal, um verdadeiro centro nesta comunidade “descentralizada” que o documento propõe.

O Papa deixa claro que as mudanças acontecem a partir de dentro e não passam por questões ‘fraturantes’, como o aborto ou a ordenação sacerdotal de mulheres, ou mais mediatizadas, antes pelo fulcro da existência individual e comunitária: o anúncio de um sentido para a vida, a recuperação do transcendente e a redescoberta do rosto do outro como ponto de referência.

A exortação apostólica exprime a convicção de que a defesa da vida, uma opção não negociável para os católicos, passa por todas as fases da vida e implica também a recusa de uma economia que “mata”, bem como de todos os tráficos e novas formas de escravatura.

Francisco parte da sua experiência de pastoral urbana numa metrópole como Buenos Aires e mostra-se sensível aos desafios colocados pela mudança de época: a Igreja terá de saber deixar de lado uma pastoral autorreferencial, de ‘manutenção’, para enfrentar uma reforma “inadiável”.

Fazendo eco dos reparos que o próprio Papa, no seu estilo coloquial, vai deixando ao longo do texto, cabe agora aos leitores não se fixarem em aspetos secundários e ler a fundo a sua exortação de apresentar a fé como antídoto para a “tristeza individualista” do mundo contemporâneo.

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