Uma crise com impacto sobre todas as famílias

Manuel Braga da Cruz, antigo reitor da Universidade Católica Portuguesa, é o orador principal das XXV Jornadas Nacionais da Pastoral Familiar que se vão realizar no Seminário do Verbo Divino, em Fátima

Manuel Braga da Cruz recorda nesta entrevista que para a Igreja o trabalho é fundamental no desenvolvimento da personalidade e que uma das suas dimensões mais importantes é “a remuneração salarial”. O responsável entende que a crise na família não se restringe ao atual contexto de crise financeira, mas tem de ser observada num “sentido bastante mais lato”.

 

Agência ECCLESIA (AE): De que forma é que o contexto de crise financeira afeta ou pode afetar o ambiente familiar?

Manuel Braga da Cruz (MBC) – Eu creio que podemos falar de crise da família num sentido bastante mais lato. Nós temos vindo a assistir à transformação da família, das suas expressões concretas já há muito tempo, creio que a grande transformação da família se operou com o advento das sociedades industriais em que as famílias deixaram de ser unidades de produção para passarem a ser tão só unidades de consumo, ou seja, a revolução industrial separou o local de trabalho do local de habitação e essa foi a grande transformação que mudou e muito as famílias desde as sociedades do antigo regime para as sociedades industriais e para os industriais. É evidente que as famílias têm a sua vida económica própria também e uma crise económica e financeira com repercussões sociais tão fortes como aquela que nós estamos a viver é evidente que afeta e afeta profundamente a vida das famílias. Os orçamentos familiares são particularmente afetados por esta crise económica e social, desde logo porque uma das consequências mais graves da crise tem sido o desemprego e há portanto muitas famílias que estão a passar por momentos muito aflitivos porque têm ou um dos seus elementos ou às vezes até mais do que um elemento estão a passar pelo desemprego. Portanto, esta crise tem repercussões muito fortes sobre todas as famílias porque está a afetar o rendimento de todas as famílias, desde logo do ponto de vista fiscal mas também do ponto de vista das reduções salariais. Claro que há umas famílias mais afetadas do que outras mas eu ousaria dizer que a totalidade das famílias é atingida pela crise.

 

AE: Existe hoje uma definição única de família?

MBC: A família tem uma grande diversidade de manifestações mas há uma realidade que remete para um conceito de família. A família tal como nós a entendemos há muitos séculos baseia-se na consanguinidade, nós dizemos que uma pessoa é da nossa família quando tem o nosso sangue e, por isso, a família é composta por uma relação conjugal, entre um homem e uma mulher, e composta também por uma relação pais-filhos porque é da própria natureza e fins da família a procriação, ou seja, o garantir o desenvolvimento da espécie. Portanto, embora haja uma grande variedade e uma grande diversidade de famílias, a família é uma realidade que tem um significado muito próprio e que existe em todas as sociedades contemporâneas.

 

AE: Será que as famílias continuam a ser o refúgio e o suporte de situações de carência ou não há laços familiares que aguentem tanto desemprego e pobreza?

MBC: Estas crises sobretudo com altas taxas de desemprego normalmente põem em manifesto a importância da solidariedade familiar. A família é a grande estrutura que apoia estas situações de desemprego muito avultado, tem sido assim no estrangeiro, tem sido assim entre nós e o que verificamos é que o grande suporte para estas crises de emprego é a família. Claro que há também contributos relevantes das políticas sociais, nomeadamente dos subsídios de desemprego e outros apoios sociais mas sem o apoio familiar este fenómeno tinha uma gravidade que felizmente só não tem porque há famílias solidárias e há uma solidariedade no interior das famílias que esbate e muito os efeitos da crise económico-social e particularmente o desemprego.

 

AE: Normalmente as crises económicas e sociais geram situações precárias no trabalho. Será que essas situações de precariedade no trabalho não afetam a estabilidade da família?

MBC: A precariedade seguramente que tem repercussões sobre a vida familiar, desde logo porque a programação a longo prazo é afetada por laços ou vínculos laborais não tão estáveis como seria para desejar mas temos de pensar também que mais importante do que a perenidade dos vínculos laborais é a existência de uma relação laboral. E, portanto, entre o ter trabalho e não ter e a ter um trabalho que tem alguma instabilidade, claro que é preferível ter trabalho apesar da instabilidade. Muito embora, temos de reconhecer que esta ausência de um vínculo mais estável impede as famílias muitas vezes de fazer programações económicas e sociais que muitas vezes são muito importante para o desenvolvimento da família.

 

AE: O que dizem os documentos da Igreja sobre esta relação família-trabalho?

MBC: A Igreja considera o trabalho como algo que é fundamental ao desenvolvimento da personalidade e uma das dimensões mais importantes do trabalho é a remuneração salarial. A Igreja sempre defendeu que o salário não deve ser apenas uma remuneração individual mas que deve ter em consideração a necessidade de o salário prover às necessidades familiares. Ou seja, quem trabalha nunca trabalha só, trabalha integrado numa família e portanto a remuneração salarial nunca é uma remuneração apenas pelo seu trabalho mas é uma remuneração social. Isto quer dizer que deve ter presente a dimensão familiar do trabalhador e deve ter presente as necessidades que estão para além da mera subsistência de quem trabalha.

 

AE: Como é que a Igreja Católica consegue dialogar com um conceito mais generalizado de família, muitas vezes plural e diversificado?

MBC: Disse há pouco que nós hoje confrontamo-nos com uma grande variedade de tipos familiares, alias a variedade de tipos familiares não é de hoje, sempre houve ao longo da história uma grande variedade de famílias. A forma de organização da família varia muito de sociedade para sociedade, a forma de organização social, de organização económica, as funções sociais e económicas atribuídas às famílias sempre variaram muito ao longo dos tempos. Nós hoje confrontamo-nos com famílias muito diversificadas, na sua composição, no seu papel social, na sua apresentação social, para a Igreja que tem ao ver na família uma célula base da sociedade e uma Igreja em miniatura é óbvio que a família tem que ser defendida, promovida. Tem que ser defendida de muitos riscos que afetam a sua estabilidade e afetam a sua existência e portanto apesar da diversidade há um como que denominador comum a todas as famílias que pede que as famílias sejam respeitadas, que a vida familiar seja promovida e que se deem condições às famílias para que elas desempenhem o papel insubstituível que têm na sociedade e portanto, não é a variedade que constitui um problema para a Igreja, é a instituição como tal que deve de ser acarinhada, protegida, incentivada e desenvolvida.

 

AE: Para conseguir desenvolver uma pastoral familiar não é preciso alterar ou mudar algumas atitudes da Igreja Católica?

MBC: Eu penso que há hoje novos desafios à pastoral da família que surgem das novas realidades familiares, desde logo os problemas que estão a afetar a estabilidade da família, os problemas que estão a afetar o papel social da família, sobretudo o papel educativo, e os problemas que estão a impedir o papel nomeadamente educativo da família. O mundo tem evoluído muito intensamente, muito fortemente, as realidades familiares de hoje oferecem grandes novidades, muitos riscos, alguns perigos, algumas situações que precisam de ser corrigidas e a Igreja tem de estar atenta e ajudar a família a retomar o seu papel e a sua função. Para além de que é na família que a fé melhor se transmite e portanto o grande desafio também à pastoral da família é saber ou ajudar a família a reencontrar aquelas condições para fazer aquela primeira catequese que é necessariamente uma catequese familiar.

 

AE: Em Portugal, a pastoral familiar está muito associada à defesa da vida. Será que não está a esquecer também outros problemas sociais que afetam gravemente a família como o desemprego e o isolamento das famílias em ambiente urbano?

MBC: Eu acho que o problema da vida é dos maiores problemas com que hoje se confronta a sociedade, se confrontam os católicos e se confrontam as famílias. Portanto o dar um lugar de grande destaque ao problema da vida é a meu ver uma posição correta e que releva de uma perceção aguda da importância da vida na sociedade. Agora, a pastoral da família não se esgota de maneira nenhuma na defesa da vida, a pastoral da família tem que prestar atenção e muita às condições de vida das famílias, ao papel que a família tem nas políticas públicas e também aos problemas económicos que afetam de uma forma muito forte as famílias e os seus orçamentos.

 

AE: Como entende a afirmação do Papa Francisco que diz que não se deve insistir somente em questões ligadas ao aborto, ao casamento homossexual e ao uso do contracetivo.

MBC: Porque a vida não se reduz a isso, a vida é muito mais do que isso, claro que o Papa não disse para não prestarmos atenção a essas coisas, disse para não nos atermos apenas a esses problemas. O que significa que há uma atenção que tem de ser dada a aspetos pedagógicos, a aspetos de transmissão de valores, a aspetos de apoio e ajuda das pessoas nos seus múltiplos problemas que têm que ir de par e passo com a preocupação que temos pela defesa da vida, pela preocupação de defesa do matrimónio como base na constituição da família e que temos pela própria vida familiar naquilo que ela tem de mais importante.

 

AE: Que oportunidade constituirá o sínodo que o Papa convocou para outubro de 2014?

MBC: Eu acho que o sínodo é uma excelente oportunidade para a Igreja refletir sobre a importância da família na transmissão do Evangelho e para uma reorganização social com base em valores cristãos. A família está a ser objeto de uma, há fatores de instabilização da família, há fatores de empobrecimento da família, há até estratégias que tendem a destruir a família, nos vivemos em sociedades que são profundamente individualistas, e há estratégias de afirmação do individuo em detrimento da família e dos corpos intermédios da sociedade. É muito importante que a Igreja assuma as suas responsabilidades em defesa da família e assuma a sua responsabilidade em defesa do papel insubstituível que a família tem na reconstrução das sociedades de uma forma mais justa e equitativa.

 

AE: O sínodo tem como tema ‘os desafios pastorais da família no contexto da envangelização’. Qual a urgência de debater estes temas?

MBC: Julgo que estamos hoje a assistir à necessidade de reafirmação da família nas sociedades mais desenvolvidas, combatendo o individualismo, combatendo o relativismo, combatendo o hedonismo, e a Igreja tem um papel muito importante que é o de com a sua longa experiência, com a sua longa sabedoria chamar a atenção para o papel insubstituível da família. A Igreja pode fazê-lo até porque é a instituição, de todas as instituições sociais e mundiais, aquela que em melhores condições está para propor uma revalorização da família nas sociedades modernas.

 

AE: Poderá o sínodo ser oportunidade de debater o acolhimento de pessoas divorciadas e recasadas na Igreja?

MBC: A Igreja nunca disse que aqueles que tiveram a infelicidades de verem as suas vidas familiares interrompidas e as suas relações conjugais interrompidas, nunca disse que essas pessoas deviam ser excluídas da comunidade. Uma coisa é a exclusão da comunhão outra é a exclusão da comunidade. A Igreja nunca defendeu a marginalização dessas pessoas, nós devemos ter uma grande preocupação pela inclusão e pela integração comunitária desses nossos irmãos que tiveram a infelicidade de verem a vida familiar afetadas por múltiplos problemas. A integração dessas pessoas numa vida espiritual e numa vida comunitária cristã é muito importante e penso que todos temos obrigação de pensar nas melhores formas de os integrar a todos comunitariamente.

 

AE: Que acolhimento interessa promover nestes casos se não podem ser excluídos da comunidade?

MBC: É isso mesmo, se não devem ser excluídos da comunidade devemos por todas as formas procurar que eles vivam connosco e trabalhem connosco pela difusão da mensagem evangélica e pela tradução dos valores do Evangelho muito embora sabendo que muitos deles têm problemas que merecem a nossa compreensão e merecem a nossa ajuda porque em muitos casos essas situações podem ter as suas evoluções e as suas evoluções. É para eles que temos de olhar com olhar atento, fraterno e integrador.

CP

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