“Todos, todos, todos”. Como?

Jorge Pires Ferreira, Diocese de Aveiro

Já lá vai um mês sobre aquele “Todos, todos, todos”, dito pelo Papa Francisco e repetido pela multidão de jovens, na Colina do Encontro / Parque Eduardo VII. A mesma ideia, a de uma inclusão eclesial que desafia os critérios tradicionais, tinha estado presente nas vésperas com clero e agentes pastorais, no dia 2 de agosto, no Mosteiro dos Jerónimos (a palavra “todos” é dita 32 vezes, muito concentradas em dois parágrafos) e estaria no encontro de Fátima, no dia 5 de agosto. A JMJ de Lisboa, no seu todo, foi a JMJ de e do “todos”.

Sem dúvida, que o “todos” a que Francisco de refere, e que é uma concretização do “ide por todo o mundo”, “anunciai a todos os povos”, representa um certo modo de ser Igreja entre outros possíveis. E entre os vários modos de ser Igreja há algumas tensões.

O antigo geral dos dominicanos, Timothy Radcliffe, no muito útil e bem-disposto livro “Ser cristão para quê?” (Ed. Paulinas) fala de Católicos do Reino e Católicos da Comunhão.

O Papa Francisco parece-me ser claramente um Católico do Reino porque, e agora seguem-se expressões do livro, os Católicos do Reino veem a Igreja como povo de Deus em peregrinação para o Reino, consideram que não há Revelação nem verdade sem liberdade, centram-se na práxis e na experiência, veem Cristo como Aquele que derruba fronteiras, dão mais destaque ao “sangue derramado pela multidão”, “por todos”. Os Católicos do Reino, diz Radcliffe, têm como lema “ubi Christus, ibi ecclesia”, onde está Cristo, aí está a Igreja. Perguntam com frequência “é aberto (a doutrina, a moral…)?” e pensam (erradamente) que os Católicos da Comunhão são uns saudosistas do passado.

Os Católicos da Comunhão veem-se como membros da instituição Igreja, que é a Comunhão dos Crentes. Consideram que a verdade e a beleza têm autoridade para atrair as pessoas e, na sequência, acham que é preciso reagrupar forças. Centram-se na liturgia e na adoração. Veem Cristo como Aquele que congrega a comunidade e dão mais destaque ao “pão dado aos discípulos” e ao “sangue derramado por vós”. Para os Católicos da Comunhão, “ubi ecclesia, ibi Christus”, onde está a Igreja, aí está Cristo. Perguntam “é seguro (a doutrina, a moral…)?” e pensam (erradamente) que os Católicos do Reino sucumbiram à cultura – ou ditadura – do relativismo.

As classificações são sempre deficientes. Ou insuficientes. Mas, se nos ajudarem a pensar as tensões que realmente existem, são úteis.

Não é preciso ser especialmente perspicaz para perceber que há grupos de católicos que não apreciam o Papa Francisco – ele próprio já falou disso aos jornalistas – e que têm características dos Católicos da Comunhão. E muitos deles têm saudades de Bento XVI.

Como forma de ultrapassar as polarizações entre Católicos da Comunhão e Católicos do Reino, Timothy Radcliffe propõe algumas medidas em “A criação de pandas”. O capítulo chama-se assim porque se trata de coisas delicadas e que levam o seu tempo. São basicamente quatro as medidas que o dominicano propõe: Alegria perante a diferença; ultrapassar o medo; encontrar lugares para falar; e novas lideranças cristãs.

Duas destas medidas são muito do agrado do atual Papa. Primeiro, “ultrapassar o medo”. Foi tema da missa final da JMJ. “Não tenhais medo”, disse aos jovens. A afirmação de Timothy Radcliffe vai noutro sentido, mas trata-se igualmente de induzir confiança, não aos jovens, mas aos teólogos: “É da responsabilidade da ortodoxia não deixar que o pânico suprima a reflexão, ter a coragem de impedir condenações prematuras e assegurar que lhe damos o tempo necessário”.

Depois, os “lugares para falar”. Poderíamos chamar a esta medida “sinodalidade”. “Precisamos de lugares onde se possa falar sem medo e sem preconceitos. Podemos ter necessidade de nos zangarmos uns com os outros e ainda haver tempo para nos reconciliarmos”. “Precisamos também de muitas pequenas iniciativas a nível diocesano e paroquial. (…) Precisamos de muitas mais que abram espaços e lugares nos quais possamos falar livremente com os que são diferentes e sermos férteis. Precisamos de criatividade institucional”, escreve Radcliffe. É inevitável pensar no Sínodo sobre a sinodalidade, que terá uma primeira parte no próximo mês. É por lá que vai passar muito, talvez tudo, do “todos, todos, todos”.

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