SABER APRENDER – Que a Terra é Mãe e Irmã

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

Muitas pessoas, incluido o Papa Francisco, referem-se à nossa casa comum como “Mãe-Terra”. Mas o conhecido escritor católico G.K. Chesterton quando reflete sobre essa visão do planeta como mãe diz que — «a questão principal do Cristianismo era esta: a natureza não é nossa mãe, a natureza é nossa irmã. Podemo-nos orgulhar da sua beleza, pois temos o mesmo pai; mas ela não tem nenhuma autoridade sobre nós; temos de admirá-la, mas não imitá-la.» Curioso. Afinal, Mãe-Terra ou Irmã-Terra? Será que a impressão de Chesterton tem razão de ser ou haverá algo de mais profundo que dê sentido à escolha do Papa de chamar ao nosso planeta de “Mãe-Terra”?

Foto de Caribb em Flickr

Na encíclica Laudato Si’, o Papa Francisco recorda logo no n. 1 o Cântico das Criaturas de São Francisco — «Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã, a mãe terra, que nos sustenta e governa e produz variados frutos com flores coloridas e verduras» — Ou seja, na visão de S. Francisco a Terra é irmã e mãe, o que pode levar a um paradoxo se reduzirmos ambas as designações ao mesmo nível, pelo que, tal como a minha mãe biológica é minha irmã em Cristo, talvez algo de semelhante aconteça com o uso destas expressões. Depois, no n. 92 refere como — «Tudo está relacionado, e todos nós, seres humanos, caminhamos juntos como irmãos e irmãs numa peregrinação maravilhosa, entrelaçados pelo amor que Deus tem a cada uma das suas criaturas e que nos une também, com terna afeição, ao irmão sol, à irmã lua, ao irmão rio e à mãe terra.» E agora? Por que razão terá o papa referido-se à Terra como mãe excluindo irmã? Terá sido um lapso?

Para São Francisco, a Terra é mãe e irmã. Para o Papa Francisco não há qualquer problema em se referir à Terra como mãe, omitindo que seja irmã, mas voltemos a Chesterton. Qual é o problema de Chesterton com chamarmos a nossa terra de mãe? Eu diria que, talvez, seja a noção de mãe que havia na sua época. Na sociedade e ambiente cultural em que vivia Chesterton, a imagem de uma mãe parece ser a de uma pessoa que tinha autoridade sobre os filhos e a quem esses deviam imitar, ao passo que hoje, a noção de mãe é mais próxima da ideia que temos da experiência de Maria. Isto é, em vez de ser uma autoridade, Maria dirige o nosso olhar para onde podemos encontrar a verdadeira Autoridade: Jesus.

Imitar Maria não é fazer o que ela nos diz, mas o que Jesus nos diz. Nós admiramos Maria e, por isso, cantamos “quero ser como tu, como tu, Maria”. De facto, com as palavras desse cântico estamos a dizer que queremos ser e não parecer como Maria. Por isso, se Maria colocou toda a sua confiança em Jesus, somos convidados a fazer o mesmo. A linguagem de Maria é a da escuta (como fez com o anjo), da confiança (como fez com Deus apesar de não conhecer homem), da atenção a tudo o que se passa ao seu redor (como nas bodas de Caná) e do acolhimento da Vontade de Deus (como quando teve de perder o Seu filho para acolher tantos outros), estando atenta ao sinais. O que podemos aprender com Maria que nos ajude neste aparente dilema entre mãe- ou irmã-Terra?

Como a Terra é parte do Universo, e esse é a linguagem através da qual Deus nos fala, contemplar a Natureza pode levar-nos a fazer uma experiência de Deus e da Sua presença, dirigindo o nosso olhar para Ele. Ao colocar todo o nosso ser diante da presença de Deus, de certo modo, a Natureza exerce sobre nós o mesmo efeito que exerce Maria. Por outro lado, como natureza que somos, entramos na história como o resultado evolutivo de um incremento de complexidade que liberta a consciência a partir da biologia. Graças a essa consciência estamos próximos do mundo natural, mas reconhecemos, como Maria, como o Senhor fez em nós grandes coisas. Aliás, basta a percepção de haver Alguém como Deus e da liberdade de recusar a Sua existência para demonstrar como a consciência leva-nos a um olhar diferente sobre a materialidade. Um olhar, diria, de mãe que vê para além daquilo que chega aos seus olhos. Por fim, se acolhemos Jesus em nós como Maria, se deixamos que Ele nos transforme, como transformou Maria, não faz parte da nossa vocação encontrar o modo de todo o mundo natural participar do Paraíso onde toda a criação é uma só em Deus? Assim, com o nosso modo de ser Maria, deveríamos orientar o olhar do mundo para Deus.

“Mas estás a desviar-te da pergunta.” — poderia alguém chamar-me à atenção. — “Afinal, Chesterton tem razão ou terá o Papa Francisco? Será que o Papa Francisco cedeu a uma ideia mundana de mãe-Terra ou será que Chesterton cedeu à cristalização das ideias com o pensar fixo na irmã-Terra?” Talvez ambos tenham razão, e pensar sobre o tipo de sujeito (mãe ou irmã) que a Terra pode ser para nós implica não sobrevalorizar o papel materno ao fraterno, nem o fraterno ao materno, mas reconhecer que ambos podem coexistir em níveis diferentes de interpretação da realidade.

Se toda criação fosse como Maria, também a Terra seria chamada a ser mãe e irmã (como filha do mesmo Pai). Talvez não ao nosso modo, mas ao seu modo. E apesar de preferirmos a intuição do Papa da Mãe-Terra, se não descurarmos que a Terra é também nossa irmã, reconheceremos como todos fazemos parte da “família da criação” como talvez fosse a intenção original de S. Francisco. E se todos somos realmente família da criação — em jeito de poesia —

só incluindo o mundo natural
podemos alguma vez tornar real
o ideal
de uma fraternidade universal.


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