Relação entre católicos e Bíblia é preocupante

Semana Bíblica Nacional reflecte sobre «a Palavra de Deus na vida e missão da Igreja»

Desde Domingo, cerca de 300 pessoas participam na 32.ª Semana Bíblica Nacional, que se realiza em Fátima, organizada pelos Franciscanos Capuchinhos. As intervenções dos conferencistas basearam-se no tema do último Sínodo dos Bispos (Outubro de 2008), que foi dedicado à «Palavra de Deus na Vida e na Missão da Igreja». Ao longo dos seis dias do encontro, que hoje termina, essa formulação foi desenvolvida segundo as quatro perspectivas propostas pelo mesmo Sínodo: «A Voz da Palavra», «O rosto da Palavra», «A casa da Palavra» e «Os caminhos da Palavra».

 

Ignorância

“Os Papas têm insistido na importância basilar da Palavra de Deus na vida concreta das comunidades cristãs.” Mas a realidade é bem diferente: um inquérito feito a propósito do 40.º aniversário da «Dei Verbum» – documento sobre «A Revelação Divina», publicado em 1965, no âmbito do Concílio Vaticano II – concluiu que “apenas 3% dos católicos dos países da Europa do Sul, que é a zona do continente com mais praticantes, lêem regularmente Bíblia”, afirmou à Agência ECCLESIA, o biblista Frei Herculano Alves.

A sondagem revelou também que “26% dos inquiridos acrescentaram livros à lista dos quatro Evangelhos”. “Quando essa percentagem de pessoas afirma que São Pedro redigiu um Evangelho e que São Paulo escreveu outro, está tudo dito”. Estes resultados – considera o biblista – significam que os cristãos têm “uma ignorância básica da letra da Bíblia, já para não falar do seu sentido.”

Por isso, “a grande crise da Igreja actual” reside, em parte, na “absoluta ignorância da palavra de Deus”. “Mas parece que, para alguns, isso não é problema. Eu sofro com isso”, acrescenta.

Este diagnóstico implica que é “absolutamente necessário que as comunidades tenham pessoas, a começar pelos párocos e responsáveis diocesanos, capazes de trazer a palavra de Deus ao povo de Deus”. Por outro lado, os documentos que a Igreja produz “não chegam a catequizar as comunidades”, fenómeno que revela uma “falta de comunicação” entre a “Igreja institucional” e a “Igreja real”. Para o Frei Herculano Alves, estas situações só podem ser resolvidas “a partir da evangelização dos pastores, catequistas, famílias e grupos”.

 

«Não houve coragem para dedicar um ano à Bíblia»

Depois do ano dedicado a São Paulo, “o comboio da Bíblia estava a andar relativamente bem, e as pessoas começaram a dar-lhe importância”, garantiu o biblista, que classificou essa dinâmica como “uma viagem positiva, que raramente aconteceu na Igreja recente”.

Com a instituição do «Ano Sacerdotal», “mandou-se parar o comboio, dando-lhe outra direcção”. Com este “erro da Igreja a partir de cima”, “o povo arrumou a Bíblia e vai pensar em fazer outras coisas”.

Por seu lado, o Sínodo dos Bispos, longamente ansiado por aqueles que desejavam uma actualização da «Dei Verbum», “foi mal conhecido em Portugal”, em parte porque o “Ano Paulino o obnubilou”. Ao não promover um «Ano da Bíblia» e ao parecer “esquecer” as orientações sinodais, os católicos vão guardar outra vez as Bíblias nas gavetas e nas estantes, na maioria das paróquias”.

Consciente de que o seu pensamento pode gerar incómodos em alguns meios eclesiais, este Franciscano Capuchinho afirma que está “apenas a dizer o que a Igreja escreveu em muitíssimos documentos de há um século a esta parte. No entanto, não estou a criticar ninguém, mas algumas estruturas da Igreja”. Os seus pontos de vista são fundamentados na «Dei Verbum» e “no que é afirmado pelos papas há mais de um século”, em especial por João Paulo II: “Apesar de tantas coisas que dizem dele, foi o Papa que mais falou da Bíblia”. Tendo como pano de fundo os próprios documentos da Igreja, Frei Herculano pensa que “é uma falta de lógica interromper todo o dinamismo criado no Ano Paulino, que estava a dar bons resultados na pastoral bíblica”.

 

«A Igreja não tem nenhuma instituição oficial dedicada à formação bíblica»

Perante a evidência de que, para muitos católicos, o único contacto semanal com os textos sagrados só acontece durante a missa, Frei Herculano defende que ela é, antes de tudo, espaço de “celebração”; neste sentido, a “homilia é mais do que uma aula e uma exegese bíblica”. Apesar de o Concílio Vaticano II referir que as eucaristias são os lugares por excelência para a proclamação da palavra de Deus, “não se diz em lado nenhum que esse é o único momento em que a Bíblia pode ressoar no coração e na vida das pessoas”.

É necessário uma aprendizagem que possibilite “a passagem do «texto» ao «sentido do texto»; só assim é que as pessoas podem encontrar a palavra de Deus na Bíblia e lerem a Bíblia como palavra de Deus”. E, se é verdade que muitos cristãos não têm interesse em aprofundar a Bíblia, há casos em que os responsáveis das paróquias, não só não criam esses espaços de ensino, como certos grupos bíblicos permanecem à “revelia de muitas pessoas”. Apesar de não adiantar casos concretos, o religioso Franciscano Capuchinho diz ter conhecimento de grupos que morrem por serem marginalizados. “Tenho tido experiências muito negativas”.

As deficiências na leitura dos textos bíblicos e as insuficiências teológicas de alguns padres são algumas das causas que, no entender do Frei Herculano, agravam o desconhecimento da palavra de Deus. “Muitas vezes, as próprias homilias não chegam lá”. A origem destes problemas está “nos pastores das comunidades locais, nos catequistas, nas pessoas que são chamadas a anunciar e a explicar a Sagrada Escritura e, sobretudo, nas estruturas da Igreja, que têm responsáveis”.

 

Liturgia em detrimento da Bíblia

A preferência, quase absoluta, que a Igreja tem dado à Liturgia é outra das críticas apontadas pelo biblista. Esta tendência “marginalizou, em grande parte, a dimensão profética, que é a primeira vertente do cristianismo”. E acrescenta: “Nós nunca vimos Jesus Cristo fazer liturgias; mas vemo-lo, durante toda a sua vida, no uso da palavra. Esse é que é o Jesus dos Evangelhos e do cristianismo”.

Para ilustrar a sua posição, Frei Herculano lembra a história da Igreja, comparando a acentuação litúrgica do catolicismo actual ao Templo judaico de Jerusalém, destruído pelos Romanos em 70 d.C.; este aspecto tem-se imposto ao profetismo (leitura e aplicação prática da palavra bíblica), que era a nota mais sonante dos primeiros séculos do cristianismo: “A Igreja parece que ressuscitou o Templo; por isso passámos a ter um cristianismo que sublinha as igrejas, a liturgia, as festas e o sacerdócio quase só como homem do templo”. Em síntese, o cariz sacerdotal dos cristãos deixou de ser profético, passando a ser ritualista.

Diante desta situação, “a única solução é continuar a remar contra a maré”. “Os católicos – continua o biblista – não podem desanimar, apesar de certas estruturas serem impeditivas de tantas coisas”. “É uma pena!”, admite.

 

Por uma nova organização eclesial

“Temos lutado para que haja bons agentes da pastoral bíblica, que sejam devidamente instruídos”, afirma Frei Herculano. Depois de formadas, essas pessoas deviam ser credenciadas oficialmente como “Ministros da Palavra de Deus”; o mesmo, aliás, deveria acontecer com os catequistas, afirma. As paróquias deveriam insistir na formação bíblica, pelo menos tanto como na liturgia, como diz a Dei Verbum 21.

Actualmente, as comunidades têm apenas um “único agente da Palavra e de todos os ministérios”, que é o seu pároco. “Mesmo que não saiba, mesmo que não tenha jeito pedagógico, ele tem tudo, faz tudo, manda tudo, pode tudo e ensina tudo.” E depois, há os “voluntários”: “Quando são precisos catequistas, pergunta-se: ‘Quem é que se oferece?’. “Isto é pouco sério”, afirma o biblista, que conclui: “Estamos num deserto ministerial”.

As comunidades deveriam apostar na formação das pessoas que transmitem e ensinam a Bíblia. “Mas, a partir de cima, não se vê nenhuma iniciativa acerca do assunto.”

Os Franciscanos Capuchinhos têm tentado aumentar os conhecimentos da palavra de Deus, através de cursos bíblicos, Cursos para Animadores da Palavra, Semanas Bíblicas Nacionais, edições bíblicas, revista Bíblica, etc. Muitas vezes, porém, as pessoas regressam às suas paróquias e não são bem aceites: “Ouvem-se expressões do género: ‘Um leigo, o que é que sabe?’No entanto, por vezes, ele pode exercer determinadas actividades pastorais melhor do que um padre, porque tem outra pedagogia e, sobretudo, porque é, talvez, melhor aceite, na medida em que é um leigo entre leigos”.

“Os padres e os próprios leigos ainda têm o grande pecado do clericalismo, que já deveria ter passado à História; e que está a prejudicar altamente a Igreja”, conclui.

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