Refugiados: «Não podemos deixar que se abra um precedente em que se criminaliza o ato de salvar vidas» – Rita Gaspar

Voluntária portuguesa participou no apoio a migrantes no Mar Mediterrâneo com Miguel Gaspar, constituído arguido pela justiça italiana

Foto: ACNUR

Lisboa, 20 jun 2019 (Ecclesia) – O português Miguel Duarte, de 26 anos, foi constituído arguído pela justiça italiana e enfrenta uma possível pena de 20 anos de prisão, devido à sua participação no resgate de migrantes e refugiados no Mar Mediterrâneo.

Em entrevista à Agência ECCLESIA, Rita Gaspar, que também colaborou nos trabalhos de apoio a milhares de pessoas necessitadas, considera que tudo faz parte de “uma estratégia política para conseguir parar o fluxo de migrantes que chegam à Europa”, neste caso, impondo limitações “a quem ajuda”.

“A partir do momento em que estas notícias começaram a sair e que Itália começou a abrir estes processos, a maioria das organizações de resgate marítimo civis foram desaparecendo do Mediterrâneo”, realçou a jovem.

Rita Gaspar deixa um apelo às instâncias europeias, e também ao Governo português, para que tomem uma posição neste caso, porque antes de mais está em causa a vida de muitas pessoas que “inevitavelmente” se veem obrigadas a partir em busca de melhores condições.

“Não estando lá qualquer navio também não há olhos para ver o que é que se passa, mas continuam pessoas a morrer no Mediterrâneo e isto requer uma ação conjunta da União Europeia, do governo português. Não podemos deixar que se abra um precedente em que se criminaliza o ato de salvar vidas”, frisou.

A história de Miguel Duarte remonta a 2016, quando o jovem aluno de doutoramento em Matemática, natural da Azambuja, decidiu juntar-se à tripulação de um navio de resgate marítimo no Mediterrâneo central, o ‘Iuventa’.

“No meu caso, eu no fim de 2016 tinha acabado o meu estágio, depois do curso na Faculdade, e tinha tempo e vontade de ajudar, porque via as notícias, via o que se estava a passar e queria fazer alguma coisa, só não sabia muito bem por onde começar”, contou Rita Gaspar.

A jovem decidiu ir também a Itália, na altura para “ajudar a restaurar o navio ‘Iuventa’, que estava parado no porto de Veneza, para trabalhos de restauro, entre missões”.

“Passei um mês a restaurar o navio em Veneza, depois fui para Lesbos (Grécia) para trabalhar com refugiados que vivem na ilha, dentro dos campos de acolhimento, e daí segui para a Turquia, onde tive oportunidade de ajudar refugiados em campos não oficiais, e depois disso é que me juntei a duas missões de resgate a bordo do Iuventa”, descreveu.

Foto: Lampedusa, ACNUR.

O tempo que passou na missão de resgate no Mediterrâneo, ao largo da costa da Líbia, a partir de junho de 2017, marcou-a profundamente.

“Vimos as mais variadas situações, desde barcos de borracha completamente sobrelotados, a pessoas que vinham sem nada e em situação de completo desespero. Muitas delas nem sequer sabem ao que vêm, porque chegam de países onde vivem em pobreza extrema e têm pouca ou nenhuma informação, mas sabem que esta é a sua única saída”, realçou Rita Gaspar.

Esta jovem voluntária lembrou com emoção o estado dramático em que encontrava as pessoas que eram resgatadas das águas – “é sempre uma situação muito difícil”, e por isso não compreende como é que se pode pensar em limitar o trabalho de apoio a estas pessoas ou em colocar em tribunal quem integra uma missão humanitária.

“Para nós é algo que nos parece completamente absurdo. Nenhum de nós alguma vez pensou que isto poderia acontecer, porque nunca duvidámos que participar na missão de resgate era a coisa certa a fazer”, desabafou.

Sobre esta problemática, a Cáritas Portuguesa já alertou para o perigo de esta situação “inflamar ainda mais discursos tóxicos e negativos” contra os migrantes e refugiados.

“Para além do impacto negativo direto que isto tem na vida dos migrantes e refugiados, criminalizar a solidariedade é adicionalmente perigoso para a própria democracia, já que fragiliza a coesão social e ameaça o nosso sentido de humanidade”, sublinhou o presidente do organismo, Eugénio Fonseca.

Outra voz que também se levantou, a confederação europeia da Cáritas, que inclui a organização católica em Portugal, frisou que “atos de solidariedade que asseguram o respeito pelos direitos e dignidade dos migrantes e refugiados devem ser aplaudidos e encorajados, em vez de criminalizados”.

O organismo humanitário católico assinalou a importância dos decisores políticos não deixarem que as legislações nacionais contra tráfico humano e contrabando levem à limitação do apoio humanitário a migrantes e refugiados.

“Num momento em que quase 70 milhões de pessoas a nível global foram forçadas a fugir das suas casas por causa de guerra, conflitos ou violência, uma Europa acolhedora é mais necessária do que nunca”, referiu a Cáritas-Europa.

Na sequência da acusação dirigida a Miguel Duarte, os voluntários decidiram lançar, através da plataforma HuBB – Humans Before Borders, uma campanha de crowdfunding intitulada ‘Salvar vidas não é um crime’, que até agora já foi assinada por mais de 100 mil pessoas e permitiu angariar mais de 21 mil euros para suportar os custos da defesa do jovem português.

“Este caso precisava de ser falado e em Portugal as pessoas precisavam de saber o que é que se está a passar e que há um cidadão português que está nesta situação”, defendeu Rita Gaspar, que agradece toda a “mobilização” e “solidariedade” que este contexto tem gerado.

Esta quinta-feira, Dia do Refugiado, a Cáritas Europa vai “apelar ao fim da criminalização da solidariedade para com migrantes”, através da projeção de imagens de voluntários que foram acusados injustamente.

As imagens irão ser projetadas na fachada do Info Station no Parlamento Europeu na Place du Luxembourg, numa açao enquadrada na campanha Europeia #whatishome nas redes sociais, que está a decorrer até 2020.

A par do português Miguel Duarte, existem vários outros casos de voluntários e voluntárias que neste momento estão a ser acusados de apoio à emigração ilegal e ao tráfico humano, como o irlandês Seán Binder, que aguarda julgamento depois de ter estado 106 dias em prisão preventiva na Grécia, e que pode ser condenado a uma pena de 20 anos de prisão.

“O resgate humanitário não é um crime, mas também não é um ato heroico, é uma necessidade”, comentou o jovem de 25 anos.

JCP

Europa: Cáritas diz que solidariedade com refugiados «deve ser aplaudida, não criminalizada»

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