Primeiro, Deus!

Maria de Fátima Moreira Martins, Diocese de Lamego

Celebrámos, recentemente, a 2 de fevereiro, Festa da Apresentação do Senhor, o XXVIII Dia Mundial da Vida Consagrada. Pelo Batismo todos somos consagrados a Deus, ungidos pelo Espírito de Cristo, tornando-nos sua pertença. «Somos de Deus» (1 Jo 4,6a). Porém, «desde os princípios da Igreja existiram homens e mulheres que, pela prática dos conselhos evangélicos [castidade, pobreza, obediência], se propuseram seguir a Cristo com maior liberdade e imitá-lo mais de perto, vivendo cada um a seu modo, uma vida consagrada a Deus» (C. Vaticano II, Perfectae Caritatis, 1). No contexto global e eclesial que habitamos, que sentido tem propor a Vida Consagrada como caminho plausível, capaz de preencher o coração humano?

A reflexão em torno da Vida Consagrada remete-nos, sempre, para a sua raiz, para a sua fonte e meta: Deus. Esta chave de leitura é condição sine qua non para interpretar tal dedicação [a Deus] de coração indiviso. Afinal, que restaria de uma Vida Consagrada sem Deus ou sem Cristo? Talvez o altruísmo, a busca por um mundo mais humano, mas faltar-lhe-ia a essência, a sua razão teológica.

Como faz questão de sublinhar o nosso bispo, D. António Couto, os Consagrados são pessoas chamadas pelo nome, a quem compete viver na passiva, viver para responder e testemunhar. Não lhes pertence a iniciativa, nem a primeira palavra. A primeira palavra, o primeiro dizer é de Deus. Sim! «Deus é amor. Nós amamos, porque Ele nos amou primeiro» (1 Jo 4, 16b.19). À palavra primeira, que vem de fora, nos ‘assalta’ e faz estremecer, ou seja, ao puro dom divino, só nos cabe responder, tornando-nos suas testemunhas. E porque sem Deus não pode haver chamados, vocacionados, temos que saber entregar Deus a este mundo e anunciar Cristo por todo o lado (cf. António Couto, Homilia de 04.02.2024).

A verdadeira missão dos Consagrados é, por conseguinte, seguir os passos de Jesus, colocar-se atrás de Jesus, permanecer com Ele, aprender com Ele, alimentar-se dele, ser ungido para O anunciar (cf. Mc 1,16-20). Desta sorte, embora se denomine ‘consagração’ a oferta inteira da vida toda a Deus, nunca é demais sublevar que, hoje como outrora aos profetas e ao próprio Jesus, é Deus que consagra e envia. Qual é, então, a tarefa primordial dos que se devotam a Cristo nesta forma de vida? Adorar. «Adorar a Deus é o afazer dos Consagrados», sendo que por adorar se entende a orientação da vida toda para Deus, em resposta filial, reconhecendo em tudo o primado de Deus (António Couto, Fundamentação Bíblica da Vida Consagrada, in A essência da Vida Consagrada, p. 17ss).

Seria impossível percorrer em tão poucas linhas o manancial riquíssimo de documentos do Magistério Pontifício e Eclesial acerca da Vida Consagrada, sobremaneira desde o II Concílio do Vaticano aos nossos dias. Contudo, importa notar que a mesma é, amiúde, apontada «como um sinal luminoso do Reino dos Céus» (C. Vaticano II, Perfectae Caritatis, 1), e tanto mais brilhará, para glória do Pai, quanto mais os Consagrados, individual e comunitariamente, forem fiéis aos compromissos assumidos, que se condensam no compromisso de seguir Jesus, que é o mesmo que dizer, viver o Evangelho, segundo a sua índole carismática.

São profundos os desafios da sociedade hodierna à Vida Consagrada, os quais têm ocupado estudos, assembleias, capítulos e decisões dos Institutos. Desses desafios versa, por exemplo, o 39º Encontro Nacional da Vida Consagrada em Portugal (10 a 13/02/2024). Que sinal ou sinais pode a Vida Consagrada oferecer, hoje? De entre os muitos que poderíamos enunciar, aponto quatro, atravessados pelo sinal da superabundância da gratuidade (cf. João Paulo II, Vita Consecrata, 104).

O sinal da fraternidade: Numa era em que a paz mundial e a convivência comum estão fortemente feridas e ameaçadas, os Consagrados, enquanto membros de uma comunidade concreta e de uma família alargada, fundada sobre os laços do Espírito (não nos da consanguinidade ou da afinidade superficial), podem ser sinal da fraternidade humana querida por Deus. Experimentando, no seu seio, a beleza e as dores da comunhão intercultural e intergeracional, testemunharão que uma convivência sadia é possível, que é possível tecer laços de irmandade e de amizade autênticas, aproximando-se, escutando, respeitando e crescendo com as diferenças. A pergunta «onde está o teu irmão?» (Gn 4,9a) não pode ficar sem resposta. Só assumindo os riscos da hospitalidade se derrubarão as barreiras da globalização da indiferença da qual tanto tem falado o Papa Francisco (cf. Francisco, Mensagem para a Quaresma 2024).

O sinal da comunhão eclesial: Membros de uma Igreja sinodal em saída, os Consagrados são convocados a um renovado sentire cum ecclesia, para lá da adesão aos modos e métodos antigos de evangelizar. Convocados a fortalecer a fé no Deus das surpresas e, atentos ao sussurro dos irmãos, ir às periferias existenciais, onde os ‘milagres’ humildes e pequenos acontecem. Parte integrante do corpo orgânico que é a Igreja, a Vida Consagrada será tanto mais sinal da Luz quanto mais comungar com o que o Espírito diz à Igreja, mesmo que essa comunhão só se expresse pela simples presença, pelo ser e estar ‘aí’, por vezes com risco para a própria vida.

O sinal do serviço: Nos tradicionais campos de missão (escolas, hospitais, casas de acolhimento, catequese, etc.) ou nos novos areópagos (cuidado da criação, diálogo inter-religioso e ecuménico, meios digitais, refugiados e migrantes, escravaturas modernas, etc.), os Consagrados, enviados pelo Espírito, dão largas ao seu ímpeto evangelizador, amando e servindo. Desta forma, a ousadia de inclinar-se «em presença do irmão ferido» (Francisco, Mensagem para a Quaresma 2024), isto é, perante os mais pobres e desprotegidos, será um sinal eloquente. O cuidado, o silêncio, a escuta, a palavra, o gesto, a oração e até a impotência para intervir, também, construirão o Reino.

O sinal da esperança: Seduzidos pela contemplação da beleza do Esposo, que se apresenta com mil rostos (cf. João Paulo II, Mulieris Dignitatem, 21), os Consagrados são convidados à profecia de uma esperança alegre e confiante, que alarga horizontes e conduz ao Eterno. «A visão da esperança é geradora, adere com alegria ao que o Espírito está a realizar, hoje. […] O acolhimento do Espírito torna-nos capazes de criatividade e audácia, enquanto vivermos a nossa sequela Christi» (CIVCSVA, Anunciai, 90). Nesta linha se orienta o tema do jubileu a celebrar em 2025, «Peregrinos da Esperança», já em preparação próxima pelo «Ano da Oração» em curso.

Nos dias dramáticos que enfrentamos, os Consagrados, conscientes da sua fragilidade e pecado, «voltados para Deus em expetativa», cultivarão um coração vigilante, apto para perscrutar os gérmenes de vida nova, e experimentarão, como diz Francisco, «o lampejar duma nova esperança» como se de um parto se tratasse. Ademais, todos os dias nos visita o Senhor de modo imprevisível. A salvaguarda de uma vida interior rica e intensa e a coerência com o estilo do Evangelho falarão por si (cf. Francisco, Homilia de 02.02.2024; Mensagem para a Quaresma 2024). Primeiro, Deus!

Maria de Fátima Moreira Martins (CONFHIC), Diocese de Lamego

 

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