Homilia da Missa Crismal, de D. Nuno Brás, na Sé do Funchal

1 de Abril de 2021

“Renovam em nome de Jesus o sacrifício da redenção humana,  preparando para os vossos filhos o banquete pascal”

(Do Prefácio da Missa Crismal)

1. A Missa Crismal é a derradeira celebração da Quaresma. O óleo santo, o Crisma, “sinal sacramental de salvação e vida perfeita, para aqueles que são renovados no banho espiritual do Baptismo”, irá, dentro de momentos, ser consagrado. Assim, tudo ficará preparado para vivermos com densidade interior a celebração do tríduo pascal de Cristo morto, sepultado e ressuscitado.

Mas não apenas a bênção dos santos óleos caracteriza a presente celebração. A permanência de Jesus Cristo ressuscitado em cada tempo e lugar não poderia aparecer aos homens sem o sinal sacramental da sua graça que é a pessoa e a vida de cada um dos seus sacerdotes: vasos de barro que transportam o tesouro inefável da graça divina; presença viva do único sacerdócio de Cristo; verdadeira mão de Deus estendida ao mundo contemporâneo; paradoxal acontecimento de salvação no meio deste nosso mundo.

Fosse o cristianismo apenas uma ideologia (um conjunto de ideias articuladas, propostas para a renovação da humanidade) ou uma moral (uma norma de bons comportamentos, com os quais se conseguisse uma humanidade nova), e não seria necessário qualquer sacerdote. Bastaria irmos pensando e adaptando, ao sabor do tempo e da actualidade, um conjunto de doutrinas; ou seria suficiente um código de conduta, também ele necessariamente modificável segundo o gosto da maioria. Bastaria que, à frente de cada comunidade, estivesse alguém com um mínimo de bom senso, que cuidasse da administração, velasse pela doutrina, exortasse pela palavra.

Mas não. O cristianismo é Cristo. Como S. Ambrósio gostava de repetir: “Omnia Christus est nobis” (“Cristo é tudo para nós”). Do acontecimento  que é a encarnação do Verbo, surgirá, necessariamente, uma doutrina, pois que Jesus é o Verbo do Pai; tal como surgirá uma Lei nova, um novo modo de viver, pois que Jesus é o Verbo feito carne, e nos propõe a vida, as opções concretas do quotidiano como lugar de acolhimento e expressão da salvação.

Contudo, nunca os baptizados seriam capazes de ser Cristo — de viver não apenas com Ele, mas também nele e por Ele — se Jesus tivesse ficado prisioneiro de um passado feito de ideias ou de leis; se, ressuscitado, não fosse um “Tu”, não nos envolvesse a nós, hoje, cristãos do século XXI, e nos permitisse ser um com Ele: seu Corpo, sua presença, na força do Espírito.

Para que isso aconteça, para que o “hoje” de Cristo possa aparecer e interpelar, ser vida e acontecimento, é indispensável a vida sacramental (vida de Cristo em nós, vivida e celebrada: liturgia!). É ela que permite dizer, no aqui e agora, o mistério pascal de Jesus; que nos permite, hoje, viver daquele mesmo e definitivo acontecimento redentor, com a mesma frescura e entusiasmo dos que foram suas primeiras testemunhas.

2. E, no seio dessa vida, desses acontecimentos sacramentais, estão aqueles que, sendo presença da paternidade divina, são também a presença pessoal da graça, no meio da Igreja e do mundo, sacramentalmente configurados com Cristo: presença de Cristo sacerdote a dar vida.

Em Jesus, a redenção não foi uma mera função a ser desempenhada, mas um acto pleno de oferta de toda a sua pessoa. É por isso que o ministério da salvação jamais se poderá resumir a uma tarefa, a uma função desempenhada, mesmo que com o maior profissionalismo. O serviço da salvação não poderá nunca deixar de ser o todo de uma vida, que tudo absorve, que a tudo oferece centro e sentido. Com razão, quando os nossos contemporâneos se querem referir a uma entrega que, sem admitir pausas ou intervalos, empenha a vida inteira de alguém, a ela se referem por analogia, dizendo que é como “um sacerdócio”!

A instituição do sacerdócio ministerial está intimamente ligada à instituição da Eucaristia. Celebra-a, por isso, toda a Igreja na Missa vespertina da Ceia do Senhor. Como não nos é possível estar simultaneamente com as nossas comunidades e encontrar-nos com os demais presbíteros à volta do bispo, tomamos esta celebração matutina como possibilidade de manifestar, diante de todos, o nosso empenho, a nossa vontade em permanecermos fiéis à missão que o Senhor nos confiou, e a que também nós nos consagrámos — certos da assistência da Sua misericórdia, entregando tudo o que somos e temos, para que a salvação de Cristo resplandeça hoje como presença eficaz  no meio do mundo.

3. Neste ano pastoral, particularmente dedicado a aprofundar o sacramento da Eucaristia, deixai que medite convosco (ainda que muito brevemente) numa afirmação do Prefácio que iremos rezar dentro de minutos, e que é proposto para a presente celebração: dirigindo-se ao Pai, a Igreja louva-O porque, de entre o povo sacerdotal, o Senhor Jesus escolheu homens que, mediante a imposição das mãos, “renovam em seu nome o sacrifício da redenção humana, preparando para os vossos filhos [de Deus] o banquete pascal”.

A oração da Igreja sublinha, deste modo, como a celebração eucarística constitui uma dimensão central da vida de cada sacerdote. Tal qualidade caracteriza todo o nosso ser, marca-nos, dá-nos forma: somos aqueles que celebram a Eucaristia para os filhos de Deus — e que o podem fazer porque sacramentalmente configurados com o único sacerdote que é Jesus Cristo. “Tudo é graça”. E, de um modo particular, cada um de nós é graça — nem de outro modo nos conseguiríamos entender, nós, homens pecadores e frágeis, mas em cujas mãos o Senhor entregou tão grandes mistérios.

Em nome de Cristo Senhor, participando do seu sacerdócio, renovamos o sacrifício da redenção humana. Sabemos como o momento da cruz — quando o Senhor carregou o pecado do mundo e, abrindo os braços no madeiro, fez seu o sofrimento de toda a humanidade, oferecendo-se plenamente ao Pai — sabemos como esse momento é caracterizado pelo “definitivo”.

Quer dizer: o momento da cruz é de tal forma pleno que não necessita de ser completado, acrescentado, vivido de novo, repetido, como o mostra abundantemente a Carta aos Hebreus. Tudo, todos, toda a história da humanidade — mesmo a história daquele que diz: “Deus não existe” (Sl 13) — converge para esse ponto único (o lugar do amor de Deus, verdadeiro ponto fixo, único capaz de elevar o mundo inteiro). Tudo é vivido, redimido naquele momento da cruz.

Mas esse momento singular, concreto e definitivo da redenção humana deixaria de o ser, se se visse impedido de ser presente e de salvar o homem distante no tempo ou na cultura. Em cada tempo e em cada lugar, urge que aquele momento da redenção se possa tornar um “hoje”, realidade contemporânea a cada ser humano. Urge que aquele momento da redenção apareça como é. Que aquele momento vertiginoso tome conta, transforme, dê nova qualidade à vida daqueles que o celebram, quer dizer: que dele vivem.

Ao contrário do agir humano, o agir de Deus não está limitado pelo tempo ou pelo espaço. Ele entra na história, assume-a e redime-a, fecunda-a. E o agir divino é a cruz de Jesus. Deus confia-nos, a nós sacerdotes, a missão de O tornar presente, visível, actuante, vivificador da vida dos demais.

Aquilo que cada homem faz, a sua actividade e seu ser, expressam-se também no modo como cada um aparece. Por isso, em nós, sacerdotes, o mistério da Eucaristia há-de aparecer, claro, manifesto, a dar qualidade à nossa vida interior e a mostrar-se no modo como somos com os outros e para os outros: Cristo em nós, a tornar possível o acesso de todos à salvação. Quem nos encontrar, em qualquer momento do nosso dia, há-de sentir-se mais próximo de Deus; há-de perceber que Deus não desiste de se tornar próximo, de o procurar, de lhe oferecer a vida. Por isso, preparamos para os filhos o banquete pascal.

4. Caros Padres, o momento em que vivemos é absolutamente singular. Neste tempo de pandemia, o mundo contemporâneo precisa de quem lhe abra janelas de horizonte e de sentido, janelas de Deus. Precisa, mais que nunca, de quem lhe prepare o banquete pascal. Quer dizer: de quem torne a Páscoa de Cristo presente, de quem mostre que também nós (e não apenas os nossos antepassados) fomos redimidos pela morte e ressurreição de Jesus — e que, por isso, não é um vírus, qualquer que ele seja, que nos impedirá de ser com Deus e para Ele; de viver com Deus e para Ele.

A renovação das promessas sacerdotais que iremos realizar dentro de momentos seja hoje expressão do nosso empenho — de cada um e de todos, como presbitério — expressão do nosso empenho renovado de serviço à humanidade contemporânea: aquele serviço que o Senhor nos confia de, quotidianamente, “renovar em seu nome o sacrifício da redenção humana, preparando para os filhos o banquete pascal”.

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