«Igreja não tem medo da era digital»

Assim como a revolução industrial produziu uma mudança profunda, também a revolução digital está a transformar não só a comunicação mas a própria antropologia. O diretor do Secretariado Nacional das Comunicações Sociais, cónego António Rego, apresenta a mensagem escrita pelo Papa para esta ocasião e reflete sobre o «carro em andamento» que a Igreja Católica apanhou, com o próprio Bento XVI a conduzir.

A mensagem que o Papa lança para o 45º dia mundial das comunicações sociais refere-se à «Verdade, anúncio e autenticidade de vida, na era digital». Estes três desafios – verdade, anúncio e autenticidade – são diferentes na era digital?

A Igreja celebra este dia há 45 anos e tem uma mensagem especial para ele. Este acontecimento nasce do II Concilio do Vaticano, no documento «Inter Mirifica – Sobre os meios de comunicação social» (1966, ndr.). Ao longo destes 45 anos deu-se uma evolução imensa no campo tecnológico. O que é que se passa nesta nova era digital?

O Papa escreve na mensagem para este ano – “assim como a revolução industrial produziu uma mudança profunda”, que guiou os fluxos das mudanças sociais, também hoje isso acontece com as mudanças na área digital. Quer isto dizer que está a surgir uma nova forma de comunicação, uma nova maneira de aprender e ensinar e isso impõe uma reflexão. Essa comunicação implica necessariamente a verdade.

A verdade, mesmo na era digital, é só uma e é sempre a verdade. Todavia, há formas diferentes dela se explicitar. A era digital põe as pessoas em comunicação através de um mundo onde há distância, imagens, onde há sentimentos de pessoas conhecidas. É muito fácil criar-se, nos media, uma falsa imagem de cada um.

O Papa diz que nesta era digital há uma oportunidade formidável de termos a nossa verdade. Podíamos chamar também a autenticidade, de não estarmos a vender um produto – a nossa imagem, o nosso interesse, o nosso prestígio, o nosso saber – mas passarmos nós próprios por aquilo que comunicamos.

Impõe-se reflexão sobre o caminho da comunicação digital, diz o Papa, porque ela pode responder ao desejo de sentido, de verdade e de unidade. O Papa interliga estes elementos na comunicação digital, sabemos que acontecem também nos media, mas sobretudo nos novos media que estão em toda a força presente na casa das pessoas, na ponta dos dedos dos jovens, nos amigos que se criam no outro lado do mundo nas redes sociais. E é esse fluxo de comunicação que é uma revolução e que apela a cada vez maior transparência na comunicação.

O Papa diz na mensagem que «a verdade do evangelho não é algo que possa ser de consumo ou de fruição superficial». No entanto, as redes sociais são um espaço instantâneo e superficial. Estamos perante uma contradição ou uma postura que se pede a quem partilha as redes sociais?

A instantaneidade e capacidade sintética que os media têm não está em conflito com o evangelho. Jesus tinha uma grande história da salvação e foi contando essa história de forma próxima, amiga e vivencial – eu diria, quase como nós fazemos hoje nos novos media e nas novas redes. Ele apontava a grandeza do reino dos céus através da história, de parábolas ou pequenos acontecimentos que ele ia notificando.

O Papa refere, de facto, que a verdade não deve ser distorcida ou compactada para caber na estreiteza comunicativa de muitos media – e é preciso ter algum cuidado pois a verdade é a verdade, a pessoa é a pessoa – mas há que ter em conta que este meios podem ser, e a palavra é dirigida sobretudo aos jovens, um meio extraordinário para transmitir a sua fé.

Não apenas na transmissão direta da fé, ou seja, no nosso credo naquilo em que nós acreditamos, professamos e vivemos, mas no nosso olhar sobre as coisas, sobre a vida, sobre as pessoas, sobre a amizade, sobre as relações que se estabelecem, sobre a capacidade que hoje temos de estar no grande areópago do mundo contemporâneo, que são estes instrumentos e meios, e que, mais ou menos intensamente, vamos utilizando como meio de partilha.

A pessoalidade é um elemento importante. Eu não partilho o evangelho como uma doutrina, mas como algo que eu percebo, vivo e estou empenhado em comunicar – não vendo teorias, mas comunico algo que integra a minha própria vida.

Podemos estar numa participação nas redes sociais a dois tempos? O Papa dirige-se sobretudo aos jovens e são eles que protagonizam as redes sociais, mas estarão menos preparados para um testemunho autêntico? As pessoas mais velhas, por outro lado estranham a imediatez das redes sociais? É um desafio a dois tempos, a dois públicos diferentes?

Eu penso que as pessoas mais velhas não entram mais nas redes sociais porque não têm treino, também tecnológico. Não foram habituadas a escrever cartas através de email, não foram habituadas à era digital – isto aparece nos anos 90. Não se trata de um meio ser pior ou melhor.

Mas também é verdade que há muitos idosos presentes no mundo digital. Têm os seus emails, os seus chats, as suas comunicações com os filhos e netos que estão do outro lado do mundo e, assim como aprenderam a transmitir a simplicidade da família, da proximidade dos afetos, podem também fazer passar o todo.

Eu próprio me defronto com esta situação. Mas cada vez mais os meios digitais estão a ultrapassar os convencionais. Não nos esqueçamos que a internet ultrapassa, em muitos casos, a televisão, que é o protótipo de um meio comunicativo aberto e de grande consumo.

Que estejam atentas as pessoas que julgam que isto é uma questão menor, meio arrumada, condenada a desaparecer. Isto é um carro que entrou na nossa estrada, que nos transporta, que faz parte da nossa cultura e civilização.

Tal como a revolução industrial efetivamente deu uma volta na sociedade, também esta revolução digital está a provocar uma autêntica volta na sociedade. Isso relaciona-se com a evangelização, com a comunicação entre as pessoas, entre as comunidades, não apenas entre as intranets mas no que as comunidades se podem enriquecer na comunicação, aqui e longe.

Há tantos missionários que estão longe e me escrevem pequenas frases, no Facebook (rede social na internet, ndr.). Não fazemos tratados mas o coração cabe por inteiro nesta comunicação. Está aqui uma fonte inesgotável de comunicação, um dom de Deus. Tal como um avião é um dom de Deus e cai, e um carro é um dom de Deus e também podemos ter acidentes. Aqui, podemos de facto ter acontecimentos que nos podem fazer desanimar sobre a eficácia destes meios mas creio que são uma benção de Deus e nesta época devem ser transportadores do que sentimos sobre a nossa fé e a nossa vida.

O Papa vem alertando para o facto de não só a comunicação estar a mudar, mas também o modo como se comunica. A seu ver, onde se sentem estas mudanças?

O modo como se comunica e como se ensina. Eu diria que o nosso circuito mental se alterou – o processo de aprendizagem, de apreensão, de memorização, o relacionamento que estabelecemos com as realidades, com o pensamento – tudo isso se alterou porque estamos colocados noutro parâmetro.

É aí que, sem sentir muito porque as mudanças não são instantâneas mas acontecem rapidamente, dá-nos outra aproximação mental às coisas.

O Papa diz, e bem, que não estamos apenas numa mudança tecnológica, de meios ou instrumentos, mas estamos perante uma mudança antropológica – faz parte do próprio homem, com reflexos na estrutura de aprendizagem e de ensino.

As próprias Universidades, na abordagem dos temas, reconhecem que os alunos nas encontram fontes de pesquisa e conhecimento e as próprias crianças, que nascem como Mozart direto às teclas do piano e ai desenha melodias, descobrem coisas que espantam os adultos.

É este todo que vai mudando e que, obviamente, vai tendo consequências na criação de imagens, nas pedagogias porque não vale a pena pregar no deserto as novas linguagens, mas perceber que algo novo nos está a chegar e que nós fazemos acelerar com a nossa participação.

A Igreja está a acompanhar estas mudanças, na comunicação e na forma de comunicar?

É interessante porque muitas vezes se pensou que a Igreja tem medo destas novidades e avisa mais os riscos que as potencialidades.

Tenho sentido neste Papa, e tenho acompanhado de muito perto em atividades e no Conselho Pontifício para as Comunicações Sociais, a visão extremamente aberta que tem em relação a estes meios. Não apenas na proclamação das mensagens, mas na utilização que é feita. Podemos ver hoje o que se passa no site do Vaticano, ou nas dioceses, nas páginas que cada vez mais se vão criando, mesmo no nosso país. Hoje quase não há paróquia ou movimento que não passe pelas redes sociais.

Obviamente que a Igreja poderia organizar-se melhor, mas esta não é apenas uma questão de organização, é também de criatividade por comunidades, até por pessoas.

Não é uma área em que uma doutrina se impõe de cima, mas antes um assumir aquilo em que se crê, mas onde cada um pode partilhar.

A Igreja não tem medo destes novos media que se vão desenhando cada vez mais nas expressões de cristãos e não cristãos e deve sempre sentir-se estimulada a investir na qualidade, nas imagens, no grafismo e na atualidade que sempre se exige, não abrindo páginas muito bonitas mas sem renovação. Deve refrescá-las com a vida.

Há uma correlação com a própria vida e esta presença no digital deve ser sempre potenciada, para que a vida não corra mais depressa e nós nos percamos ou para que nós não corramos ao lado da própria vida.

O Papa tem estado muito atento aos novos desafios digitais – recentemente encontrou-se com bloguitas, conversou com astronautas em missão espacial, em 2010 dirigiu-se aos sacerdotes que estão presentes no mundo digital. É um sinal de que a Igreja tem um Papa atento aos desafios desta área, mas que não tem medo de pedir o essencial da fé nos desafios que lança e nas reflexões que escreve?

Eu fiquei surpreendido porque desconhecia em Ratzinger esta apetência, este gosto e abertura a estes meios de comunicação social. Mas notei logo, um dia após a sua eleição, porque ele quis falar aos jornalistas – foram quase as primeiras pessoas a quem ele se dirigiu.

Ele percebeu no “espetáculo” que decorreu no funeral do Papa João Paulo II, na Praça de São Pedro, que o mundo tinha formas celebrativas mais extensas que a própria praça, que chegavam pelo som e imagem a todo o mundo.

Daí para cá, com uma atenção extraordinária aos novos media que não param de surgir, ele tem, nas suas mensagens, de forma progressiva, insistido neste elemento como um instrumento humano de comunicação e cristão de evangelização.

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