Homilia do Bispo do Porto na celebração da Paixão do Senhor

Assim recomeça o mundo, assim se refazem as vidas… “Vede como vai prosperar o meu servo: subirá, elevar-se-á, será exaltado. Assim como, à sua vista, muitos se encheram de espanto – tão desfigurado estava o seu rosto que tinha perdido toda a aparência de um ser humano – assim se hão-de encher de assombro muitas nações e, diante dele, os reis ficarão calados, porque hão-de ver o que nunca lhes tinham contado e observar o que nunca tinham ouvido”. Permiti que nesta celebração da Paixão do Senhor, em que todas as palavras humanas parecem algo descabidas, eu retome o espanto profetizado por Isaías. E que vos convide a assombrar-vos comigo, precisamente por estarmos aqui – como estão tantos milhões de cristãos pelo mundo inteiro – neste mesmo dia e em idêntica circunstância. É na verdade um momento forte e de especial contraste. Peçamos a Deus que o vivamos assim, precisamente na sua força e desafio. Sintamos antes de mais este último. Nenhum chamariz nos trouxe, dos que habitualmente atraem as pessoas. Não fizemos anúncios especiais, nem nos media, nem colados nas paredes. Teríamos mesmo alguma dificuldade em fazê-lo, porque o que aqui ouvimos não é imediatamente simpático nem agradável de escutar. Veremos de seguida o madeiro da cruz, donde pende um corpo maltratado. E tudo isto envolto em orações e cantos que não são os do gosto comum. – Grande contraste, de facto, e revelador sobretudo! Revelador de que um acontecimento de há dois milénios, tão contrário ao expectável apesar duma antiga profecia, conseguiu impor-se a multidões crescentes e tomar uma centralidade religiosa e cultural que ninguém adivinharia. Estamos aqui, irmãos e irmãs, porque sabemos e afirmamos com a nossa própria presença de corpo e espírito que o mundo e a história têm realmente um centro. Um centro tão inaudito e inédito que ninguém o inventaria decerto. Um centro que só Deus criou, como criara o mundo; um centro em forma de cruz, uma cruz para sempre transformada em autêntica árvore da vida. Retomemos a profecia, até com a obrigação de quem não pode fugir à evidência; sobretudo com a devoção de quem agradece a misericórdia. Por mais que a exegese esclareça o significado das palavras de Isaías, na sua precisa gramática e no respectivo contexto, o certo é que elas soam hoje, como soaram então, com alguma estranheza e mistério. Falam-nos de um “servo” que há-de ser exaltado pelas nações. Tratando-se de um servidor de Deus, tal seria certo e admissível. Mas não soavam assim as palavras seguintes, dizendo que esse servo ficaria desfigurado e pouco agradável de ver… Séculos depois, um profeta de Nazaré foi flagelado, coroado de espinhos e cravado numa cruz erguida no Gólgota, fora dos muros de Jerusalém. Tão horrível era aquele suplício, que dele se afastavam as pessoas e os olhares; e os romanos reservavam-no para os que consideravam mais vis. Depois duma agonia só apressada pelo excesso dos tormentos, Jesus morreu, desaparecendo do seu corpo exangue qualquer sinal de vida. Algumas referências evangélicas sugerem-nos que o próprio mundo participou daquela morte, com repetidos sinais de derrocada e de fim. As trevas quase apagaram o que restava da sua figura póstuma. Rapidamente o sepultaram ali perto e uma grande pedra devia selar para sempre qualquer memória que sobrasse, aliás restrita a uma vida breve e em pequeno espaço, entre Nazaré e Jerusalém. Tudo marginal e fugaz, aparentemente. E no entanto – no “entanto” que nos traz aqui – esta cruz tornou-se para multidões inteiras no lugar mais fixo e fixado das existências pessoais e colectivas. Três séculos depois, um novo imperador romano – sucessor daquele sob cuja autoridade Jesus fora condenado – veria nela o sinal da própria vitória: “Com este sinal vencerás!”. Abriu-se na altura um período de paz para a Igreja. Para falar de nós, o grande Nun’Álvares, que em breve será feliz e justamente canonizado, quis na bandeira com que nos defendeu uma grande cruz. Logo depois, a descoberta portuguesa do mundo levou nas suas velas o mesmo sinal e anúncio… Não é isto o mais importante, nem foi isento de ambiguidades, em especial quando a cruz se reduziu a motivo heráldico ou meramente honorífico. Mas o que realço, em nós e em tantos outros, é a enorme mudança que se deu, como profetizado fora, no modo de olhar a cruz, a partir do Crucificado – Ressuscitado. – E como se explicará tal facto? Apesar daquela profecia, por tão poucos retida, nada encaminhava os espíritos para aí. Os próprios discípulos, mesmo quando souberam da ressurreição de Cristo, levaram algum tempo a tomar a cruz como respectivo sinal comum. Para romanos e judeus, a cruz continuaria a ser um sinal de reprovação e não de glória. E foi a pouco e pouco que se impôs em geral o que já fora a grande convicção de S. Paulo, assim proclamada: “Toda a nossa glória está na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo!”. Glória é manifestação de Deus e da sua presença. Também nos custaria a admiti-la deste modo, em torno dum instrumento de suplício. Mas finalmente se soube e para sempre se disse que, exactamente ali, se manifestaram a justiça e a misericórdia divinas, naquela vida oferecida por Cristo, que o Pai aceitou para a repartir connosco, na força do Espírito. Assim recomeça o mundo e se refazem as vidas, quando o Filho eterno, assumindo a nossa humanidade a oferece ao Pai, vencendo a distância que os nossos múltiplos afastamentos alargaram entre nós e Deus. Vitória que lhe custou a morte, pois aí nos teve de ir buscar; morte que nos preencheu de vida, no seu Espírito recriador. Nesse momento o Gólgota transformou-se em paraíso e a cruz em árvore da vida. É porque o entrevemos e já sabemos que estamos aqui, cumprindo a profecia de Isaías e fixando na cruz o coração e a esperança. Não deixando de acentuar que esta autêntica revelação da cruz de Cristo se universalizou ao ponto de a tornar sinal e apelo para todos os povos e culturas, aqui ou muito além. Mas a mesma realização da profecia de Isaías inclui-nos a nós, como primeiramente incluiu a Mãe de Jesus, tornada Senhora das Dores e da esperança, primeira e pessoalíssima concretização do que toda a Igreja há-de ser com Ela. Cada um de nós junta aqui, na cruz do Senhor, a vida que leva, entre dificuldades e expectativas, suas, dos seus e do mundo inteiro. E também isso é revelação, por demonstrar que a cruz é suficientemente grande e disponível para abarcar um universo imenso de intenções e procuras. Não encontramos outro “lugar” assim, que alargue o Gólgota a todas as latitudes da alma. É neste sentido que, falando propriamente, ninguém “perde a fé”, antes na fé “se perde”, se não desistir de ser. Só se pode perder o que se tem e a fé não é coisa que tenhamos, sendo ela que nos tem a nós; como nos tem unicamente Deus, maior que o mundo e em tudo presente, mesmo na ínfima quantidade ou qualidade da existência. Por isso, na maior desolação e secura, poderemos dizer com Jesus que “temos sede”, não devemos dizer que não há água… A cruz, sempre a cruz, está repleta de toda a dor do mundo, que Deus assume em Cristo, para a preencher de misericórdia e redenção. E é por isso, exactamente por isso, que nos atrai tanto, a todos os peregrinos da esperança. Daqui a pouco desfilaremos, um a um, diante da cruz do Senhor. Levar-lhe-emos, em confiante devoção, a nossa vida e a vida do mundo: saúde e doença, trabalho e falta dele, sucesso e insucesso, família e solidão… Tudo deporemos aos seus pés, ou, ainda melhor, no coração aberto de Cristo. Fazemo-lo até por redundância, pois tudo isso assumiu Ele já e por todos. Sairemos depois, mais identificados com Cristo, para sermos no mundo outros tantos “sinais da cruz”, como nos persignamos. Sinais pela presença amiga, sinais pela palavra de consolação, sinais pela caridade actuada. E cada vez seremos mais deste dia, tão irrecusável como certo, para que a Páscoa chegue depois ao mundo inteiro. Sé do Porto, 10 de Abril de 2009 + Manuel Clemente

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