Homilia do Bispo do Funchal na Missa da Ceia do Senhor

“Fazei isto em memória de mim”

“Fazei-o em memória de Mim”. Escutadas hoje, estas palavras de Jesus ressoam, não raras vezes, como um simples: “quando estiverdes juntos e comerdes e beberdes a ceia, lembrai-vos de mim”. Como se fosse uma simples repetição para recordar ou para nunca esquecer.

A Eucaristia não é uma mera lembrança distante ou representação da Última Ceia. Se fosse assim, deveríamos hoje estar sentados à mesa pascal judaica, a comer ervas amargas, juntamente com um cordeiro, como terá sucedido naquela última refeição de Jesus.

Contudo, desde os primeiros dias, logo após os acontecimentos pascais, os cristãos celebraram a Eucaristia sem esperar que passasse um ano e chegasse de novo o momento da Ceia, e sem comer o cordeiro imolado no Templo e as ervas amargas. O ponto de partida da celebração da Eucaristia não foi uma festa anual mas a ressurreição do Senhor, esse acontecimento que, no meio do tempo, no seio da história humana, projecta o fulgor da vida divina e nos oferece um novo sentido para a existência.

Aquilo que os cristãos celebram — hoje como desde o primeiro dia — é o Mistério Pascal de Jesus e, com ele, o mundo novo que nos é oferecido, a cada um de nós, pela morte e ressurreição do Senhor. É daqui, e à luz deste acontecimento, que podemos descobrir o significado pleno da celebração cristã e também o significado daquela Ceia derradeira que Jesus quis comer com os seus.

Da Última Ceia, o que foi retido e celebrado pelos cristãos foram aquelas palavras e aqueles gestos que, no meio dos ritos e celebrações judaicas, trouxeram consigo a novidade, proclamada depois pela morte e ressurreição do Senhor: “Tomai e comei: isto é o meu Corpo”; “Tomai e bebei: este é o cálice do meu sangue”; “Fazei isto em memória de mim”.

Ainda que vindos da parte de Jesus, tais palavras e gestos terão sido difíceis de escutar pelos discípulos. Eles traziam consigo a identificação de Jesus com um pedaço de pão e com a taça de vinho. Mais ainda: o convite a comer o Seu Corpo e a beber o Seu Sangue e, ao mesmo tempo, a fazê-lo partilhando-os entre os presentes, num real gesto comunitário.

Jesus identifica-se com o pão e com a taça de vinho. Mas como pode tal acontecer? Quem é Aquele que se identifica com o pão e o vinho? Certamente: o Jesus que pronuncia estas palavras e realiza estes gestos é Aquele que os Doze tinham acompanhado ao longo dos anos nas caminhadas da Galileia e da Judeia, em particular nas suas refeições com os pecadores. Mas esse Jesus seria apenas uma memória, uma recordação, uma narração distante, não uma identificação, uma realidade. Só o Senhor morto e ressuscitado se poderia identificar com o pão partido e o cálice de vinho partilhado. Apenas Aquele que na cruz se ofereceu em sacrifício, experimentou a morte e ressurgiu no primeiro dia do mundo novo; apenas Ele poderia dizer: isto é o meu Corpo, este é o cálice do meu sangue — ou seja: sou eu mesmo, tomai e comei! Apenas Ele poderia realizar esse gesto para sempre!

Ao pronunciar estas palavras, Jesus cria uma nova presença, uma presença real, que se oferece a si mesma, que não depende das memórias dos amigos humanos, mas que depende dele próprio e do seu novo modo de ser ressuscitado: a presença sacramental. Apenas Deus o poderia fazer: apenas o Deus que surge vitorioso da morte e do sepulcro, e que, com a sua vida, atravessa o tempo e a história, apenas Ele o poderia fazer!

Essa era, aliás, o sentido do “memorial” para o povo de Israel. “Em cada geração — diz o texto da celebração pascal judaica —, cada um deve considerar-se como tendo pessoalmente saído do Egipto, porque a Torah diz: ‘contarás ao teu filho naquele dia dizendo: isto é o que o Senhor fez por mim quando saí da terra do Egipto (Ex 13,8). Não apenas os nossos pais foram libertados pelo Santo, bendito seja Ele, mas também nós, como diz a Torah: e fez-nos sair para nos conduzir à terra prometida aos nossos pais e no-la oferecer” (Haggada de Pesah).

Porque eram acção de Deus na história, os acontecimentos da Páscoa revestem-se de uma tal qualidade que englobam todos aqueles que os celebram, ainda que distantes no tempo — tornam aqueles que os celebram presentes à saída do Egipto e à entrada na Terra Prometida.

Antes de se entregar no sacrifício da cruz; antes de experimentar o silêncio do sepulcro; antes de ressuscitar glorioso, o Senhor permitiu que os seus vivessem antecipadamente esses acontecimentos centrais e que, como memorial, eles permanecessem como realidade constantemente presente e modificadora da história e da vida.

Como sucedeu a todos os cristãos que nos antecederam, a nós, os seus discípulos do século XXI, o Senhor permite vivermos esse momento. Também nós estamos hoje, como comunidade de discípulos, sentados à mesa eucarística. Perante o mistério que celebramos, quer dizer: perante esta presença, este “hoje divino”, os acontecimentos do Êxodo tornam-se figura, anúncio; perante esta presença, percebemos como a morte e sepultura do Senhor se revestem da qualidade de acontecimentos de salvação; perante esta presença, percebemos a Eucaristia que celebramos. Percebemos a graça de nos encontrarmos reunidos à volta do Senhor que, uma vez mais, nos diz: “Tomai e comei isto é o meu corpo; tomai e bebei, este é o cálice do meu sangue”.

Sentados à mesa eucarística com Jesus, deixemos que Ele nos conduza, uma vez mais, pela Sua morte, sepultura e ressurreição. Comunguemos, irmãos. Quer dizer: comamos o seu Corpo, bebamos o Seu Sangue, unamo-nos a Ele; deixemos que Ele nos faça seus, e que a Sua Cruz seja a nossa. Porque aquele que come o Seu Corpo e bebe o Seu Sangue passa, não já do Egipto à Terra Prometida, mas da morte à vida. Participemos do memorial da Sua Paixão. Deixemos que hoje ela se faça presente na nossa vida. Mostremos a todos o caminho que Deus nos oferece para participar da Sua vida eterna.

Sé do Funchal,
19 de Abril de 2019

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