Entrevista: Situação social em Cabo Delgado «tende a ir de mal a pior», afirma diretor da Cáritas local

Manuel Nota é o convidado da entrevista conjunta Ecclesia/Renascença e afirma que há «alta de fundos» para projetos de desenvolvimento, refere-se às eleições em Moçambique e lamenta que os conflitos que duram há 7 anos começam a ser «algo com que se convive»

Foto: Cáritas

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Paulo Rocha (Ecclesia)

Como caracteriza a situação na região de Cabo Delgado, atualmente?

Atualmente, as coisas parecem estar calmas, mas ainda continuam algumas incursões que, infelizmente, não têm sido relatadas como eram no passado. Aparentemente, a situação está controlada.

 

Não há o sentimento de insegurança entre a população?

Existe alguma insegurança… Depois de tantos anos, as pessoas que viviam em centros de reassentamento decidiram regressar para as suas terras de origem. Algumas tiveram sucesso, chegaram e reiniciaram a vida sem problemas, outras famílias, ao chegar à zona, voltaram a ser atacadas e tiveram que, novamente, sair dos seus locais habituais para procurar outros considerados seguros, mais próximos das suas zonas de origem.

Um relatório recente da Organização das Nações Unidas revela que os terroristas apoiados pelo Grupo do Estado Islâmico estão mais ativos e a implementar medidas de ataques mais sofisticados, mais cirúrgicos na província de Cabo Delgado, incluindo em algumas áreas próximas do local onde está instalado o maior projeto de gás em África. Notam no terreno esta instabilidade?

Pessoalmente, não consigo notar, porque nas zonas onde há exploração de gás temos lá a proteção da força ruandesa, que tem vindo a garantir a segurança da zona. Trabalham em parceria com a nossa Força de Segurança. Nos sítios mesmo de exploração de gás não se fala nada de ataques. Onde se fala de ataques é nas zonas circunvizinhas ou mais próximas.

E o que é que isso quererá dizer? O que é que se pode indicar?

A minha perceção é que, querendo-se explorar, sem problema, há uma segurança forte, mas nas zonas que não são de maior interesse dos exploradores de gás, a população fica à deriva. Só Deus está lá para proteger. E uma vez ou outra faz-se sentir a presença da força.

Existe uma linha de pensamento que associa os ataques essencialmente aos interesses económicos da região. Nesta altura, há infraestruturas em risco?

Infraestruturas em risco, como tal, acho que não, porque o grande interesse, na minha maneira de perceber, é procurar inviabilizar essa questão de exploração de gás. Por isso, andam ali a atacar um sítio, atacar o outro para desencorajar aqueles que têm intenção de poder dar continuidade ao esse processo de exploração de gás. Se existem infraestruturas em risco, não se consegue.

Como é que está a convivência entre as forças militares no terreno e as populações?

A última vez que eu visitei um Mocímboa da Praia vi que existe uma boa relação entre a força de proteção e a população. Quando chegámos, fomos aconselhados a apresentarmo-nos à polícia, para não parecermos pessoas estranhas naquele local. O que conseguimos ver é que as pessoas conhecem-se entre elas. Os militares conhecem a população e a população conhece também os militares, porque eles estão todo o tempo juntos. Acho que é uma boa relação. Não conseguimos ver desentendimentos, havia muita aproximação.

Os militares de Angola e da Namíbia, que integravam a força militar dos países da África Austral em Cabo Delgado, saíram do terreno em maio. E, em final de março, a missão militar da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral também já tinha saído do território. Aliás, o Bispo de Pemba mostrou-se preocupado com esta situação. Isso influenciou as formas de ação terrorista no terreno?

Não percebo nada de ação militar, mas aquilo que eu vejo é que, de alguma forma, criou força para os terroristas porque, ao saber que a zona estava desprotegida, tinham mais força de poder ir e fazer, desfazer. Enquanto estiveram lá os militares da SADC [Southern African Development Community], se pensassem em fazer algo, tinham de pensar duas vezes, porque é uma força com uma tática militar um pouco mais forte, mais sofisticada. Agora que saíram, conseguimos ver que houve aquele ataque em Macomia, em Maio, porque já havia informações de que os da SADC estavam para sair, e os insurgentes acharam que poderiam entrar. Agora que voltou-se a ter a força ruandesa, pouco se fala de ataques na zona de Macomia

É possível fazer um cálculo do número de pessoas deslocadas?

Já chegamos a ter perto de um milhão de pessoas deslocadas. Agora, o último relatório que eu vi falava de perto de 583 mil pessoas já regressadas ou retornadas, mas continuamos com deslocados porque, quando as pessoas regressaram, chegaram e encontraram seus sítios não seguros e voltaram a sair para outros sítios. Então, ainda estão a viver o ambiente de deslocados, não nos mesmos sítios onde estiveram durante muito tempo, mas noutros sítios. O movimento de pessoas continua a acontecer.

E as crianças continuam a ser as principais vítimas de toda esta situação?

Claro, a criança é quem sofre mais com esses deslocamentos. Os pais facilmente se fixam, conseguem adaptar-se, mas as crianças são aquelas que têm que estar sempre a procurar novas adaptações e, como consequência, passam por muitas necessidades.

E as notícias de raptos de crianças, das quais se ouviu falar durante muito tempo, prosseguem ou nos últimos tempos abrandou essa situação?

Já não se fala tanto de rapto de crianças. Há semanas atrás ouvi dizer que algumas mulheres tinham sido raptadas, mas logo depois foram libertadas. Já não há muito rapto de crianças.

A Igreja Moçambicana, através da Conferência Episcopal, em diversos momentos denunciou as violações dos direitos humanos e apelou à paz na região. Em algumas igrejas locais, vêm-se realizando vigílias de oração pela paz. Sentem o apoio solidário da Conferência Episcopal Moçambicana?

Claro, a Igreja está sempre presente, só que a população de Cabo Delgado, e não sei se tem a ver com questões culturais, pouco vê isso, porque para eles a ajuda seria algo material. Então, a questão moral, a questão de consciencialização, para eles é uma ajuda, sim, mas não consideram uma ajuda direta. Para eles, para sentirem que há envolvimento da Igreja, gostariam de estar a receber produtos, produtos materiais.


Mas esse envolvimento também é fundamental por parte da Conferência Episcopal como instância de diálogo para o fim do conflito, não é? 

Claro, é muito importante. Mas a Conferência Episcopal tem-se feito sentir a partir de nós, Cáritas. Mas o que nos trava ultimamente é a questão de falta de projetos que financiem o que tem sido as nossas ações. A nossa presença em locais de reassentamento tem sido muito reduzida agora. Deparamo-nos com falta de fundos para podermos atender aquelas pessoas necessitadas. Mas sempre que for possível, nós fazemos o esforço e vamos lá dar uma mão. E dizemos que estamos a atuar em nome da Igreja Católica.

 

Em março, Manuel Nota alertava precisamente para esses problemas financeiros da Cáritas de Pemba. Pelo que nos diz, então, a situação não está ultrapassada?

Não, tende a agravar-se, tende a ir de mal a pior. Porque os projetos que estávamos a implementar estão a terminar e não há esperança de podermos contar com novos financiamentos. Temos vindo a bater a portas em muitos sítios, mas, infelizmente, não temos tido respostas positivas. E o motivo é mesmo que se está em crise financeira e o pouco que existe em termos de recursos, se calhar, agora dá-se por amizades e por aí fora. Nós, porque não temos muitos amigos que estejam ligados a grupos de financiadores, temos vindo a passar grandes necessidades mesmo.

O Manuel Nota referia precisamente em março a importância da ajuda solidária de Portugal. Admite o recurso, nomeadamente a outras Cáritas, para tentar, de alguma forma, atenuar essa questão financeira? 

As outras Cáritas também estão a passar por momentos não muito bons, financeiramente. Em Moçambique e também além-fronteiras. Aquelas que têm sido Cáritas irmãs e que por muito tempo trabalharam connosco, também têm vindo a dizer que estão impossibilitadas de nos dar uma mão, porque também estão a passar por dificuldades financeiras. Ganhamos agora um projeto que é fruto do apelo de emergência que foi lançado pela Cáritas Moçambicana, em que a Cáritas Portuguesa e o Instituto Camões decidiram subscrever um projeto para apoiar 350 famílias no Distrito de Mecufi , com alimentos e alguns produtos de higiene individual e coletiva. Agora, estamos só à espera de passar a questão do período de eleições que Moçambique está a viver, para depois entrarmos no terreno e podermos fazer a assistência.

Quer aproveitar este momento para, aos microfones da Renascença e da Agência Ecclesia, lançar este apelo à ajuda? 

Claro, nós precisamos de apoio, porque, por vezes, nós só vemos gente a sofrer, mas não podemos fazer nada, porque não temos como ajudar, e se houver Cáritas irmãs ou outros parceiros interessados em ajudar aqueles que sofrem, poderiam trabalhar connosco, que nós fazemos chegar aquilo que são os recursos que gostariam que fossem aplicados para apoiar os mais necessitados. Nós somos uma organização religiosa, como sabe, e estamos comprometidos com o bem-estar do próximo.

Sete anos depois dos conflitos, sente que Pemba e Cabo Delgado estão cada vez mais esquecidos?

Eu acho que o ambiente de emergência agora já não se faz sentir tanto. Aqueles que sempre doaram entendem a emergência como algo que se desenvolve em pouco tempo.  Então agora o que se está a falar é que nós temos de implementar projetos de emergência, mas com uma componente de desenvolvimento, porque se a pessoa já ficou sete anos num ponto, acha-se que já é tempo suficiente para a pessoa procurar meios de poder avançar com a sua vida, e não pensar em regressar para um sítio que abandonou há sete anos. Então, os projetos que temos vindo a subscrever têm mesmo a ver com a questão de emergência versus desenvolvimento. Temos colocado a componente de desenvolvimento, sobretudo quando se fala de meios de vida, para que as pessoas comecem a viver por elas mesmas e não só a depender de apoios externos.

Não digo que Cabo Delegado esteja esquecido; não está. Mas a falta de fundos dá essa ideia de que parece estar esquecida.

Mas continua a haver razões de queixa da atuação nomeadamente da comunidade internacional? 

Algo de estranho que tem acontecido ultimamente: temos algumas agências que na altura não tinham mandato para executar ou implementar projetos, e que agora, nomeadamente algumas agências internacionais que ,no lugar de nos confiar, que somos organizações não-governamentais locais a implementar, eles mesmos fazem o papel de implementadores e isso deixa-nos muito vulneráveis em termos de financiamento e as poucas organizações que existem passam a vida a murmurar que estão sendo excluídas na questão de financiamento. Os financiamentos não estão a ser transparentes!

E o Programa Alimentar Mundial?

O Programa Alimentar também está a passar por momentos financeiros não muito bons. Como falamos a última vez, o Programa Mundial de Alimentação tinha anunciado que estava com problemas sérios de dinheiro e que ia suspender algumas ações, mas depois conseguiram algum fundo que têm vindo a trabalhar de forma intermitente.

Há vezes que dão, outras não dão, em alguns sítios dão um mês, outro mês não dão. Os outros que têm sorte recebem todos os meses e assim a vida está andando. São mesmo as questões financeiras que estão a fazer com que possa parecer que as organizações não têm vontade de atender àqueles que são os necessitados.

 

Isso poderá ter a ver com outros conflitos em outras áreas do globo?
Pode ser sim, porque a última vez que contactamos os outros nossos financiadores da Europa disseram-nos que o foco deles agora é olhar para as outras áreas que também estão a sofrer por conflitos armados. Então, para Moçambique tem pouco a fazer; a grande atenção está virada para os outros países.

Manuel Nota, nós falamos no primeiro dia da semana em que os eleitores moçambicanos escolhem o seu novo governo, as eleições são dia 9. Que expectativas têm? 

Vamos esperar para ver! Aquilo que eu acho é que a população de Moçambique irá afluir em massa às urnas, porque precisamos que as coisas mudem um pouco. Mas, porque o voto é secreto, eu não gosto muito de avançar assim com tendências…  Temos visto enchentes nas campanhas eleitorais, porque a nossa televisão tem mostrado. Até agora está quase equilibrado, vamos esperar para ver. Mas que estamos cansados, nós estamos, com algumas maneiras de fazer as coisas.

E durante a campanha eleitoral, sentiu preocupação dos partidos em relação a Cabo Delgado ou o tema foi ignorado? 

Bem, o conflito de Cabo Delgado já parece algo com que se convive. Parece que já nos habituamos a viver com ele.  Um ou outro preocupa-se, fala e pronuncia-se um pouco sobre a questão da província de Cabo Delgado e dos conflitos. Mas, para os outros, é como se nada estivesse a acontecer; é algo que praticamente já estamos a viver com ele. Então, não há tanta preocupação.

Ou seja, o conflito passa um pouco à margem do resto do território? 

Bem, o conflito faz-se sentir muito em alguns distritos, não em toda a província. Talvez seja este o motivo que em algum momento não se cria muita preocupação.

 

E por último perguntamos-lhe sobre o papel do Vaticano e em particular do Papa Francisco neste conflito. Por exemplo, em fevereiro disse no ângelus que a violência contra populações indefesas, a destruição de infraestruturas e a insegurança estão novamente desenfreadas na província de Cabo Delgado. Como ouvem, como acolhem estas palavras do Papa Francisco e que fator de transformação, de mudança encontram nesses pronunciamentos do Papa? 

Eu acho que as palavras do Santo Padre criaram a mudança de estratégia dos insurgentes. Tenho acompanhado aqui a situação e noto que agora eles já não têm sido cruéis como eram no princípio. Em algum momento eles chegam a aldeias e dizem à população para não fugir, que eles não estão preocupados em matar a população. Então isso mostra que as palavras do Papa Francisco foram ouvidas! Porque foram atacando pessoas indefesas e foram destruindo infraestruturas de uso público que, no final de contas, a população depois é que sofre porque o seu hospital foi destruído, porque a sua escola foi destruída, e agora acho que valeu um pouquinho porque mudaram de estratégia de atuação.

 

Portanto sentem nas palavras do Papa conforto e proximidade?
Claro, claro, nós sentimos isso.

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Agência ECCLESIA

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