Entrevista: Memórias portuguesas do Concílio (repetição)

D. Eurico Dias Nogueira, arcebispo emérito de Braga, lembrou em entrevista à Agência ECCLESIA (em 2011) o anúncio do II Concílio Ecuménico do Vaticano, que viria a viver de perto, nas sessões finais, então como bispo de Vila Cabral, em Moçambique

Aos 88 anos, D. Eurico Dias Nogueira, arcebispo emérito de Braga, lembra o anúncio do II Concílio Ecuménico do Vaticano, que viria a viver de perto, nas sessões finais, então como bispo de Vila Cabral, em Moçambique. Em entrevista à Agência ECCLESIA, o único prelado português ainda vivo a ter participado no evento passa em revista vários temas

 

Agência ECCLESIA (AE) – Este ano celebra-se o cinquentenário da convocação do II Concílio do Vaticano. Atualmente, é o único português vivo que esteve presente neste acontecimento eclesial. Recorda-se da sua participação?

D. Eurico Dias Nogueira (EDN) – Ouvi a convocação do Concílio com muito entusiasmo. Ainda bem que a Igreja resolve encarar os problemas no seu conjunto e não espera que seja só Roma com os seus organismos a resolver os problemas. No início, parecia que o Vaticano, a Santa Sé, quis dominar e orientar as coisas só por ela, mas houve uma reação forte da periferia. Alguns países reagiram e disseram: «O Concílio é nosso. É de toda a Igreja e não de um grupo que manda em Roma».

O Concílio tornou-se um lugar de discussão clara, pública e sem reservas, mas terminado verificou-se que havia uma tendência, de novo, da Santa Sé para centralizar e não deixar as «coisas» correrem muito fora das suas mãos. A meu ver, isso foi mau porque deviam ter mantido um processo de orientar a vida da Igreja e encarar os problemas no seu conjunto. Não digo que se devia fazer um Concílio de quanto em quanto tempo…

 

AE – Mas é apologista que devia realizar-se um Concílio de 50 em 50 anos?

EDN – Sim. 50 a 50 anos. O máximo de cem em cem anos devia haver um Concílio.

 

AE – Os documentos elaborados na altura ainda estão atuais?

EDN – Estão. No entanto, há «coisas» que não seguiram o rumo que se esperava e por isso desatualizaram. A vida da Igreja não está a acompanhar e a desenvolver-se de acordo com os documentos.

 

AE – De todos eles, qual o documento conciliar que o marcou mais?

EDN – É difícil responder porque todos eles são importantes. Todos foram bem discutidos e votados. A votação, de modo geral, era bastante consensual e não havia divergências grandes na parte final. Isso só mostra que os assuntos tinham sido bem estudados e as propostas estavam bem feitas. O que se verificou mais tarde é que nem tudo o que se resolveu no Concílio, e que foi objeto de documentos, se cumpriu.

Tem havido uns certos atrasos e reações no sentido de se voltar atrás, não se avançar. O Concílio era para continuar… e de quando em quando fazer-se o ponto da situação.

 

AE – Deu a sua contribuição para alguns documentos?

EDN – Não fiz nenhuma intervenção pública, até porque só estive nas duas últimas sessões. Fui nomeado bispo entre a segunda e a terceira sessão e fui logo convocado para lá. Tentei estudar os assuntos. Aconteceu até uma coisa estranha, logo que fui nomeado para o Concílio entendi que tinha o direito de saber como as coisas se passavam e procurei um bispo português, D. Ernesto Oliveira, a pedir informações para estar a par dos acontecimentos, mas ele recusou. Não pude contar com esse apoio…

Quando cheguei lá, verifiquei que a maior parte dos temas já estavam elaborados porque as sessões anteriores é que tinham sido de estudo. Na parte final, as discussões eram poucas. De modo que não tinha muito à vontade para intervir. Além disso, as intervenções eram estudadas pelos grupos dos bispos e seus conselheiros e Portugal não tinha isso.

 

AE – Portugal não tinha uma escola teológica?

EDN – Não tínhamos Faculdade de Teologia. Não havia um conjunto de teólogos que ajudassem e também não houve esforço por parte dos bispos para os arranjar. Recordo-me de ter lamentado, junto de um bispo, não termos um grupo que nos ajudasse. Não tínhamos escola, mas havia casos isolados de padres, com muito valor, que podiam estar connosco.

 

AE – Ainda se recorda desses padres que poderiam ter dado o seu contributo? Pode citar alguns nomes?

EDN – Citei, a D. Ernesto Oliveira (bispo de Coimbra), o padre Urbano Duarte (diocese de Coimbra) podia ter estado lá…

 

AE – E o padre Manuel Paulo?

EDN – O Paulo era muito novo, mas era uma pessoa capaz. Também o citei. Eles podiam ajudar, mas ele (bispo de Coimbra) disse-me: “Se eles viessem para cá faziam falta em Portugal”. No entanto, disse-lhe que isso não era razão porque mais importante era o que se passava no Vaticano.

 

AE – Era lá (Vaticano) que se refletia o futuro da Igreja.

EDN – Mesmo que as coisas, em Portugal, parassem um «bocadinho», faltavam lá esses padres com mais valor.

 

AE – O padres Urbano Duarte e Manuel Paulo eram da diocese de Coimbra, mas havia também padres de outras dioceses com capacidades.

EDN – Lembro-me que citei também o padre José Policarpo (diocese de Lisboa), um homem muito culto com doutoramento em Teologia, e o padre Godinho (diocese do Porto). Alguns até foram nomeados bispos. No entanto, não me pareceu que os bispos tivessem sentido muito essa necessidade. Isso foi mau porque os bispos portugueses não marcaram «grande coisa» no Concílio.

 

AE – Qual foi o bispo português que se destacou mais nesta reunião magna?

EDN – Foi D. Sebastião Soares de Resende que era bispo da Beira (Moçambique). Foi, sem dúvida, aquele que interveio mais vezes e com boas intervenções. O D. António Ferreira Gomes também interveio… mas o D. Soares de Resende é que foi, a meu ver, aquele que «puxou» mais. A meio do Concílio, D. Manuel Trindade Salgueiro foi-se «abaixo» e não fez grandes intervenções.

O cardeal patriarca, D. Manuel Gonçalves Cerejeira, pareceu-me demasiado tímido. Parecia que os bispos portugueses não se sentiam apoiados num grupo.

 

AE – Nem com a comunidade brasileira?

EDN – Não se sentia que os portugueses estivessem muito ligados ao Brasil. Cada país seguia o seu caminho. É preciso não esquecer que só estive presente na parte final, quando não existiam grandes discussões, mas apenas decisões a tomar. Por duas vezes, quis intervir, mas não tive oportunidade. Foi apenas por escrito… fazem parte das actas.

 

AE – Segundo consta, quando teve de tirar uma fotografia para participar no Concílio teve de pedir uma indumentária emprestada.

EDN – É verdade… Foi o bispo auxiliar de Coimbra, D. Manuel Jesus Pereira, que me emprestou. Vesti as vestes dele, da cintura para cima… E tirei a fotografia porque foi tudo muito rápido.

 

AE – Da palavra à ação vai um longo caminho. Qual dos documentos conciliares onde se notou mais evolução, a chamada passagem da teoria à prática?

EDN – Os grandes choques e discussões foram nas primeiras sessões que acompanhei apenas pelos jornais. Atualmente, nota-se que a Igreja periférica, aquela que está espalhada pelo mundo, tem uma voz mais ativa e faz-se ouvir no Vaticano. Antes do Concílio, era raro um bispo sobressair e quando isso acontecia era olhado de soslaio, sobretudo da parte do Vaticano. Os bispos da Bélgica, Holanda e Alemanha pronunciavam-se, mas era olhados com suspeita. Agora isso não acontece. Um bispo fala à vontade…

 

AE – Fala à vontade, mas em concordância.

EDN – Há assuntos… que entenderam que já estão resolvidos. Temos o caso do sacerdócio das mulheres. De tempos a tempos fala-se nisso. Eu tenho uma maneira de pensar… Por temperamento, parecia-me que não havia razões teológicas para se opor.

 

AE – Acredita que neste pontificado poderia haver um Concílio?

EDN – Neste não. Tem de ser um Papa jovem que se sinta com capacidade para orientar as «coisas» para um novo Concílio.

 

AE – Mas o Papa João XXIII não era jovem quando convocou o Concílio…

EDN – Ele não sabia o que era um Concílio e ficou desnorteado quando começaram as discussões. Ele contava que um Concílio fosse mais simples. Como um Concílio é uma «coisa» muito séria, só um Papa que se preveja que tem uma vida longa diante dele.

 

AE – Acredita que a Igreja possa ter um Papa português?

EDN – Acredito. Quem ia acreditar que haveria um Papa polaco? Foi uma surpresa. A preponderância dos Papas italianos terminou. Não creio que volte a acontecer isso.

 

AE – Ficou surpreendido com a eleição do cardeal Ratzinger para Bento XVI?

EDN – Era um homem muito conhecido e com grande peso no Vaticano. Confesso que não tinha nenhuma preferência no conclave. Havia meia dúzia de cardeais por esse mundo fora, com capacidade.

 

AE – Voltando novamente ao II Concílio do Vaticano, qual dos setores da pastoral que evoluiu mais? Foi o lado litúrgico?

EDN – Sim. Já havia um trabalho feito antes do Concílio. Muitos anos antes, já tinha começado a reforma litúrgica. Quando apareceu o Concílio, encontrou um tema já elaborado e avançou-se com ele mais rapidamente.

 

AE – Para comemorar o cinquentenário da convocação do II Concílio do Vaticano, Bento XVI proclamou o «Ano da Fé». É uma forma de colocar os documentos conciliares novamente na ribalta?

EDN – É uma preocupação de voltar a «mexer» nos documentos e atualizá-los. Com a discussão, revelam-se novos aspetos.

 

AE – Há falta de formação sobre estes documentos?

EDN – Há muitos cristãos ativos e cultos que estão dentro dos assuntos, mas a generalidade dos cristãos vive alheia. Tem a sua religiosidade, mas não aprofundam. Os teólogos (padres e leigos) têm estudado o Concílio.

 

LFS

(Primeira parte da entrevista realizada pela Agência ECCLESIA ao arcebispo emérito de Braga)

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