Entre usar e ser usado

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

“O usuário final, no fim da história, foi usado.”

Li esta frase num artigo da revista Wired. A tecnologia por si mesma não é um problema, mas o facto de não termos previsto o impacte que teria na nossa vida é que deveria levar-nos a pensar no papel que representa para nós e para os relacionamentos com os outros.

Num outro dia, no final da missa da tarde, enquanto o sacerdote dava alguns avisos, duas pessoas tiraram do seu smartphone e puseram-se a fazer não sei bem o quê. Aquele era um tempo-morto e cada vez mais somos incapazes de nada fazer durante tempos, supostamente, mortos. Chamo a isto uma dormência intelectual.

 

A insuportável leveza do tédio

”A mente é o seu próprio lugar, e em si mesma pode fazer um Céu de um Inferno, e um Inferno do Céu.” (John Milton, Paradise Lost)

Investigadores do Departamento de Psicologia da Universidade de Virgínia nos EUA fizeram uma experiência; intrigante com estudantes universitários: ficar sozinhos numa sala sem decorações durante 6 a 15 min e enterterem-se com os seus pensamentos.

Todos os seus pertences eram guardados, incluindo smartphones. Podiam pensar aquilo que quisessem. As únicas regras eram permanecer sentados e acordados. Quando questionados sobre a experiências, 49.3% disseram que não gostaram, 57.5% que foi muito difícil concentrarem-se nos seus pensamentos e 89% afirmou que a sua mente vagueou. Numa outra experiência, os investigadores fizeram algo mais radical. Durante 15 min os participantes deveriam enterter-se com os seus pensamentos, ou, se quisessem, poderiam dar um choque eléctrico a si mesmos carregando num botão. O resultado foi inesperado, tendo 67% dos rapazes e 25% das raparigas preferido levar choques eléctricos do que ficar a sós com os seus pensamentos.

A tecnologia tornou-se um portal para o entertenimento fácil. E, enquanto uma bebida alcoólica custa dinheiro e depende das horas em que o bar/café está aberto, a dopamina para combater o tédio, recebida através dos smartphones, é um bar aberto e sem limite de tempo. Gradualmente, estamos a perder a capacidade humana de estar junto com os nossos pensamentos e desfrutar do vaguear da mente por aqueles mais ou menos criativos que nos ocorrem. Corremos o sério risco de entrar numa espécie de dormência intelectual onde os nossos pensamentos deixaram de estimular a criatividade, o engenho e o simples prazer de pensar.

Recentemente estive a colaborar com a parte técnica de um encontro, onde havia algumas apresentações que usavam slides e uma das formas das pessoas poderem controlar a sua apresentação foi a de ter o portátil perto, ligá-lo por HDMI ao projector e por RGB a um monitor que mostrava o mesmo que viam as pessoas na audiência. A ideia parecia genial, e quem apresentou apreciou, mas houve quem na audiência se sentisse perturbado por todo o aparato de cabos. Logo, no dia seguinte, talvez fosse de voltar a uma solução menos ideal das pessoas fazerem-nos um gesto para mudarmos os slides. Não gostava do impasse, mas aceitei a situação. De repente, vindo do nada, num momento em que a mente começou a vaguear, lembrei-me de que o iPad poderia servir de comando da apresentação, permitindo às pessoas passarem os slides e verem qual o próximo. A solução não envolvia qualquer fio e tudo correu muito, muito bem.

O tédio pode ser a porta para deixar que a criatividade, ou a solução para um impasse, se manifeste nos momentos em que menos esperamos. Se tivesse pegado no smartphone, nada disto teria acontecido.

A questão essencial

O problema não está no recurso às novas tecnologias na vida do dia-a-dia, mas na perda de autonomia. Quando alguém é incapaz de estar com os seus pensamentos enquanto o sacerdote dá alguns avisos, não prescindindo de ver se tem algum novo email ou mensagem, sem se dar conta, perdeu a autonomia, deixando de ser o usuário final para ser, afinal, o usuário do conteúdo que tem diante do ecrã. Deixou de ser quem usufrui das Apps, mas de quem as Apps usufruem. E questiono se a perda do valor de estar com os nossos pensamentos não seja um primeiro passo para perder a capacidade de discernimento e de escuta d’Aquela Voz.

Os momentos de tédio podem ser verdadeiras oportunidades de oração se o quisermos. Ou momentos de parar para respirar um pouco quando a vida não tem qualquer folga e tudo aperta, sobretudo os prazos.

A tecnologia é a nossa resposta ao amor de Deus que nos criou, co-criando com Ele. Por isso, os smartphones são co-criações extraordinárias através das quais podemos comunicar de formas impensadas. Recordo-me da experiência de uma amiga cuja sobrinha ficou com paralisia cerebral após a nascença, o que levou a um atrofio das suas mãos. Hoje, em idade jovem, os emojis que banalizados tornam as nossas conversas superficiais, são precisamente o meio que ela consegue comunicar com as pessoas, sobretudo, emojivamente! Acho extraodinário.

Penso é que devemos estar atentos a não perder o valor de pensar. Simplesmente. E aprender cada vez mais e melhor, a reconhecer Aquela Voz que se manifesta nos momentos mais surpreendentes e nos inspira a agir.

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