D. Manuel Falcão, 40 anos de episcopado em revista (repetição)

No dia da sua morte, a Agência ECCLESIA recorda o percurso do bispo emérito de Beja, descrito na primeira pessoa

No dia 22 de janeiro de 2007, D. Manuel Falcão celebrou 40 anos de ordenação episcopal. Figura discreta, mas referência incontornável da vida da Igreja em Portugal, nas últimas décadas, o bispo emérito e Beja desfia, em longa conversa com a Agência ECCLESIA, o rosário das suas memórias. 

Agência ECCLESIA (AE) – Com a celebração do 40º aniversário da sua ordenação episcopal é tempo de olhar para trás e recordar uma vida de doação. 
D. Manuel Falcão (MF) –
 Era professor no Seminário dos Olivais e dedicava, muito do meu tempo, à sociologia religiosa e à construção das novas Igrejas do Patriarcado. Nesta altura, o Patriarca de então indicou o meu nome para bispo auxiliar e fui eleito a 6 de dezembro de 1966 e ordenado a 22 de janeiro de 1967. Como bispo auxiliar fiquei encarregado da região Oeste da diocese. Estive também encarregado da zona de Setúbal que, posteriormente, seria diocese. 
AE – Esteve também na liderança da organização pastoral do Patriarcado? 
MF –
 Sim. Foi decidido, pelo Patriarca e de acordo com o Conselho Presbiteral, criar as novas dioceses de Santarém e de Setúbal. Estudei a criação das novas dioceses. 
AE – Neste passo importante houve discordâncias? 
MF –
 De modo geral, já havia uma preparação neste sentido. Em Setúbal tivemos algumas dificuldades porque existia um projeto de ampliar mais a diocese mas o arcebispo de Évora, D. David Sousa, não aceitou esse alargamento. Mesmo assim ficou uma boa diocese, pelo menos em relação à vertente habitacional. 

Sociologia Religiosa 
AE – Foi nessa altura que se viveu o período áureo de construção de novas igrejas no Patriarcado? 
MF –
 Exatamente. Através do estudo da sociologia religiosa, nomeadamente da prática dominical, chegou-se à conclusão que a cidade de Lisboa estava a esvaziar-se. O centro da cidade estava a perder a população e, em simultâneo, crescia a periferia. A grande Lisboa estava a crescer rapidamente e estava desprovida de Igrejas. O trabalho mais urgente passava pela reserva de terrenos para essas igrejas. Foi o primeiro trabalho do Secretariado das Novas Igrejas que dirigi durante alguns anos. 
AE – Deu o impulso e a força inicial para esta marca histórica? 
MF –
 Comecei neste trabalho antes de ser bispo auxiliar. Habitualmente, ia a S. Vicente de Fora onde estava sediado este secretariado. Era uma área de estudo de que gostava imenso. 
AE – Recorda episódios relevantes num tempo de ditadura e, talvez, cheios de dificuldade? 
MF –
 Existia colaboração. Na divisão territorial de Lisboa – o único feito em todo o país – fez-se alterações de forma racional. Isto foi possível porque, da parte do Estado e da Câmara Municipal, houve colaboração. Estive mais de um ano a estudar, nas instalações da Câmara Municipal de Lisboa, a nova divisão paroquial. 
AE – Nessa altura já se falava na formação de novas dioceses? 
MF –
 Havia uma certa pretensão das Caldas da Rainha ficar uma diocese. E outra era a divisão da Portalegre-Castelo Branco. Castelo Branco tem mesmo uma catedral. Há quem fale também na divisão dos Açores. Uma em Angra e outra em Ponta Delgada. Suponho que não é conveniente dividir mais porque as dioceses enfraquecem. 
AE – Apesar da formação em Engenharia adaptou-se ao estudo da realidade geográfica e sociológica? 
MF –
 Há uma ligação forte entre a sociologia e a matemática. Aliás, a minha sociologia é mais sociografia do que sociologia. Foi mais a procura da investigação dos factos do que propriamente a análise sociológica deles. 
AE – Ainda sente saudades desses tempos de investigação sociológica? 
MF –
 Essencialmente, tenho saudades dos dois secretariados – das novas igrejas e da Informação religiosa – porque foi aí que me afirmei de forma mais clara. 

Comunicação Social 
AE – Na comunicação social também foi pai de alguns projetos? 
MF –
 Procurava recolher informações que eram enviadas para a imprensa católica. 
AE – Ganhou-se um bispo e perdeu-se um jornalista? 
MF –
 O «bichinho» da Comunicação Social é muito antigo. Quando tinha 14 anos já dirigia um jornal familiar – feito pelos meus irmãos e primos – intitulado «Semanário X». Era feito nas férias porque tinha mais tempo para essas atividades. 
AE – Passava as férias em Lisboa? 
MF –
 Em Lisboa e na Figueira da Foz. 
AE – Os outros brincavam e D. Manuel Falcão escrevia? 
MF –
 Redigia, passava à máquina com duplicador. Tirava uma dúzia de exemplares para a família. 
AE – Meio caminho andado para posteriores colaborações nos jornais da Ação Católica… 
MF –
 Colaborei nos jornais da JEC, JUC e no «Novidades». 
AE – Trabalhou com muitos dos homens que estão hoje no poder económico, político e cultural? 
MF –
 É verdade. Muitos dos que estão na «berra» foram do meu tempo e vários deles foram formados pela Ação Católica. 
AE – Formados no «mundo católico» mas alguns esqueceram esses ensinamentos. A semente não germinou? 
MF –
 Talvez a formação não tivesse sido suficientemente forte e enraizada. A evolução da sociedade tem influenciado muita gente. 
AE – Estamos na era da globalização e das novas tecnologias. Como é a sua relação como o mundo da informática? 
MF –
 Já escrevia muito à máquina por isso não foi difícil adaptar-me ao computador. 
AE – Adapta-se com facilidade a novas realidades? 
MF –
 Nasci em Lisboa e nela vivi até aos quarenta e tal anos – fui transferido para Beja em 1975, em pleno «Verão Quente» – mas adapto-me com facilidade. 

Como viveu a Revolução dos Cravos 
AE – Viveu o antes do 25 de Abril em Lisboa e o pós 25 de Abril no Alentejo. Quando se deu a «Revolução dos Cravos» era bispo auxiliar de Lisboa. Tempos conturbados? 
MF –
 Trabalhava muito intimamente com D. Manuel Cerejeira que tinha muito medo do comunismo. E admitia que seria Salazar que defendia o país do comunismo apesar de não concordar sempre com ele. Há uma frase do Cardeal Cerejeira – já a referi imensas vezes – onde ele dizia que: Salazar era o homem mais orgulhoso que ele conhecia. Orgulhoso no sentido de ser muito firme nas ideias que tinha. Em simultâneo, o Cardeal Cerejeira tinha confiança em Salazar enquanto defensor do perigo comunista. 
D. Manuel Cerejeira tinha quase um horror ao perigo comunista. Mais tarde, no período final da sua vida quando estava na Buraca e confundia as coisas, disse-me: “Oh António, cuidado que vêm ai os comunistas através do túnel”. Pensava que estava no Seminário dos Olivais que tem uma ligação por túnel entre o Palácio e o Seminário. Vivia atormentado por isso e morreu atormentado com isso. 

AE – E depois? 
MC – 
Depois de resignar veio o Cardeal António Ribeiro que foi de uma delicadeza extraordinária comigo. Quando o Cardeal Cerejeira resignou – eu era auxiliar dele e não do Patriarcado – fiquei sem posição. O Cardeal António Ribeiro teve a delicadeza de dizer para eu continuar na mesma. Estive no Patriarcado mais dois ou três anos e depois vim para Beja. 

AE – Estava em Lisboa quando se deu o 25 de Abril? 
MF –
 Não. Estávamos em Assembleia Plenária, em Fátima. O primeiro alarme veio do D. Júlio Tavares Rebimbas. Tinha ouvido pela rádio e transmitiu aos bispos presentes – estávamos na paramentação – que tinha rebentado a revolução, em Lisboa. Ficámos alarmados mas celebrámos a missa. O Pe. Feytor Pinto que tinha uma reunião em Fátima – não pôde vir pela estrada normal – deu-nos depois os primeiros pormenores da Revolução de abril. Os bispos interromperam a Assembleia e voltaram para as suas dioceses. 
AE – Veio também para Lisboa com o Cardeal? 
MF –
 Eu, os bispos auxiliares e o Cardeal. Na altura do 25 de Abril era Secretário da Conferência Episcopal. Tive um papel bastante ativo visto que, muitas vezes, tinha que levar, ao COPCON e a outras entidades da revolução, documentos. 
AE – Lidou diretamente com os homens da revolução? 
MF –
 Sim. Tinha que lidar com eles para os informar da posição dos bispos. 
AE – Estava numa situação delicada. Sentiu algum ostracismo para com a Igreja? 
MF –
 Assistiu-se a casos lamentáveis no Patriarcado quando esteve cercado durante algumas horas. Algumas pessoas foram atingidas gravemente com pedras. 

Alentejo 
AE – Durante esse acontecimento, o D. Manuel Falcão estava no Patriarcado? 
MF –
 Nessa altura já estava em Beja. 
AE – Em novembro de 1974 foi nomeado bispo coadjutor de Beja. Um período conturbado da história. Como lidou com aquela efervescência vivida no Alentejo? 
MF –
 É conveniente dizer que, embora o Alentejo tivesse sido trabalhado pelo comunismo, a massa da população alentejana não tem mentalidade comunista. É uma gente pacífica e que não tem grandes ambições. As ocupações de terras foram feitas não pelos alentejanos, mas por aqueles que vinham da região de Setúbal. Posteriormente, notou-se que o resultado das ocupações foi bastante negativo ou, pelo menos, não deu os resultados esperados. Pouco a pouco voltou tudo ao primitivo e as terras foram novamente devolvidas. Da parte das autarquias comunistas – eram a maior parte nessa altura – verifiquei que não queriam irritar nem hostilizar a Igreja. 
AE – Esta situação teve o seu cunho pessoal? 
MF –
 Sempre tive a preocupação de bom entendimento. Atualmente, ainda me dou bem com os Presidentes de Câmara comunistas. Amizades com muitos anos. 
AE – Chegou mesmo a afirmar que «o PCP deu voz ao povo»? 
MF –
 O PCP teve o mérito de dar consciência à população alentejana. 
AE – Não sofreu com a «pacatez» desta zona de Portugal visto que era um citadino de gema? 
MF –
 Adapto-me facilmente aos ambientes. 

Missões Populares 
AE – Com várias décadas no Alentejo deixou marcas no povo e também no território? 
MF –
 O trabalho principal passou pela tentativa de evangelizar o Alentejo através das missões populares. Recorrendo sobretudo às congregações religiosas com mais vocação nesta área: Vicentinos e Redentoristas. Prestaram uma grande colaboração à diocese. 
AE – A descoberta de novas vocações era algo prioritário? 
MF –
 Durante muitos anos, o Alentejo viveu com vocações da zona beirã (Beira Baixa). Os padres de Beja iam recrutar miúdos nas escolas primárias da Cova da Beira. Depois deixou de ser viável porque as famílias preferiam que os miúdos ficassem nas suas terras. Entretanto foram surgindo algumas vocações alentejanas e os padres mais recentes são todos do Alentejo. 
AE – Se em Lisboa esteve empenhado na construção das novas igrejas, no Alentejo o primeiro anúncio evangelizador ganhou preponderância? 
MF –
 Ainda se fizeram também uma dúzia de capelas. Os alentejanos, mesmo quando não praticam, têm uma certa vaidade na sua Igreja ou capela. Não há, mesmo pequeno que seja, que não queira ter a sua capela. É um sinal de dignidade. O alentejano, mesmo quando não vai à missa ao domingo, tem o sentido do religioso e até reza. 
AE – É a religiosidade popular. Cada profissional tem o seu santo protetor, como é caso dos mineiros com a devoção a Santa Bárbara? 
MF –
 Santa Bárbara é a padroeira dos mineiros e dos construtores do Porto de Sines. Fui lá, várias vezes, celebrar a Eucaristia. Este porto foi construído com o material extraído das minas dos arredores de Sines. 
AE – Sentiu dificuldades em pastorear uma diocese territorialmente grande? 
MF – 
Beja é a maior de todas em área mas não é a mais populosa. A cidade de Beja está muito bem situada geograficamente. Com menos de 100 quilómetros chega-se a Espanha ou ao mar. 

Um Alentejo diferente 
AE – Existem várias assimetrias na sua diocese? 
MF –
 O Alentejo não é único (marítimo, Alto e Baixo Alentejo). Por exemplo, o «cante» alentejano é uma característica do Baixo Alentejo. O Alto Alentejo não tem este tipo de cantar. 
AE – O seu pedido de resignação foi aceite por João Paulo II em 1999, mas quis ficar no Alentejo que o acolheu… 
MF –
 Nessa altura colocou-se-me um problema: ou vou para casa dos meus irmãos ou fico em Beja. Optei por ficar em Beja porque Lisboa já é complicada para mim. Beja é mais sossegada. 
AE – E convida à reflexão para os seus escritos e, quem sabe, as suas memórias? 
MF –
 Já me incentivaram a escrevê-las mas, naturalmente, não irei fazê-lo. 
AE – Com tanto para contar não gostaria de deixar esse registo para a posteridade? 
MF –
 Não penso nisso… (risos). Quando acabar, acabou-se. Há coisas mais importantes. 

O Alqueva 
AE – Com o surgimento do maior lago artificial da Europa, a Barragem do Alqueva, o Alentejo sofrerá alterações significativas? 
MF –
 O Alqueva está a evoluir para aquilo que, inicialmente, se pensava. Tornar o Alentejo mais regadio. Por outro lado, notamos que ele está a desenvolver o turismo. Verifica-se também que o Litoral tem grandes possibilidades de desenvolvimento, como é o caso de Sines. Agora, com as comunicações mais fáceis para a Espanha, esta cidade do litoral irá desenvolver-se bastante. A diocese tem ainda outro polo de desenvolvimento, a Base Aérea de Beja. 
AE – Vivia preocupado com o seu rebanho e chegou mesmo a escrever a Jacques Santer, sobre as questões do Alqueva? 
MF –
 Tive essa ousadia mas não sei se teve algum resultado. 
AE – As autarquias locais dialogavam consigo para tomar algumas posições? 
MF –
 Conversávamos muito. Os autarcas estavam presentes, quase sempre, nas visitas pastorais. Estabeleceram-se boas relações entre as Autarquias e a Igreja. 
AE – Então existe sintonia entre o poder local e a Igreja? 
MF –
 Neste momento não há dificuldade nenhuma. 
AE – Mas nem sempre foi assim? 
MF –
 O meu antecessor, D. Manuel Santos Rocha, com que eu trabalhei quatro ou cinco anos, era um homem bastante reservado. Não aparecia muito nem falava muito. Por isso, as relações com as autarquias eram escassas. Comigo, as coisas alteraram-se. Sou mais dado e mais aberto. 
AE – Esse diálogo deixou marcas? 
MF –
 Nas visitas pastorais ia a todos os lados (Igreja, Escolas, Juntas de Freguesia, Casas do Povo, Clubes Desportivos). O convívio era fácil. 
AE – A abertura da Universidade em Beja ajudou a estancar a sangria populacional na região? 
MF –
 Abriu a Universidade Moderna mas está em crise. O que está em desenvolvimento é o Politécnico. 

Cativar os jovens 
AE – O que falta ao Alentejo para cativar os jovens? 
MF –
 Falta confiança no futuro. Se as famílias forem fecundas haverá futuro para o Alentejo. Se isto não acontecer, o Alentejo morre. 
AE – Nestes quarenta anos como bispo fez parte também de várias comissões na Conferência Episcopal Portuguesa (CEP)? 
MF –
 Durante muitos anos fui secretário da CEP. Estive no setor das Comunicações Sociais, do Laicado e dos Religiosos. 
AE – Temos um referendo sobre o aborto à porta, o que falta aos portugueses para valorizarem as questões da vida? 
MF –
 Neste momento o que está a falhar é o lançamento do laicado na vida da Igreja. Tivemos um laicado forte no tempo da Ação Católica (anos 40 e 50). Depois do Concílio notou-se uma regressão e neste momento parece-me que está bastante parado, embora haja alguns movimentos com alguma dinâmica. Mesmo estes, estão mais interessados na espiritualidade pessoal dos seus filiados do que, propriamente, no apostolado. 
AE – Grupos dentro do grupo enorme que é a Igreja? 
MF –
 Exato. Tenho pena que não haja também mais ardor missionário. Portugal foi um país que missionou vários continentes e, neste momento, quase não tem missionários. 

Dinâmica conciliar 
AE – Com mais de quarenta anos, o II Concílio do Vaticano ainda não chegou a todos os cantos da Igreja? 
MF –
 Tem quarenta anos mas continua atual. Acontece que, a maior parte dos padres atuais não o viveram como eu vivi. 
AE – Ainda se recorda desses tempos e de toda a dinâmica conciliar? 
MF –
 Ia a Roma todos os anos – embora não fosse bispo ainda – para recolher elementos e entrevistar bispos para dar informação no Boletim de Informação Pastoral (BIP), órgão do Secretariado de Informação Religiosa. Entrevistei todos os bispos portugueses e alguns estrangeiros. 
AE – Atualmente, como bispo emérito de Beja tem mais tempo para colocar os estudos em dia? 
MF –
 Não leio muitos romances. Prefiro revistas, livros de Espiritualidade e Documentos da Santa Sé. 
AE – Livros que serviram de base para escrever a Enciclopédia Católica? 
MF –
 Foram uma boa ajuda. Penso que foi um trabalho razoável porque tenho tido referências positivas. Acho que tem sido bastante visitada no site da ECCLESIA. 
AE – Como homem da Comunicação Social gostaria de deixar apelos aos profissionais desta área? 
MF –
 A comunicação social, sobretudo aquela que está nas mãos da Igreja, tem um papel cada vez mais importante porque é através dela que a mensagem de Evangelho se difunde. Nesta época, onde a prática dominical e a presença das pessoas na igreja vai diminuindo, é fundamental que a Comunicação Social leve esta mensagem a todos. Assim, o Evangelho mantém-se vivo. 

Entrevista conduzida por Luis Filipe Santos, 22.01.2007

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