Comunidades de acolhimento

«Comunitarizar» crentes marcados por uma cultura de afirmação do indivíduo, na modernidade reflexiva «É preciso mudar o estilo de organização da comunidade eclesial portuguesa e a mentalidade dos seus membros para se ter uma Igreja ao ritmo do Concílio Vaticano II, na qual esteja bem estabe-lecida a função do clero e do laicado, tendo em conta que todos somos um, desde quando fomos baptizados e integrados na família dos filhos de Deus, e todos somos corresponsáveis pelo crescimento da Igreja.» Bento XVI, Discurso aos Bispos portugueses, 10 de Novembro de 2007. 1. O discurso de Bento XVI, no quadro da visita ad limina dos Bispos católicos portugueses, foi recebido por um coro de analistas que leram nessas palavras um desígnio de reprimenda. Assim, sob o ponto de vista social, assume particular relevância a recepção das palavras do Bispo de Roma. Num contexto específico do exercício da sua autoridade, as suas palavras não precisaram dos canais eclesiais de comunicação. Soltas no espaço «massmediático», circularam na cena pública, sem que a instituição pudesse controlar a sua própria interpretação. Apesar de se tratar de um conjunto de indicações genéricas sobre os aspectos críticos da vida actual das comunidades locais católico-romanas, o discurso foi o catalizador, em quadrantes muito diversos, de uma vontade de mudança que diz mais, talvez, dos leitores do que do próprio texto. Ateus, agnósticos, católicos em autogestão, católicos militantes, católicos tradicionalistas, católicos progressistas, e outros, todos leram no discurso o apelo a uma mudança mobili-zadora. Como é evidente, os sentidos de leitura dessa mudança são contraditórios: desde as visões restauracionistas de afirmação musculada da identidade católica na sociedade portuguesa até às diásporas ideológicas defensoras de um catolicismo discreto, de tudo se pode encontrar numa breve viagem aos labirintos da comunicação. Em todo caso, é fácil perceber que as palavras do Papa foram recebidas por uma sociedade cuja paisagem religiosa está sofrer amplas recomposições. Essas recomposições não dizem respeito apenas ao «fim de um catolicismo», sinalizam também trajectórias diversas de redefinição da pertença católica. 2. Parece-me particularmente importante que o discurso de Bento XVI tenha aludido às formas de organização das comunidades católicas, em Portugal. Neste contexto, as Igrejas são hoje confrontadas com uma pergunta essencial: como «comunitarizar» crentes marcados por uma cultura de afirmação do indivíduo, nestas sociedades da modernidade reflexiva? Desprendida a religiosidade da objectividade social própria de uma religião herdada, os indivíduos procuram, com frequência, ideais espirituais que, de uma forma ágil, respondam às suas necessidades no curso do seu itinerário biográfico. Deparamo-nos, assim, com um «nomadismo» religioso de difícil identificação, bem diverso do «sedentarismo» religioso que se exprime na manutenção de uma linhagem crente. As primeiras reflexões críticas sobre os modos de vida urbanos na metrópole moderna viram na mobilidade uma das chaves essenciais para a sua compreensão. G. Simmel pensou essa mobilidade a partir da figura do estrangeiro. Não esse viajante que hoje chega para partir amanhã, mas sim esse errante que chega hoje e que ficará amanhã sem prescindir da liberdade de ir e vir – porque é estrangeiro procura o gesto de acolhimento. Essa mobilidade não dispensa as referências à memória religiosa em que os indivíduos foram socializados, mas é moldada àquilo que as Ciências Sociais designam de “estilos de vida”. 3. Este fenómeno não diz respeito apenas às formas de identificação religiosa que apresentam um carácter mais difuso. As paróquias foram envolvidas na lógica de um amplo mercado simbólico, na medida em que são procuradas de acordo com a personalidade dos padres que aí se podem encontrar, o seu estilo de acolhimento, a tonalidade expressiva das suas celebrações, a competência das suas ofertas de formação, etc., numa palavra, a «qualidade» (não é por acaso que o idioma pastoral incorporou recentemente este termo: fala-se de oração de qualidade, celebrações de qualidade, cate-quese de qualidade, entre outros). No terreno das culturas urbanas, há paróquias que são reconhecidas pela sua extraordinária capacidade de oferta ou pela competência com que o fazem, rasto de uma «terciarização» generalizada dos modos de vida. Nesse contexto, lança-se mão da dinâmica das sociabilidades grupais para criar uma “Igreja de opções”, oferecendo respostas diversas às inquietações religiosas ou às demandas de manutenção da identidade religiosa, abrindo às pessoas a possibilidade de encontrar um contexto de acolhimento onde a sua pequena narrativa possa ser acolhida na grande narrativa eclesial. 4. Não se perca de vista que, nestas culturas de afirmação do indivíduo, a procura de autovalidação e validação mútua do crer assume, pelo menos, tanta importância quanto as formas de auten-tificação pela tradição ou pela autoridade da instituição. Nas comunidades cristãs, encontramos hoje formas modulares de sociabilidade fundadas primordialmente na comunhão de afinidades. Quando alguém procura um círculo mais pequeno dentro da comunidade crente de referência, para além da percepção de uma fé comum e da vontade de se colocar ao serviço dos objectivos do grupo, esse indivíduo procura algo que confirme o seu próprio trabalho de construção do sentido. Paradoxalmente, o reforço e a multiplicação de diferentes regimes comunitários dentro de uma comunidade de referência, sendo uma tradução da moderna individualização religiosa, traduz a vontade do sujeito crente se auto-implicar na economia de salvação que a instituição pretende servir e mostra também que esse individualismo não se verte numa completa privatização do religioso. O «nomadismo» religioso contemporâneo corresponde à vontade de celebrar a subjectividade e o acontecimento; mas, porque o movimento só é possível dentro de um quadro mínimo de referências, assistimos também à procura de grupos onde seja possível o acolhimento das inquietações pessoais. Ou seja, na era do individualismo religioso subsiste a nostalgia da comunidade (imaginada ou praticada). Alfredo Teixeira – Centro de Estudos de Religiões e Culturas (UCP)

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