Cinema: A inquietude de Gus van Sant

Enoch é um miúdo com o estranho hábito de assistir a enterros de desconhecidos. Num deles conhece Annabel, que se apresenta como voluntária de um serviço hospitalar de crianças com cancro.

É outono, ambos se aproximam e o que, afinal, Annie e Enoch são, verdadeiramente, é duas espécies de viajantes com bilhete respetivamente, de ida e de volta em relação à morte: Annie sofre de cancro terminal e Enoch passou pela perda súbita dos pais e um processo de coma que crê ter incluído uma experiência de quase morte. É nestas duas viagens de sentido inverso que as linhas de ambos se cruzam e os carris se unem para juntos questionarem, viverem e aprenderem sobre a vida e a morte, o apego e o desapego das coisas terrenas, o significado e a significância do que pode estar para além delas, a possibilidade, ou não, da transcendência e do renascimento.  E sempre, sempre, através da relação de amor que entre ambos cresce.

Inevitavelmente, em “Inquietos” cada um fará o seu próprio luto, passando um a desprender-se da vida que tanto ama e o outro a amar a vida que tanto desprezava.

Gus van Sant, o inquieto realizador que nos desacomoda com temas de exploração raramente consensual, aqui está de novo com um conto de passagem cuidadosamente embrulhado num tranquilo enredo “naïv”, numa bela  história de amor eterno jurado entre miúdos. A história, o ambiente, evocam o melhor estilo dos anos sessenta/setenta, com a sua mensagem fortemente impressa no poder do amor, sendo especificamente dessa época praticamente toda a simpática banda sonora do filme.

Normalmente hábil na gestão da sensibilidade das suas personagens ora em contra ora em justaposição a um ambiente de uma frialdade ou hostilidade circundantes, van Sant consegue que ultrapassemos um receio inicial de se tenha esquecido da sua própria juventude, do calor, da força e da densidade necessárias a apaixonarmo-nos por estas duas personagens, para nos fazer compreender que esse distanciamento inicial e progressivamente vencido, é, afinal, parte da sua história… mas com o público.

Margarida Ataíde

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