Bíblia e mundo cultural não podem permanecer afastados

Homem do Papa para a Cultura pede melhor leitura dos textos bíblicos e lembra blasfémias de Saramago D. Gianfranco Ravasi, presidente do Conselho Pontifício para a Cultura, do Vaticano, passou por Portugal nos dias 19 e 20 de Junho, nos quais apresentou duas reflexões sobre a Bíblia, como “grande códice da cultura ocidental” e como “luz para os nossos passos” nos caminhos da História. O Arcebispo italiano tem trabalhado desde há longos anos a relação fé-cultura a partir da Bíblia. Em entrevista à ECCLESIA, o homem do Papa para a Cultura pede a redescoberta da Sagrada Escritura e lembra leituras “blasfemas” como as de José Saramago. ECCLESIA – A importância da Bíblia esteve sempre presente nas suas intervenções. Há um esquecimento da Escritura entre os católicos? D. Gianfranco Ravasi (GR) – Como dizia um escritor francês, Paul Claudel, os católicos têm um grande respeito em relação à Bíblia e demonstram-no estando o mais longe possível dela. Temos de dizer que esta distância já foi muito superada pelo Concílio Vaticano II. Este ano, em Outubro, haverá um Sínodo dos Bispos dedicado à Palavra de Deus e essa será uma ocasião para tornar os fiéis mais próximos, porque, efectivamente, há uma quebra na paixão com que, depois do Concílio, se lia a Bíblia. Uma sondagem recente na Europa mostrava que dois terços dos inquiridos tinha uma Bíblia em casa, mas não a lêem, necessariamente. Em alguns países, apenas 27% das pessoas tinha olhado para um texto bíblico num período de 12 meses. Por tudo isto, devemos fazer com que a Bíblia regresse à comunidade, à comunidade crente, à comunidade civil, laica, como o grande códice que ilumina o conhecimento da nossa tradição e da nossa cultura artística, humana e moral. ECCLESIA – Crentes e não crentes descobriram recentemente uma pseudo-verdade em obras como “O Código Da Vinci”, de Dan Brown. Isto é uma ameaça ou um desafio para a Igreja? GF – Eu penso que é um desafio, de muitos pontos de vista. Em Portugal, por exemplo, há um escritor como Saramago que continuamente utiliza o texto sacro, muitas vezes de forma provocatória, blasfema. Contudo, isso demonstra que o texto sagrado e os temas da fé são temas importantes. Por isso, acho que não é preciso ficar aterrorizado perante estas situações. Em alguns casos, certamente, há situações ridículas, muito banais e superficiais, como no caso de Dan Brown, mas o facto de as pessoas acreditarem nestas lendas quase como se fossem verdadeiras deve comprometer a Igreja para que se torne a explicar o texto bíblico, a mostrar a sua autenticidade, o seu aspecto genuíno, a sua verdade, de forma a que o homem de hoje descubra que, ao fim e ao cabo, as grandes perguntas e as grandes respostas se encontram, de facto, nos grandes textos sagrados da humanidade e, sobretudo, num texto tão fundamental como o bíblico. ECCLESIA – Na pastoral da cultura a Igreja não se pode fechar nos templos, tem de ir ao encontro da humanidade… GF – Temos de reconhecer que o texto sacro e a verdade, a mensagem que o crente tem não devem ser conservados apenas no meio dos incensos ou entre as luzes do templo, mas devem ser escancaradas as portas. Temos de ir à praça onde se ri e se chora, onde também se pragueja, onde se faz comércio e se fala de tantas outras coisas, mas onde está o homem que tem medo, que sofre, que tem alegria e que vive o amor, que tem necessidade de perceber o que significam as palavras últimas: bem e mal, verdade e falsidade, dor e alegria, além da vida e imortalidade, a morte, isto é, alguns temas que não se encontram nos jornais nem da conversa televisiva. É preciso que este homem encontre estas respostas tão altas na praça, onde vive, ele que nunca entrará no templo, e é por isso que é correcto que os homens de cultura e cristão entre nas praças, nos caminhos das metrópoles, e volte a pôr em prática o que dizia Jesus, mesmo em relação à Televisão: aquilo que eu vos disse em segredo, dizei-o vós agora em todo o lado. Diálogo incompleto Desde que assumiu a presidência do Conselho Pontifício para a Cultura, o Arcebispo Ravasi tem-se mostrado preocupado com o escasso conhecimento recíproco entre artistas contemporâneos e a Santa Sé, bem como com o desleixo decorativo em várias igrejas modernas, muitas vezes sem obras de artes ou resignadas a uma qualidade artesanal ou demasiado modesta. ECCLESIA –Falou recentemente na possibilidade de uma presença da Santa Sé na Bienal de Veneza. O diálogo com a cultura não se faz apenas com o património do passado? GF – O meu desejo é falar com a arte contemporânea, que já não conhece grandes temas ou grandes símbolos, as grandes narrativas, daí esta tentativa, numa grande ribalta tão importante como a Bienal de Veneza, a nível internacional. Antes disso, gostaria de chamar cinco ou seis grandes artistas contemporâneos, que muitas vezes só se interessam por coisas que estão no pó, na realidade mais baixas, e levá-los a exprimir, através de formas de arte contemporânea, os grandes temas, com as suas intuições. Isto já se começou a fazer na arquitectura, onde há um diálogo na construção dos templos, por exemplo. Cito um arquitecto português que conheço, Siza Vieira, ou o japonês Tadao Ando, o italiano Renzo Piano, o suíço Máario Botta, o norte-americano Richard Meier, judeu que construiu a belíssima igreja do Jubileu (em Roma, ndr). Aqui há diálogo e quero que esse diálogo continue, também com a arte, com a música contemporâneas, para que se abandone o divórcio que há entre arte, cultura e a expressão religiosa fechada em si mesma. HM/OC

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