A cimeira do Vaticano

Margarida Neto, psiquiatra

Foto: Osservatore Romano

Assim se chamou a reunião dos Presidentes das Conferências Episcopais e dos Institutos religiosos masculinos e femininos com o Papa.

Nunca tal tinha acontecido. Perante a amplitude do problema, a Igreja tinha que se repensar ao mais alto nível, muito seriamente.

Uma cimeira acontece para decidir coisas muito importantes.

Uma cimeira convocada pelo Papa e que decorreu muitas vezes perante os nossos olhos, através dos media, além de inédita na Historia da Igreja, ficará certamente como um acontecimento marcante para aqueles que nela participaram e para todos os que a seguiram.

Alguns dizem que a cimeira ficou aquém das expectativas. São vozes que vêm sobretudo das vítimas. É compreensível. Quem assume o problema, a dor e a vergonha que trazem da infância, quer mais concretização e quer sobretudo evitar que outros passem pelo que já passaram.

Não podemos esquecer ou desvalorizar o que pedem à Igreja.

Segui com atenção o que se passou ao longo destes dias. Tenho dentro de mim a zanga e a perplexidade. Sofro com a Igreja que sofre. Faço as mesmas perguntas – Como foi possível tudo isto acontecer? Como prevenir que nunca mais aconteça?

Sou Psiquiatra e sei que o abuso de crianças está disseminado por todo o lado, com incidência em determinadas profissões e instituições. Recordo que a maior parte do abuso sexual acontece dentro das famílias. É uma zona obscura, doentia e preversa da humanidade, que se repete em todas as culturas.

Como afirmou o Papa, este mal tão disseminado não desculpa a Igreja, antes pelo contrário.

A Igreja está ferida naquilo que tem de mais precioso. Na confiança de crentes e não crentes. No seu papel moral no mundo. Na coerência das suas atitudes.

As crises podem ser momentos de crescimento, quando a verdade é assumida. É a verdade que limpa, abre caminho, mobiliza a esperança.

Assim foi esta cimeira.

Vi os rostos dos líderes da Igreja emocionados, quando ouviam relatos das vítimas. Vi lágrimas. Certamente se questionavam e faziam um exame de consciência. Também vi serenidade e esperança. E fraternidade. É assim que se fica quando se sofre em conjunto e quando se reflecte no caminho a seguir.

Acredito que o íntimo de cada um dos presentes terá sido tocado profundamente. Por tudo o que viram, ouviram, descobriram, partilharam, rezaram.

Não tenho dúvidas de que nada ficará como antes. Só quando se toca o coração do homem, a vida muda. E que particular foi aquele momento em que ouvindo uma mulher, o Papa se comoveu e destacou a importância da sensibilidade e do olhar das mulheres na Igreja….

Compreender a dimensão do imenso problema, tomar sobre si as dores do mundo e da Igreja. Sentir como seu, o sofrimento de cada criança abusada. Sentir como de todos, este grande propósito da protecção das crianças. Terá sido esta a intenção maior do Papa.

Como Cristo mostrou e disse – “Tudo o que fizerdes a a cada um destes pequeninos é a mim que o fazeis.”

O Papa enquadrou bem o problema. Nunca tinha ouvido um Papa falar assim de estatísticas, socorrer-se da ciência, do contributo de organizações que estão no terreno há muito anos. Reafirmou a presença do mal na Igreja e no mundo. Esse mal é o encobrimento, o abuso de poder, o clericalismo, o comportamento, a perversidade.

E foi claro nas medidas. Desde a tolerância zero, à obrigatoriedade de informar as autoridades civis, à formação dos seminários, ao acompanhamento das pessoas abusadas, aos perigos do mundo digital e do turismo sexual, ao trabalho com especialistas, à divulgação das estatísticas, à transparência dos procedimentos, ao futuro guia de boas práticas.

Nós que vimos e acompanhámos a cimeira, estamos no mesmo caminho, no mesmo compromisso. Porque nos inquietámos e nos ardeu o coração.

O tempo do encobrimento terminou. Pode ser que esta mudança também contamine o mundo. Há muito a fazer na proteção das crianças e nas famílias. Por isso acredito que a cimeira pode ir mais longe do que imaginamos.

É esse o desafio da Igreja e de cada um de nós.

 

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