Contributos do arquivo de D. Abílio Vaz das Neves

Sandra Vale, Diocese de Bragança-Miranda

O Tombo Diocesano Monsenhor José de Castro, enquanto Arquivo Diocesano, integra o espólio documental que decorre do exercício pastoral e do governo de vários bispos de Bragança-Miranda. A este somam-se coleções provenientes de entidades e estruturas eclesiásticas diversas, nomeadamente, confrarias e outras associações de fiéis, instituições canónicas, escolas.

Instalado na ala norte da Casa Episcopal de Bragança, comporta um volume de documentos calculado em cerca de 500 metros lineares. Coexistem séries inventariadas e com acondicionamento adequado, com outros conjuntos que só mais recentemente vêm beneficiando de tratamento arquivístico.

Em espaço de acesso mais restrito, encontra-se o designado “Arquivo dos Bispos”, por vezes também nominado, embora erradamente, “Arquivo Secreto”, ou, também, “Arquivo Reservado”. Trata-se de documentos produzidos, acumulados e utilizados por bispos de Bragança-Miranda, entre os séculos XIX e XX. Respeitam a assuntos diversos do governo temporal e espiritual da Diocese, considerados, muitas vezes, como registos de caráter administrativo, quase indistintos do Arquivo da Cúria Diocesana.

A categorização desta documentação, complexa e até equívoca, pode estar condicionada pela própria natureza do múnus episcopal. O ministério do Bispo assume caráter pessoal e forma colegial. Ele ensina, santifica e governa em nome da Igreja, mas o exercício da autoridade que esta lhe confere, coloca em evidência a dimensão pessoal da sua ação.

Em 2015, foram iniciados trabalhos de organização do “Arquivo dos Bispos”. Tratava-se de um conjunto extenso de documentos, acondicionados em caixas e maços, parte dos quais sem obedecer a critérios de organização. Uma vez que não existia qualquer instrumento de descrição, pretendia-se a elaboração de um inventário, de molde a respeitar o previsto pelo Código do Direito Canónico (Cân. 486 §3): “Dos documentos que se encontram no arquivo faça-se um inventário ou catálogo com um breve resumo de cada um.”

Para levantamento e identificação da documentação existente, foi elaborado um instrumento de descrição elementar, contemplando os seguintes campos: cota, produtor (Bispo), datas extremas, assunto e âmbito e conteúdo.

A documentação de D. Abílio Vaz das Neves destacava-se da demais pelo volume e relevância dos assuntos que tratava. Longe da celeridade desejada, encontra-se em curso a sua classificação.

D. Abílio Augusto Vaz das Neves, 40.º Bispo de Bragança-Miranda, nasceu em Ifanes, Miranda do Douro, em 8 de junho de 1894. Ainda muito jovem, partiu para a missionação rumo à União Indiana, onde chegou em 1907. Em 7 de dezembro de 1919 recebeu a ordenação sacerdotal na Catedral de S. Tomé de Meliapor e, em 4 de dezembro de 1933, foi eleito Bispo de Cochim, na costa ocidental da Índia. Após cinco anos de exercício episcopal, o Papa Pio XI decretou a sua transferência para a Diocese-natal. A entrada solene na cidade de Bragança decorreu em 28 de março de 1939.

Ao longo dos vinte e seis anos de mandato na Diocese transmontana, tomou múltiplas iniciativas no domínio da Educação, norteado pelo princípio da Educação Cristã Integral, questão central no seu pensamento, tal como evidenciam os numerosos documentos pastorais que publicou. Levou a cabo uma reforma profunda do ensino da catequese, reestruturou o ensino nos Seminários Diocesanos de Bragança e de Vinhais, promoveu a abertura de colégios, fundou escolas infantis, estruturou e consolidou a ação dos Patronatos masculino e feminino. Através da ação das religiosas “Servas Franciscanas Reparadoras de Jesus Sacramentado”, congregação diocesana por si fundada, expandiu a ação educativa e socio-caritativa a outros locais da diocese, nomeadamente em zonas rurais.

Marcou presença na primeira sessão do Concílio Ecuménico Vaticano II e, durante a 30.ª Congregação Geral, interveio no debate sobre a Unidade da Igreja (30 de novembro de 1962).

Na carta de despedida que dirigiu aos diocesanos (18 de fevereiro de 1965), justificou o pedido de exoneração de Bispo residencial apresentado ao Santo Padre por sentir-se “já um empecilho” para a Diocese.

Com a chegada do seu sucessor, fixou residência na casa paroquial de Chacim (Macedo de Cavaleiros). Dedicou-se à orientação espiritual das Servas Franciscanas Reparadoras de Jesus Sacramentado, e à reorganização interna da Congregação.

Faleceu a 7 de março de 1980, no Hospital de Macedo de Cavaleiros, e foi sepultado em Ifanes. Em 8 de junho de 2019, os seus restos mortais foram transladados para a Catedral de Bragança, onde repousam no Átrio dos Bispos.

Entre a documentação de D. Abílio Vaz das Neves identificada no processo de organização, chamou-nos a atenção um maço constituído por correspondência e relatórios, produzidos entre 1956 e 1959, versados sobre o “problema do ensino religioso”. Tal como demonstram os documentos, o Bispo de Bragança-Miranda, o Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes e o Bispo Auxiliar de Aveiro, D. Domingos da Apresentação Fernandes, integraram a “Comissão Episcopal da Educação Cristã”, nomeada pelos Bispos de Portugal em junho de 1956. Tinha como objetivo desenvolver estudos que caracterizassem a situação do ensino religioso e da educação cristã em Portugal. A Comissão reuniu no Porto e em Bragança. Não obstante os trabalhos em curso, em 28 de agosto de 1958, D. Abílio Vaz das Neves tomou a iniciativa de enviar uma carta a Oliveira Salazar, através da qual, aparentemente, pretendeu acelerar a pressão junto do governo a respeito dos problemas da Educação. Na referida carta, expôs o seu pensamento acerca da questão da Educação e reivindicou do Estado o respeito pelos direitos da Igreja e da Família. Afirmou:

“Nos últimos 19 anos tenho acompanhado V. Ex.ª na obra educadora da Nação. Não há dúvida que muito se tem progredido, principalmente em matéria de instrução. Mas, no campo da educação, poder-se-á dizer que se conseguiu educar o povo português, ou pelo menos, lançar basas seguras? Humildemente penso que, nos 30 anos de governo de V. Ex.ª pouco ou nada se conseguiu.

V. Ex.ª, Senhor Presidente, sabe muito bem que o Estado não tem por missão especial educar: a educação pertence aos pais e à Igreja e só em terceiro lugar ao Estado.

Verifica-se, porém, que em Portugal o senhor da educação é o Estado.”

A resposta de Oliveira Salazar ao Bispo de Bragança chegaria no início de janeiro de 1959. Numa carta cordial, o presidente do Conselho informou que havia remetido a exposição para o Ministério da Educação Nacional e manifestou abertura para equacionar algumas das reivindicações apresentadas.

A aparente cordialidade da resposta do Presidente do Conselho contrastou com a dureza da resposta do Ministério da Educação Nacional, cujo parecer refutava as pretensões do Bispo de Bragança.

De notar que a missiva de D. Abílio Vaz das Neves dirigida a António de Oliveira Salazar coincidiu cronologicamente com o “caso do Bispo do Porto” e que D. António Ferreira Gomes, que entretanto se tornara “persona non grata” para o governo português, integrava a Comissão Episcopal da Educação Cristã e partilhava a visão dos restantes elementos.

As consequências efetivas do envio da carta ao Presidente do Conselho ainda não são totalmente claras. No que respeita à Educação, não se verificou qualquer alteração na legislação e a atitude do Estado em relação às escolas católicas não se alterou. Não podemos deixar de sublinhar, porém, o papel que a Junta Nacional de Educação, entidade sob a tutela do Ministério da Educação, assumiu no veto ao projeto de construção da nova Sé Catedral de Bragança, obra considerada “prioritária” pelo Prelado.

Em 1964, o parecer negativo da Junta Nacional de Educação em relação ao anteprojeto de arquitetura arrastou o caso para uma acirrada discussão pública envolvendo defensores do parecer negativo e personalidades progressistas ligadas ao Movimento de Renovação de Arte Religiosa. A referida Junta considerou que no anteprojeto “falta ordem, como faltam a unidade e a simplicidade. Não se descobrem quaisquer proporções que poderiam ter contribuído para a pureza ou para a harmonia das formas”.

O Bispo Diocesano foi, de certo modo, humilhado ao ver o seu nome envolvido numa disputa política e ideológica que colocava em causa a reta intenção e a pertinência da construção da nova catedral.

O conflito público em torno do anteprojeto da nova Sé teve o seu desenlace em 10 de maio de 1965, com o veredito do Ministro das Obras Públicas que determinou: “Em face do parecer do M. da Educação Nacional tem de considerar-se reprovado o projeto.”

  1. Abílio Vaz das Neves apresentou o seu pedido de resignação ao Papa Paulo VI em finais de 1964. Desde maio de 1965, viveu retirado de eventos públicos e em silêncio.

O caso da carta enviada pelo Bispo de Bragança-Miranda a António de Oliveira Salazar, cujos contornos e reais repercussões merecem estudo aprofundado, exemplifica o manancial de informação para a história da Igreja particular e universal, que os arquivos episcopais comportam. Preservar, organizar e divulgar os acervos documentais das dioceses é, portanto, um imperativo que compromete as autoridades eclesiásticas e os demais agentes, individuais e coletivos, que atuam sobre a história, a memória e a identidade.

 

Sandra Vale, Diretora do Tombo Diocesano Monsenhor José de Castro

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