Missão pouco romântica

O Padre Francisco de Medeiros, um Açoreano, vulgarmente conhecido por P.e Chico, voltou à África do Sul há quase quatro anos. Aos 73 anos de idade escolheu trabalhar na missão mais remota que os Combonianos têm no país, Acornhoek, onde já antes havia trabalhado. Já leva 25 anos de trabalho no país.

A missão de Acornhoek fica nas faldas do Parque Kruger, um dos maiores santuários de vida animal em África, que se estende junto à fronteira com Moçambique, por 360 km de comprimento e 65 km de largura.

As comunidades cristãs ligadas à missão ficam no que até à transição política de 1994 eram os Bantustões de Gazankulo e Kangwane, constituídos por alguns pedaços de terreno alocados aos “indígenas”. A cidade de referência, Nelspruit, fica a 145 km. Apesar da internet, tem-se a sensação de estar longe de tudo, sentimento que o mau estado das estradas acentua.

Não longe da missão ficam lugares que são dos mais bonitos e frutíferos do país. A natureza é generosa, o que é uma fonte de alegria, mas também de preocupação. A passarada faz os seus concertos, pelo menos duas vezes por dia (ao amanhecer e ao entardecer). Por outro lado, as térmitas, no seu labor de minagem, ameaçam sempre as fundações da casa.

Numa casa antiga como a da missão, a manutenção é sempre uma dor de cabeça a requerer atenção cuidada e constante. Um dia são os cabos eléctricos que são roubados e lá ficam às escuras e sem net; noutro, é um raio que queima o portão eléctrico e lá fica a casa mais desguarnecida. Diariamente, falta a água e a luz, que tem sido racionada várias horas por dia.

Apesar de nos arredores da aldeia terem construído, entretanto, dois centros comerciais, ao chegar-se ao centro de Acornhoek tem-se a impressão de se ter chegado à África profunda, com as suas barraquinhas de venda de frutas, vegetais e vestidos, com as cabras a atravessarem a estrada e os táxis-carinha de 16 lugares a chegarem e a saírem, atropelando as mais básicas normas do código da estrada.

A maior parte das estradas da zona estão profundamente degradadas: não vêem alcatrão há muitos anos. São voluntários que, para ganharem umas gorjetas, se dedicam a preencher os buracos com terra. O P. Chico está-lhes grato e mostra-lhe regularmente o seu reconhecimento, porque sem o seu trabalho os carros da missão estariam em pior estado. Aliás, a degradação das vias salta á vista logo na cosmopolita cidade de Joanesburgo.

A missão de Acornhoek tem 36 comunidades cristãs, num contexto em que proliferam as Igrejas independentes, em muitos casos independentes até de qualquer texto religioso. A autoridade máxima são os pregadores, que frequentemente enriquecem à custa do desespero dos fiéis.

É conhecida a forma abusiva como lidam com as mazelas das pessoas fazendo-as comer erva ou engolir cobras, rãs, e outros animais vivos! Nalguns vídeos, acessíveis no You Tube, podem ver-se a saltar em cima da barriga de mulheres grávidas ou a “curá-las”, pulverizando-as na face com insecticida!

O alarme público com alguma destas bizarras curas foi tão grande que levou o governo a instituir, há anos, a Comissão para a Promoção e Protecção dos Direitos Culturais, Religiosos e Linguísticos (CRL Rights Commission), cuja função era averiguar os abusos cometidos nas Igrejas. Mesmo assim, os africanos, na sua religiosidade, são atraídos para estas seitas ou Igrejas.

Neste contexto de confusão religiosa, há pregadores a virem à missão em busca da indumentária episcopal – para darem credibilidade à sua pregação – ou pedir a chancela dos missionários para serem pregadores nas comunidades católicas, mesmo não tendo qualquer ideia da doutrina da Igreja. A viúva de um pregador ofereceu-se há dias para ajudar o Padre Chico, como se tivesse herdado o seu ministério. As pessoas tendem a relativizar tudo isso, com a ideia de que o Deus das várias Igrejas “é o mesmo”. Quando as Igrejas não as ajudam a resolver os seus problemas, recorrem às sangomas (curandeiras locais).

A evangelização requer o conhecimento da língua das pessoas. Na região de Acornhoek, fala-se changana (sitsonga) e sepedi. Para conhecê-las bem e chegar ao coração das pessoas é preciso tempo, que os missionários com a sua rotação, nem sempre têm. O Padre Chico faz o seu melhor para comunicar bem.

Os níveis do ensino são baixos. A escola pública, por razões políticas, passa sempre os estudantes e atira-os impreparados para a rua. A taxa de desemprego é muito alta e a esperança em obter um emprego baixa. Antes de saírem do ensino secundário, muitas meninas já são mães, por vezes, por mais de uma vez. Deste modo, habilitam-se a receber o apoio governativo que lhes dá para pagarem as telecomunicações e os tratamentos de beleza. Os filhos são criados pelas avós. Não admira que a percentagem de crianças registadas sem o nome do pai ande à volta dos 60%.

A evangelização está no início, apesar de a missão ter sido fundada há 65 anos. Os missionários construíram capelas e começaram uma série de grupos eclesiais. Todas as comunidades têm os seus órgãos de direcção e de assistência aos mais pobres. Além disso, fundaram escolas, creches e clínicas e alguns projectos de desenvolvimento, para responder às necessidades das pessoas. Agora é preciso inculturar a fé e ter um diálogo mais sustentado com a cultura, em áreas como a da poligamia, etc. Por isso, os missionários dão prioridade ao trabalho com a juventude. O Covid afectou muito a escola e algumas comunidades. Neste momento, há escolas a tentarem recuperar as aprendizagens ao Domingo, pelo que os jovens não podem ir à celebração eucarística.

Algumas das capelas estão degradas e a necessitar de reparação. Mas, por vezes, as casas dos cristãos estão em pior estado. Quatro comunidades celebram debaixo de uma árvore. Economicamente, os meios são escassos e ainda se depende da Europa, nomeadamente para a compra de veículos. Por isso, a evangelização requer também atenção aos meios usados.

Esta missão africana – pelas suas necessidade e desafios – é pouco romântica. Não é turismo religioso. Requer saúde e força, que já começam a escassear ao Padre Chico. Mas continua a ser necessária como sinal de comunhão eclesial e proposta de vida e liberdade; e vive de simplicidade, abnegação e entrega, atitudes que o Padre Chico tem em abundância.

P.e José Rebelo, Missionário Comboniano
Director Nacional das OMP

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