Nascida na Guerra – Teologia da Esperança

António Salvado Morgado, Diocese da Guarda

Conjugaram-se dois elementos principais para me decidir pela temática deste texto. Um vindo de Roma e outro proveniente da Normandia. É por aqui que começarei.

Passou à margem da generalidade dos meios de comunicação social portugueses o falecimento do famoso teólogo Jürgen Moltmann. Foi no passado dia 3 de Junho, na cidade alemã de Tubinguen, em cuja universidade era professor emérito de Teologia Sistemática. Foi há pouco mais de um mês. Tinha 98 de idade. Para a História fica a sua vida e a sua obra.

Curiosamente, Moltmann faleceu quando se preparavam na Normandia as comemorações do 80.º aniversário do desembarque das tropas aliadas naquela região da França com que iniciava a derrota nazi. Foi em 1944 e o jovem Jürgen Moltmann, nascido em Hamburgo a 8 de Abril de 1926, acabava então de ser mobilizado e incorporado nas tropas hitlerianas. Em 1945 ter-se-á rendido a um soldado britânico, ele que vira morrer a seu lado, no ano da incorporação militar, um companheiro de guerra.

Prisioneiro de guerra, foi passando durante três anos por vários campos de detenção: na Bélgica, na Inglaterra e na Escócia. E é neste tempo de prisioneiro de guerra que faz a descoberta pessoal do Deus de Jesus Cristo, ele que vivera até então alheado das questões religiosas.

Na Bélgica, contacta, pela primeira vez, com textos bíblicos, Salmos e Novo Testamento, através de uma edição que lhe oferecera um grupo de cristãos, onde se incluía um capelão americano. A leitura bíblica, se inicialmente lhe servia para enfrentar o tédio de prisioneiro, começou depressa a interpelá-lo. Depois Moltmann teve a oportunidade ocasional de ler «Nature and Destiny of Man» [Natureza e Destino do Homem], obra do teólogo americano Reinhold Niebuhr [1892-1971], que acabava então de ser publicado. Estava aberta a porta para nova orientação de vida a este jovem prisioneiro de guerra, que, até então, grande admirador de Einstein e entusiasta da ciência, vivia a sonhar com uma carreira científica no mundo da investigação física.

Já livre, regressa em 1948 ao seu país e dedica-se de imediato aos estudos teológicos. Pastor evangélico, casou em 1952 com a teóloga feminista Elisabeth Moltmann-Wendel [1926-2016] que conhecera quando ambos preparavam o doutoramento em Teologia na cidade de Göttingen. Moltmann, pai de quatro filhos, tornou-se num prestigiado mestre que desenvolveu o ministério em várias universidades. Considerado um dos grandes teólogos do século XX, é autor de uma obra publicada em 1964 que de imediato se difundiu internacionalmente. É a «Teologia da Esperança», que viria a ser o pilar de outras como «O Deus Crucificado», de 1972 e «A Igreja no Poder do Espírito», de 1975. A esta trilogia inicial se haviam de seguir outras obras publicadas, particularmente, nos anos 80 e 90 do século passado. Sempre sobre sob o manto da «Teologia da Esperança» o que lhe valeu a crítica de «unilateralidade» de que sentiu necessidade de se defender, como como fez questão de salientar em 1997 no prefácio para a nova edição, trinta e três anos passados.

Muito naturalmente Jürgen Moltmann ficou conhecido como «teólogo da esperança», ele que, descobrindo a fé em Jesus Cristo que sofre com a Humanidade, descobriu o tempo da esperança no tempo da grande guerra mundial e do terrível sofrimento humano que ela provocou. Por isso, para ele, o problema não será tanto «como falar de Deus depois de Auschwitz?», mas antes «como se pode ‘não’ falar de Deus depois de Auschwitz?». Aquele ‘não’ impõe-se-lhe como imperativo ético de primeira grandeza: o imperativo de se falar de Deus e da sua Promessa perante a tragicidade humana de Auschwitz.

A emblemática obra «Teologia da Esperança» possui, compreensivelmente, uma componente autobiográfica. Em 1997, no prefácio a uma nova edição, Jürgen Moltmann pôde lembrar que «Em 1964, a ‘Teologia da Esperança’, evidentemente, ainda que não intencionalmente, acertou o seu ‘kairós’ [tempo propício]. O tema, por assim dizer, estava “no ar”» mas não deixou de concluir aquele prefácio com as seguintes palavras: «Ao redigir este prefácio, meu coração e minha alma estão novamente repletos com as visões da ‘Teologia da Esperança’ de trinta e três anos atrás.» Biográfica e situada na segunda metade do século passado, nem por isso a “Teologia da Esperança” deixou de ter luz para os tempos actuais. Não estivéssemos nós em plena guerra e talvez a Esperança não fosse uma virtude com tanta necessidade de ser redescoberta.

Não pretendendo aqui sumariar a caracterização epocal – o seu “kairós” – a que se refere o teólogo, importará, no entanto, referir que, enraizada na experiência pessoal como soldado de batalha primeiro e, depois, como prisioneiro de guerra, enriquecida ainda com o modo como os companheiros da desgraça iam digerindo a derrota, a teologia orientada para o futuro, por que tanto vinha ansiando Jürgen Moltmann, encontrou as categorias filosóficas mais importantes na filosofia messiânica do neomarxista Ernst Bloch [1885-1977], tal como aparecem na sua obra «Princípio Esperança» que, à época, era comummente falada, mormente em ambientes de diálogo entre cristãos e marxistas e que havia exercido grande influência em muitos pensadores da época.

O encontro de Jürgen Moltmann como o «Princípio Esperança» de Ernst Bloch é de um deslumbramento assinalável: «li a edição alemã oriental – escreve – durante um período de férias na Suiça em 1960 e fiquei tão fascinado por ele que nem me dei conta da beleza das montanhas suíças – para grande desapontamento da minha esposa.» Não será, pois, de admirar que um jovem e apaixonado teólogo com raízes na experiência da guerra e do cativeiro tenha então levantado de imediato a pergunta: «Por que a teologia cristã deixou escapar e permitiu que lhe tirassem a esperança, que original e intrinsecamente é o seu tema mais singular?» E, depois desta primeira impressão confessa ter-se perguntado: «por onde anda hoje o espírito ativo, cristão-primitivo, da esperança?»

E o deslumbramento dá força e inspiração a um projecto. Num artigo publicado em 1963, um ano antes da publicação de «Teologia da Esperança», intitulado «O Princípio da Esperança e a Teologia da Esperança» e o subtítulo «Um Diálogo com Ernst Bloch» termina assim: «A escatologia cristã se pode abrir ao “princípio esperança”, e conceber ao mesmo tempo desse princípio o impulso para a projeção de um perfil próprio e mais perfeito.» Sendo assim, sabendo que sem o conhecimento de Cristo pela fé a esperança é mera utopia a pairar no mar das ilusões e sabendo que a fé, sem esperança, é frágil e, finalmente, morta, a teologia cristã deve tentar trazer a esperança para o pensamento do ser humano e o pensamento para a esperança da fé.

Por isso, propõe, se na Idade Média Anselmo de Cantuária estabeleceu como programa fundamental da teologia o princípio «fides quaerens intellectum – credo ut intelligam» [fé em procura da compreensão – creio para entender], valerá agora paralelamente a necessidade de se assumir como lema para a escatologia o princípio fundamental: «spes quaerens intellectum – spero ut intelligam» [a esperança em procura da compreensão – espero para poder compreender].

Não creio estar enganado se disser que há pouca reflexão sobre a Esperança no mundo da cultura de hoje e a própria carta encíclica do Papa Bento XVI, «Spe salvi» [Salvos na Esperança], foi ficando rapidamente esquecida. Enquanto releio algumas páginas de «Teologia da Esperança» numa espécie de homenagem ao seu Autor, dou comigo a evocar aquela belíssima encíclica de 30 de Novembro de 2007 e a recordar como o Papa Francisco acaba de celebrar a Esperança em três documentos recentes, como que a sugerir que os nossos tempos são um tempo propício para a pensar e a viver como necessidade programática existencial. Assim, a pensar nos jovens, Francisco, em Novembro de 2023, escreve a mensagem «Alegres na Esperança» para a XXXVIII Jornada Mundial da Juventude, a realizar em Seul na Coreia em 2027; a 9 de Maio do corrente ano de 2024, Francisco publica a Bula de Proclamação do Grande Jubileu Ordinário do Ano 2025, intitulada «Spes non confundit» [A esperança não engana]; finalmente, a 27 de Junho de 2024, publica a mensagem «Espera e age com a criação» para o Dia de Oração pelo Cuidado da Criação, que se realizará no próximo 1 de Setembro.

Três documentos que apontam para o futuro, como é do futuro toda a esperança. Três documentos provenientes de Roma cujo tempo é este: tempos de guerras, incertezas, intolerâncias, violências, extremas desigualdades sociais, medos e depressões. Documentos que convidam a transformar os «sinais dos tempos» em «tempos de esperança» para a qual o mundo está sempre cheio de possibilidades que importa descobrir, como reitera o «teólogo da Esperança». São as possibilidades do Deus da Esperança. Delas cada humano fará a sua própria «teologia da esperança», pensada, reflectida e transformada em vida. Porque todo o ser humano é naturalmente um teólogo, mesmo quando se é indiferente a Deus ou até quando se nega.

Guarda, 9 de Julho de 2024

António Salvado Morgado

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