É preciso ir à revisão

Padre Vítor Pereira, Diocese de Vila Real

Podemos comparar este tempo da Quaresma às revisões a que temos de submeter os nossos automóveis. Se não respeitarmos as revisões de um carro, facilmente se vai abandalhar, vai começar a ter precocemente avarias, e terá um tempo de duração muito limitado, até ser forçado a parar. A nossa vida também, todos os anos, precisa de ir às “revisões”, porque pode facilmente cair na frivolidade e na incoerência, desviar-se da vivência que projetou e dos compromissos que assumiu. A Quaresma é esse tempo oportuno e favorável para se fazer uma profunda revisão de vida e se voltar a encontrar as coordenadas do GPS que nos ligam e levam a Cristo, ao seu Evangelho e ao seu reino. Possivelmente, andamos muito preocupados com o “nosso” reino, andar por aí só preocupados com o nosso bem-estar, em dar nas vistas, ter poder e dominar, ser influentes, ser famosos, causar impacto, em nos projetarmos sobre os outros, em aparecer, nem se seja de forma artificial e ridícula, em causar sensação e dar espetáculo. Enfim, em saciar um egoísmo que nos torna cada vez mais vazios, insatisfeitos, tristes e sós.

A quem me manifesta que não tem pecados e que não precisa de conversão, ao contrário dos outros, como sempre, dou o exemplo daquela pessoa que se sente muito bem de saúde e não sente necessidade de ir ao médico, achando que é uma clara perda de tempo. Mas ainda assim, devido à insistência da família e dos amigos, resolve ir ao médico e fazer umas análises, e eis que é surpreendido: tem a tensão alta, colesterol alto, possível gordura no fígado, a glicose está no limite. O médico profere o diagnóstico: tem de mudar de vida. É preciso arrepiar caminho. Há doenças que são silenciosas e quando se revelam já poderá ser um sério problema. O mesmo pode acontecer na vida de um cristão. Silenciosamente e sem parecer que não tem mal nenhum, muitos maus hábitos, vícios, valores mundanos, acomodamentos, formas de pensar, rotinas, desleixos, omissões se apoderam da vida e a tolhem e limitam, enfermando a alma e o coração, e nos desviam de um caminho e ideal que abraçamos.

O homem atual precisa de recuperar rapidamente a interioridade. A Quaresma também é para isso. Voltar à boa espiritualidade e dar atenção vivência interior. É ali que tudo começa e tudo acaba.  Vivemos muito voltados para fora, nesta sociedade das aparências, da febre mediática e do espetáculo, do atuar e impressionar mais do que ser, mas por dentro sente-se que as pessoas estão muito caóticas e desestruturadas. Não podemos viver apenas centrados nos bens e nas preocupações materiais, nos êxitos instantâneos e fugazes da vida mundana e mais comum, mas temos de nos centrar mais na interioridade, nos valores espirituais e na busca de Deus, com quem o ser humano verdadeiramente se realiza e preenche.

Na sociedade em que vivemos, seria bom ponderarmos a recuperação de alguns destes valores, decisivos para realizarmos plenamente a nossa humanidade e vivermos uma felicidade mais profunda, em contraposição à felicidade epidérmica e momentânea que nos propõem diariamente.  Um dos dramas que existe nos tempos atuais é que expulsámos da vida o pensar, o refletir, o silêncio, tão importantes para darmos beleza, equilíbrio, densidade e profundidade à vida, ou, se quisermos, para caldearmos e humanizarmos a vida e sermos mais humanos. Estamos a passar pela vida, mas a vida não está a passar por nós. Vivemos atolados em ruído, cada vez mais apressados e ansiosos, sempre virados para fora de nós mesmos, em agitação, em impaciência, em excesso de dados e informação, de estímulos e ações e contrarreações sem tempo para podermos ponderar e absorver essa avalanche emotiva e informativa, não nos restando senão viver na banalidade e com grande desordem e instabilidade em todos os campos da vida. A própria ciência chama a atenção de que criámos uma forma de viver para a qual o ser humano não está preparado, até fisicamente e neurologicamente.

Em tempos, num programa da Antena 1, o Padre Anselmo Borges afirmava: «Passamos o tempo a dedar nos telemóveis e nos tablets. Vivemos uma vida que não permite pensar, vivemos muito depressa, a correr…vivemos no tsunami das informações e não estamos a dar a possibilidade de criar pessoas estruturadas. Há muita informação, um tsunami de informações, e depois não há realmente uma verdadeira educação. A pressa faz com que as pessoas não tenham um espaço de vida interior, para pensar, parar e refletir». E para um cristão, acrescentaria: para rezar, para estar com Deus, para pensar nos outros e dar tempo a quem precisa. Ainda não percebemos que, no meio desta embriaguez materialista e estrepitosa, a maior das nossas misérias é vivermos uma vida sem Deus. Muitas pessoas vivem uma vida seca e pobre, sem interioridade e sem valores espirituais, uma vida sem seiva, que dificilmente descola da visão rasteira da vida, com os seus prazeres efémeros, e se torna plenamente humana.

Nesta Quaresma, façamos um grande bem a nós mesmos: arranjemos tempos para parar, procuremos o silêncio para nos encontrarmos connosco próprios e com a vida, e se for com Deus, tanto melhor, aliás, sem Ele nada acontece, quanto mais não seja para questionarmos o que somos e o que vivemos, e procuremos viver a partir de dentro, da nossa interioridade, tão importante para sermos livres, autênticos, equilibrados, fecundos, sensatos e felizes. Não estamos a seguir um bom caminho quando não damos tempo ao pensamento, à reflexão e à interioridade do ser humano. Quererá o mundo ouvir este humilde apelo?

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Agência ECCLESIA

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