Que presépio inventou São Francisco de Assis?

Frei Hermínio Araújo

Foto: Agência ECCLESIA/MC

1. Foi há 800 anos, na noite de Natal de 1223, na pequena povoação de Greccio, Itália, que São Francisco promoveu uma celebração do Natal que influenciou a forma de celebrar o nascimento de Jesus, até hoje. Mas o que aconteceu? Que presépio foi esse? Alguns dos estudos mais recentes e mais significativos sobre este assunto são da historiadora italiana, especialista na Idade Média, nomeadamente na história franciscana, Chiara Frugoni (1940-2022): Il presepe di san Francesco. Storia del Natale di Greccio (2023); Un presepio con molte sorprese. San Francesco e il Natale di Greccio (2020); e várias conferências disponíveis no YouTube. Em Portugal, temos: Isidro Pereira Lamelas e Ana Lúcia Esteves, De Belém a Greccio. O Presépio de São Francisco de Assis (Paulinas Editora, 2023). A principal fonte antiga para a compreensão deste acontecimento é Frei Tomás de Celano – Vida Primeira de São Francisco de Assis, nn. 84-87. É em Celano, primeiro biógrafo de São Francisco, que Frugoni fundamenta os seus estudos sobre Greccio.

2. Frei Tomás de Celano escreve a Vida Primeira pouco tempo depois da morte de Francisco. O Santo de Assis morre no dia 3 de outubro de 1226 e o texto de Celano está concluído no dia 25 de fevereiro de 1229, segundo o Códice Lat. 3817 da Biblioteca Nacional de Paris. Celano conclui a primeira parte desta biografia, nn. 84-87, com um texto acerca d’«O presépio preparado em Greccio na noite de Natal». O texto é muito belo do ponto de vista literário. Está no seguimento de outro de rara beleza, nn. 80-83, sobre: «O grande amor de Francisco a todas as criaturas por amor do Criador»; e o «Retrato físico e moral do Santo» (estas são algumas das páginas mais belas das primeiras fontes franciscanas). São Boaventura, na Legenda Maior X, 7, apresenta a acontecimento de Greccio de uma forma simplificada. Tendo presente alguns dos contributos de Chiara Frugoni, fundamento-me no texto de Celano, evidenciando os aspetos mais significativos, para responder à pergunta: que presépio inventou São Francisco naquela noite memorável, há 800 anos?

3. Frei Tomás de Celano começa por dizer que Francisco é movido pelo Evangelho, pelo seguimento de Jesus Cristo «com suma aplicação da mente e fervor do coração». Na sua memória contemplativa tinha «a humildade da Incarnação e a caridade da Paixão». Diz que o Santo pediu ao seu amigo João de Greccio para fazer os preparativos, com algumas palavras como estas: «É meu desejo celebrar a memória do Menino que nasceu em Belém de modo a poder contemplar com os meus próprios olhos o desconforto que então padeceu e o modo como foi reclinado no feno da manjedoura, entre o boi e o jumento». Refere-se aos elementos do estranho presépio: «Lá estava a manjedoura com o feno e, junto dela, o boi e o jumento». E acrescenta: «Ali receberia honras a simplicidade, ali seria a vitória da pobreza, ali se aprenderia a lição melhor da humildade. Greccio seria a nova Belém». Refere-se também ao ambiente festivo em que tudo acontece e à celebração da Eucaristia sobre a manjedoura.

4. Tudo o que é dito no n. 86 desta biografia é de muita importância. Celano refere-se à pregação de Francisco, por exemplo, desta forma: «Por vezes, ao mencionar a Jesus Cristo, abrasado de amor, chama-lhe o “menino de Belém”, e, ao dizer “Belém”, era como se imitasse o balir duma ovelha e deixasse extravasar da boca toda a maviosidade da voz e toda a ternura do coração. Quando lhe chamava “menino de Belém” ou “Jesus”, passava a língua pelos lábios, como para saborear e reter a doçura de tão abençoados nomes». Ficamos a saber mais da forma do que do conteúdo das palavras de Francisco. Ficamos a saber da intensidade com que Francisco vivia e fazia viver tudo o que estava a ser celebrado, com efeitos imediatos: o despertar / ressuscitar do Menino no coração de muitos; e a inefável alegria experimentada por todos, no regresso às suas casas.

5. Frei Tomás de Celeno termina o seu texto sobre Greccio desta forma: «O presépio é hoje um templo consagrado ao Senhor. No lugar da manjedoura foi construído um altar em honra do bem-aventurado pai Francisco, a fim de que ali, onde outrora os animais se alimentavam com feno, pudessem os homens alimentar-se continuamente, para saúde da alma e do corpo, com a carne do Cordeiro Imaculado, Jesus Cristo Senhor Nosso, que a Si mesmo se nos deu com sumo e inefável amor, Ele que vive e reina, eternamente glorioso com o Pai e o Espírito Santo, por todos os séculos dos séculos. Ámen. Aleluia, Aleluia!».

6. Que pensar acerca deste estranho presépio inventado pelo Santo de Assis? Os três elementos – manjedoura com feno, boi e jumento – é que fazem o presépio de Francisco (e não as figuras de Jesus, Maria e José). E, sobretudo, a celebração da Eucaristia. Antes de Francisco já se representava o Natal. Depois de Francisco, o presépio tem vindo a ser constantemente re-inventado. Note-se que a palavra manjedoura, em latim, diz-se praesepium, donde vem a palavra presépio. Aquele que diz ser o pão vivo do Céu é nosso alimento (cf. Jo 6), como o feno na manjedoura para os animais. Porquê o boi e o jumento? Diz Isaías: «O boi conhece o seu dono, e o jumento, o estábulo do seu senhor» (Is 1, 3). Ausente nos Evangelhos canónicos, esta simbologia (boi e jumento no presépio) aparece na tradição apócrifa (Pseudo Mateus 14, citando Isaías). Estes dois animais simbolizam, na tradição cristã do primeiro milénio, a universalidade dos povos: judeus e gentios, crentes e não crentes. Para Francisco, provavelmente, cristãos e muçulmanos.

7. Chiara Frugoni evidencia o facto de Francisco ter regressado há pouco tempo do Egito, do encontro com os muçulmanos, no contexto da Quinta Cruzada. O Santo de Assis não está do lado da guerra, mas da paz. No seu Testamento espiritual, n. 23, afirma: «Esta saudação me revelou o Senhor que disséssemos: O Senhor te dê a paz!». A paz, entre todos, acontece no presépio! Em Belém, em Assis, e em qualquer uma das nossas terras; como em 1223, em 2023, celebrando a Eucaristia – Glória a Deus e Paz na Terra! Re-fazer, hoje, o presépio de Francisco passará certamente pela integração destes elementos. Naturalmente com a integração de outros, dando continuidade a uma re-invenção criativa, aliás como tem acontecido ao longo dos séculos.

8. Celebrar os 800 anos de Greccio é motivo para nos recentrarmos no essencial que Francisco celebrou: o Menino que continua a nascer na Eucaristia é alimento de Paz em tempo de guerra. Como no tempo do Santo de Assis, marcado por tantos conflitos, assim nos dias de hoje, em tantas dezenas de países em guerra. Celebrar o Natal, como Francisco, é acreditar que a Paz é possível! É acreditar que a Eucaristia é alimento da Paz! É acreditar que, apesar de tantos problemas, o Mundo, e nós próprios, somos feitos para o Louvor! O Salmo 15, composto por Francisco (inspirando-se sobretudo nos Salmos da Bíblia), sintetiza e espiritualidade de Greccio, e talvez muitas destas palavras tenham sido ditas por Francisco naquela noite de 1223, que Celano não cita, mas que outras fontes fazem chegar até nós:

«Glorificai a Deus, nosso auxílio; louvai o Senhor Deus, vivo e verdadeiro, com cânticos de alegria (Sl 42, 6). Porque o Senhor é o Altíssimo, o terrível, o grande rei de toda a terra (Sl 46, 3). Porque o santíssimo Pai do céu, nosso Rei desde a eternidade, mandou lá do alto o seu dileto Filho, e ele nasceu da bem-aventurada Virgem Santa Maria. Ele me invocou: “Tu és meu Pai”; e eu farei dele o meu primogénito, acima dos reis da terra (Sl 88, 27-28). E naquele dia o Senhor Deus mandou a sua misericórdia, e um cântico que encheu a noite (Sl 41, 9). Eis o dia que o Senhor fez; exultemos e alegremo-nos com ele (Sl 117, 24). Porque nos foi dado o santíssimo e dileto Menino, e por nós (Is 9, 5) nasceu durante uma viagem e foi deitado num presépio, por não haver lugar para ele na estalagem (Lc 2, 7). Glória ao Senhor Deus no mais alto dos céus, e na terra paz aos homens de boa vontade (Lc 2, 14). Alegrem-se os céus, exulte a terra, rumoreje o mar e quanto ele encerra; regozijem-se os campos e tudo o que neles existe (Sl 95, 11-12). Cantai-lhe um cântico novo; gentes todas da terra, cantai ao Senhor (Sl 95, 1). Porque o Senhor é grande e digno de todo o louvor, temível sobre todos os deuses (Sl 95, 4). Dai ao Senhor, ó família das gentes, dai ao Senhor honra e glória, dai ao Senhor a glória devida ao seu nome (Sl 95, 7-8). Oferecei-lhe o vosso corpo para levar a sua santa cruz e segui até ao fim os seus mandamentos santíssimos (Rm 12, 1; Lc 14, 27; I Pe 2, 21)».

Frei Hermínio Araújo

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