Vamos a Belém ver o que aconteceu (Lc 2, 15)

Ir. Maria José Oliveira, Diocese de Bragança-Miranda

Há precisamente 800 anos, S. Francisco de Assis teve a feliz ideia de reinventar o Presépio. A convite do Papa Francisco, no documento “Admirável Sinal”, publicado em 2019 «a mente leva-nos a Greccio, no Vale de Rieti; aqui se deteve São Francisco, provavelmente quando vinha de Roma onde recebera, do Papa Honório III, a aprovação da sua Regra em 29 de novembro de 1223. Aquelas grutas, depois da sua viagem à Terra Santa, faziam-lhe lembrar de modo particular a paisagem de Belém […]. Em Greccio, naquela ocasião, não havia figuras; o Presépio foi formado e vivido pelos que estavam presentes. Assim nasce a nossa tradição […]. Com a simplicidade daquele sinal, São Francisco realizou uma grande obra de evangelização. O seu ensinamento penetrou no coração dos cristãos, permanecendo até aos nossos dias como uma forma genuína de repropor, com simplicidade, a beleza da nossa fé» (AS, 1-2).

Na descrição que deste acontecimento nos dá Tomás de Celano, seu primeiro biógrafo, vem assim expressa a intenção do Santo: «É meu desejo celebrar a memória do Menino que nasceu em Belém de modo a poder contemplar com os meus próprios olhos o desconforto que então padeceu e o modo como foi reclinado no feno da manjedoura, entre o boi e o jumento» (1Cel 84). Paremos na expressão: “de modo a poder contemplar com os meus próprios olhos”.

Dá ideia que S. Francisco construiu um presépio de forma lúdica, como se faz uma atividade com crianças. O despertar para a vida leva-as a querer ver, a querer experimentar, a tentar perceber como foi. O presépio é elemento de contemplação, leitura, encontro sensível com o Evangelho. Fazer o presépio com olhos de fé torna-se oração, ponte de comunhão com Aquele que é o centro do presépio, Jesus.

A contemplação está muito ligada ao olhar. Mas de que olhar se trata? A visão não se esgota nos olhos. Este bem precioso não se compra apenas nas óticas e a sua falta nem sempre se diagnostica junto dos oftalmologistas.

A fé é aliada da visão. “Ver para crer”, é expressão que referimos à incredulidade do Apóstolo Tomé quando não acredita no ressuscitado apenas pela descrição dos companheiros. O papa Francisco dá-nos a inversão desta receita: ver porque cremos, pois «quem acredita, vê; vê com uma luz que ilumina todo o percurso da estrada» (LF, 1). Esta palavra na Encíclica Lumen Fidei, que Francisco completou do seu predecessor o Papa Bento XVI, ajuda-nos a perceber quão importante é tratar da visão da fé.

É preciso lavar frequentemente os olhos nas fontes da inocência. Inocência é palavra muito desprezada pela sua conotação à ignorância, à timidez e à ingenuidade. Mas não! O antónimo de inocência não é a esperteza, mas a rudeza e a malícia. A inocência purifica o nosso olhar para ver com os olhos de Deus a alegria das suas obras e deixar ecoar delas o espanto e a ação de graças.

Há os visionários, cujos olhos são cálices do futuro.  Homens tremendamente realistas que o saboreiam já nos sinais e nos sonhos que levam adiante de si, num ímpeto transformador. E convencem o futuro a ficar para peregrinar.

É preciso fazer com assiduidade uma terapia que liberte os nossos olhos da película do “já visto”, porque esta bloqueia-nos o acesso ao mistério. A rotina pode encardir a alma e desgraçar a capacidade de encontrar o valor das coisas mais simples.

Frequentemente confunde-se o ver com o viajar, como se só o ato de bisbilhotar todos os cantos do mundo nos pudesse dar um curriculum de imagens. O meu pai, por brincadeira, dizia que era um “tipo muito viajado” pois “já tinha ido ao estrangeiro”, só porque tinha visitado uma povoação espanhola logo após a fronteira, que fica a uns 30 quilómetros da nossa aldeia. Mas com este tipo de rodagem era um homem que conseguia ver um mundo quando se punha a considerar um formigueiro e os caminhos que para lá correm e de lá saem.

Muitas vezes olha-se demasiado para fora só porque é assustador olhar para dentro de nós próprios. Daniel Faria tem um verso que nos faz pensar que o olhar para dentro nos obriga a sair para fora: “Trouxe também os instrumentos dos mineiros/ Uma luz na cabeça voltada para o pensamento/ Um olhar profundo/ O modo prisioneiro de virem livremente para fora.”[1]

A frase que intitula este texto, retirada do Evangelho segundo S. Lucas, é atribuída aos pastores que, depois da aparição de um Anjo e do coro celestial, a proferem num misto de alegria e curiosidade. Os pastores são homens que vivem fora da cidade. Mas estão expostos a horizontes infindos. O seu ofício é guardar e vigiar. Estes dois verbos estão dependentes da visão e supõem uma visão apurada. Ao apuramento da visão chama-se reparação.  É muito difícil ver bem em andamento. As imagens desfocam-se, sucedem-se e fogem. Temos de parar para ver.  Mas para ver bem, precisamos de parar outra vez, ou seja reparar. Os olhos são a janela da alma e com eles podemos afinal consertar tantas realidades, dentro e fora de nós! Eles têm uma linguagem subtil e uma capacidade infinda de apreender e de colorir o mundo.

Além dos pastores, o presépio está cheio de olhares cuja contemplação tão bem nos fará. É o olhar de Maria que “guarda” o seu Menino; é o olhar de José que protege estes dois tesouros colocados sob o seu carinho e atenção. É o olhar dos pobres que buscam um abrigo. É o olhar dos animais que representam esta criação a gemer uma libertação. É, enfim, o olhar dos magos que sabem ler nos frágeis sinais das estrelas um texto de libertação. Que distinguem as oportunidades e lobrigam os perigos. Olhar perspicaz e atento o destes homens que leem em Herodes os sinais da maldade e da perversão e não temem abordar o desconhecido de caminhos novos.

Neste tempo de tantas distrações, de tantas guerras e inquietações regressemos ao presépio e coloquemos o nosso olhar em cada figura. Em qualquer forma de apresentação ele nunca será uma peça extática, mas um manancial de movimento e de dinamismo. Façamos o presépio em nossas casas, contemplemos o amor que regressa às nossas vidas, deixemo-nos inundar pela sua luz e pela sua paz. O presépio pode ser terapia para um individualismo crescente, expressiva lição de catecismo para as nossas crianças, anúncio de Evangelho para as nossas visitas e convidados. Fazer o presépio pode ressuscitar em nós a infância enterrada sob uma adultez viciada e envelhecida. O presépio é janela para uma fé que precisa sempre de crescer.

E passemos da manjedoura ao altar. Continua assim o relato das Fontes Franciscanas: «É celebrado o rito solene da Eucaristia sobre a manjedoura, e o sacerdote que a celebra sente uma consolação jamais experimentada. (1Cel 85)». Em Greccio a manjedoura tornou-se altar!

S. Francisco não colocou na manjedoura qualquer peça de ouro, de cerâmica, ou de qualquer material nobre em forma de Menino, mas é o próprio Jesus na Eucaristia que sobre ela se reclina. É o milagre que para nós acontece em cada celebração da Eucaristia. Façamos o presépio para ver Jesus! Adoremo-l’O vivo e realmente presente na Eucaristia.

 

Ir. Maria José Oliveira, sfrjs

[1] FARIA, Daniel. Poesia. Assírio & Alvim.2ª Edição. setembro de 2015. P. 183

 

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