Viver em família com uma pessoa com deficiência

Viver em família com uma pessoa com deficiência Viver em família com ou sem uma pessoa com deficiência é sempre um aventura de compromisso, de construção do dia a dia nas suas rotinas e nos momentos inesperados de especial comunhão ou de especial desafio para manter vivos os valores, as pessoas. A vida em família é sempre constituída por um equilíbrio instável, momentos de luz e de trevas. Ter um filho com uma deficiência, seja ela profunda ou ligeira é sempre passar alguns períodos de aflição e angústia. De facto, há situações em que parece que não vamos ter forças para aguentar as situações que surgem e que nos deixam exaustos e sem ver a luz ao fundo do túnel. Quando o Dido teve 3 dias em convulsão permanente no Hospital sem haver um sítio para me estender, sem poder sair para comer, dormir … parece que não se vai aguentar. Enquanto as pessoas são compreensivas e apoiam tentando dar o alívio possível, as forças vêm mesmo sem a gente esperar, mas quando além do esforço físico aparece a hostilidade aberta … a última luz apaga-se, as forças físicas desaparecem e o psicológico deixa de aguentar. Tive várias vezes ao longo da minha vida de mãe do Dido ocasião de experimentar estas situações de exaustão, de escuridão. Até agora, em todas estas situações de grande escuridão, tem me valido o meu marido e outras pessoas que surgem como dom de Deus, tais como vizinhos que dão a mão, o Toi (um amigo com deficiência mental grave que tem o condão de aparecer quando é preciso)… destes modos o Senhor tem-me ensinado que posso confiar nEle, “está escuro, posso cair, mas Ele está comigo, não sei onde, não sei como, mas Ele há-de guiar-me e há-de me enviar a ajuda que preciso. É preciso continuar. O Reino de Deus constrói-se aqui, quando percebemos que precisamos do outro e que ele existe e está próximo de nós”. Quando se sente a nossa pobreza e a falta de Deus e dos outros, as pequenas coisas são sentidas como um dom maravilhoso e não há dúvida que a glória de Deus se manifesta. O calor da solidariedade, os primeiros sorrisos do Dido depois de uma grande crise, a ternura que ele irradia… fazem sentir a força do amor dAquele que nos criou e que criou estes nossos filhos para que se revelassem as Suas maravilhas. Nesta caminhada difícil, que se inicia quando nos é revelada a deficiência ou nós a constatamos e continua quando temos que nos adaptar à criança concreta com as suas limitações e dons, precisamos de ajudas várias. A central será aquela que, de várias formas e ao longo do tempo, nos dá alento para encarar o futuro com esperança que nos permite ter disponibilidade para construir a comunicação dentro da família: com aquele filho especial, que pode ter limitações ao nível da comunicação verbal. O desafio: – como construir a comunicação sendo que esta se constrói a partir da participação da pessoa na gestão das suas rotinas de vida e das suas opções? – como construir a comunicação entre os outros membros da família (restrita e alargada) com aquela pessoa que decepcionou todos à sua chegada, ao anunciar-se com uma deficiência? – como manter e desenvolver a comunicação com os outros membros da família nos seus campos de interesse, forçosamente diferentes daquele seu filho/ irmão? – como manter o interesse noutros projectos da vida profissional, social e comunitária, assim como a capacidade de planear compromissos extra-familiares, apesar da precariedade do ritmo diário? – como angariar/ obter os meios indispensáveis para os apoios específicos de que o nosso filho carece para poder progredir – será que os que tem são bons e suficientes? Penso que estes desafios serão comuns a todas as famílias quando os filhos são pequenos e dependentes ou têm doenças crónicas com surtos. Numa família com um filho com deficiência que cause uma dependência mais ou menos importante, as rotinas podem ser pesadas, mas se conseguirmos obter a participação desse filho elas podem tornar-se um momento muito estimulante de comunicação que dá prazer a ambas as partes. Aceitar esse prazer que vem, por um lado da comunicação pessoa a pessoa e por outro lado dos progressos inesperados, sentidos como grandes vitórias do nosso esforço e do deles. Quanto aos apoios: os necessários são de índole diversa: – informação: sobre o diagnóstico e consequências prováveis, sobre os meios de compensação, sobre os direitos – apoios terapêuticos diversos – apoios educativos, de formação profissional ou ocupacionais para os maiores de 16 anos – apoios no acesso a actividades desportivas e de lazer – apoios residenciais esporádicos (em caso de doença do prestador de cuidados, para alívio da carga familiar ou para desenvolvimento de actividades com outros filhos ou com o cônjuge) – apoios residenciais permanentes – sempre que isso seja do interesse superior da pessoa com deficiência, ou no caso de ausência ou incapacidade da família – apoios residenciais complementares – “acolher juntamente os que se amam”: alojamentos para filhos e pais em situação de incapacidade física de se cuidar sozinhos dos seus filhos – apoio espiritual A lista não é exaustiva, mas pela complexidade dos apoios que mencionei, se compreenderá a dificuldade de obter alguma sintonia por parte de tantos “agentes”, cada um reagindo de sua maneira à realidade da pessoa com deficiência que tem na sua frente. A família é desafiada a fazer a síntese, a desvalorizar as contradições provenientes de opiniões contraditórias que, por vezes, surgem. Não é fácil, mas os nossos filhos vão-nos dando força para caminhar. Pelo menos no meu caso, a ternura que o Dido irradia à sua volta, logo de manhã, com o entusiasmo com que nos acolhe, as festinhas que nos faz quando estamos a vesti-lo, a fazer-lhe a barba, a dar-lhe banho: tudo é uma festa. Sentimo-nos competentes e válidos. Vai para a CERCI e logo que chega o autocarro, com o seu sorriso faz que todos os colegas e técnicos fiquem contentes de o ver. O Movimento Fé e Luz e a sua comunidade em Évora tem-nos ajudado muito, porque não estamos sós. Temos amigos que vivem situações de algum modo semelhantes. Podemos partilhar e recuperar alguma força. Os nossos filhos também têm amigos – é-lhes reconhecido o direito à palavra, a uma opinião nos nossos trabalhos em pequenos grupos, nas nossas orações em que eles participam com entusiasmo. Aqueles que não falam, também fazem falta e têm lugar nas nossas comunidades: ajudam-nos a sair de nós mesmos e treinam a nossa capacidade de nos dar. Tenho sentido que a Igreja de Évora se tem aberto à participação destes nossos irmãos mais pobres, que têm tanto para nos dar a todos. Penso que temos todos que aprender a olhar para estas pessoas e para as suas famílias duma maneira nova: não só como pessoas que nós temos de ajudar, mas pessoas que têm recursos – dons – como nós e têm algo para nos dar que nós não temos. Vamos ao seu encontro. É na descoberta dos seus dons que descobrimos o rosto de Deus que eles espelham e não nas suas deficiências. Descobrir em comunidade esses dons e partilhá-los é o que tenho recebido do Fé e Luz. Évora, 11 de Maio de 2003 Alice Caldeira Cabral

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