Um olhar da Igreja sobre a realidade: activo, comunitário e de realização pessoal e social

Conferência de D. Manuel Clemente nas Jornadas Nacionais de Comunicação Social Quando falamos de “olhar”, falamos já de uma realidade, de uma realidade activa. Duma realidade que, em boa medida, cria mais realidade, outra realidade. Vai muito além da dimensão “oftalmológica”, porque a interpreta e orienta. Interpreta-a em função de valores prévios, que seleccionam, relativizam e hierarquizam a realidade observada; e orienta-a porque a reacção que manifesta, de correspondência ou não-correspondência, tem sempre seguimento prático. Os olhos são, de facto, “as janelas da alma”; mas janelas de rés-do-chão, por onde tanto se entra como se sai. Formas de olhar Apliquemos estas considerações à Igreja que todos somos e as concretizações serão várias. Selecciono estas: 1ª) Um “olhar de Igreja”, por ser essencialmente contemplativo, é necessariamente activo e activador. 2ª) Um “olhar de Igreja”, por ser comunitário, soma muitos olhares, unifica perspectivas convergentes. 3ª) Um “olhar de Igreja”, por se referir ao Deus de Jesus Cristo (Deus humanado), refere-se também à pessoa humana e à sua realização (salvação), pessoal e social, como critério de discernimento. Para ilustrar o primeiro ponto – de um “olhar de Igreja”, por ser essencialmente contemplativo, será também necessariamente activo e activador -, aludo aqui a um dos pronunciamentos mais sugestivos que ouvi nas últimas semanas. Refiro-me a uma resposta que o Papa Bento XVI deu aos jovens reunidos em Loreto, no sábado 1 de Setembro. A pergunta que lhe fizeram na altura foi a seguinte: “A muitos de nós, jovens da periferia, falta um centro, um lugar, ou pessoas capazes de dar-nos uma identidade. […] Disto nasce a experiência da solidão e, às vezes, algumas dependências. Santidade, há algo ou alguém para o qual podemos tornar-nos importantes? Como é possível esperar, quando a realidade nega todos os sonhos de felicidade, todos os projectos de vida?”. Pergunta muita realista, podemos dizer, posta com força e amplidão próprias do sentimento juvenil. Quase diríamos manifestando a realidade “em bruto”, como é sentida e sofrida. O Papa responde com uma proposta concreta e activadora, mas que lhe brota de convicções de origem “contemplativa”, isto é, alimentadas pela fixação da inteligência e do sentimento religioso na revelação divina. É muito interessante segui-lo neste passo: “Vós apresentastes realisticamente a situação de uma sociedade […]. Tudo parece concentrado nos grandes centros do poder económico e político, as grandes burocracias dominam e quem se encontra nas periferias, com efeito, parece ser excluído desta vida. […] E, devo dizer aqui, fala-se com frequência na Igreja de periferia e de centro, que seria Roma, mas na realidade na Igreja não existe periferia, porque onde está Cristo, ali está todo o centro. […] A Igreja viva, a Igreja das pequenas comunidades, a Igreja paroquial, os movimentos deveriam formar outros centros na periferia e assim ajudar a superar as dificuldades que a grande política obviamente não supera e devemos ao mesmo tempo também pensar que, não obstante as grandes concentrações de poder, precisamente a sociedade de hoje tem necessidade de solidariedade, do sentido da legalidade, da iniciativa e da criatividade de todos”. Ultrapassar as periferias do mundo Importa realçar que o Papa incluiu na resposta uma importante consideração eclesiológica. Ouvimo-lo também dizer que o policentrismo eclesial deve tornar-se num estímulo para a ultrapassagem de todas as periferias do mundo, tornando significantes e decisivas as mais pequenas realizações da sociabilidade. E é ainda a partir da “contemplação” evangélica que Bento XVI olha a realidade possível: “Vimos e vemos hoje no Evangelho que para Deus não existem periferias. A Terra Santa, no amplo contexto do Império Romano, era periferia; Nazaré era periferia, uma cidade desconhecida. E todavia precisamente aquela realidade era, de facto, o centro que mudou o mundo! E assim também nós devemos formar centros de fé, de esperança, de amor e de solidariedade, de sentido da justiça e da legalidade, de cooperação. Somente assim a sociedade moderna pode sobreviver” (1) . É também da “contemplação” da realidade que brota a consideração dos “sinais dos tempos”, como a propôs o Concílio Vaticano II. Os trechos são eloquentes, como estes da Constituição Pastoral Gaudium et Spes. Diz-nos no número 3 que a Igreja “tem em vista um só fim: continuar, sob o impulso do Espírito Paráclito, a obra do próprio Cristo, que veio ao mundo para dar testemunho da verdade, para salvar e não para condenar, para servir não para ser servido”. – E como se realiza tal objectivo? Continua o número 4: “Para cumprir tal missão, a Igreja tem o dever de perscrutar incessantemente os sinais dos tempos e de os interpretar à luz do Evangelho, de tal sorte que possa responder, de um modo adequado a cada geração, às perenes interrogações dos homens sobre o sentido da vida presente e futura e sobre a sua relação recíproca. Importa, por conseguinte, conhecer e compreender este mundo no qual vivemos, as suas esperanças, as suas aspirações, a sua índole frequentemente dramática”. Quer isto dizer, entre muito mais, que a realidade pode e deve ser olhada a partir da fé. Fé da Igreja, correspondendo à esperança do mundo, sobrando esta, apesar de tudo, da perplexidade da história pessoal e colectiva. A esta luz se interpreta a realidade presente, a esta luz se abre a realidade futura, ou melhor, se faz convergir o drama humano com a Páscoa de Cristo. Acção humana e humanizante O número 11 da mesma Constituição vai no mesmo sentido, qualificando o olhar da Igreja sobre a realidade: “o Povo de Deus esforça-se por discernir nos acontecimentos, nas exigências e nos desejos que compartilha com os seus contemporâneos, quais são os verdadeiros sinais da presença ou dos desígnios de Deus. Com efeito a fé ilumina todas as coisas com uma luz nova e faz-nos conhecer a vontade divina sobre a vocação integral do homem, e assim orienta a inteligência para soluções plenamente humanas”. E é muito interessante verificar que – para o Concílio e no final do mesmo número – um olhar cristão sobre a realidade nem a aliena nem a deforma, antes lhe garante, sem desistências, um sentido plenamente humano: “Por isso aparecerá com maior clareza que o povo de Deus e o género humano, no qual ele está inserido, se prestam um mútuo serviço, de tal modo que a missão da Igreja se mostra como religiosa e, por isso mesmo, sumamente humana”. Este olhar incide sobre a realidade em geral, desde que seja humana e humanizante. Por isso prefere partir do pequeno e concreto para o geral e idealizável. Toda a Bíblia o atesta, na preferência comprovada que Deus revela pelo pequeno, pobre e humilde. Pela fermentação da massa e pelo crescimento das sementes, na linguagem das parábolas. Escusado será dizerque a comunicação social cristã terá de ter isto em conta. Observava, a propósito, Christian Duquoc, quer sublinhando a dificuldade de transmitir religiosidade a partir de grandes encenações rituais, quer apontando a necessidade de a captar na vida comum e comezinha: “Os media, é certo, referem-se ao quotidiano e ao que aí continuamente se tece. Se há emissão religiosa, ela não deve ignorar o que se passa, ela tem por vocação, sem excesso retórico e sem romantismo, abri-lo para o que de invisível nele acontece. Quanto mais parece difícil dar ao espectáculo televisivo uma densidade religiosa com recurso ao rito hierático, mas separado do profano, tanto mais parece difícil dar a ver na realidade quotidiana errante a glória silenciosa de Deus. Ora, a forma mediática do cristianismo é convocada para esta tarefa”. E, dentro da mesma ordem de ideias, ainda junta o teólogo francês: “Esta tarefa, porventura paradoxal, vai ao encontro de um pensamento sobre Deus que se impôs depois da publicação de Cartas da prisão, de D. Boenhoeffer: a fragilidade de Deus no mundo seria indício anunciador de uma presença mais intensa naquilo que aparentemente O ignora ou lhe foge” (2) O que é a verdade? Retenha-se também o seguinte trecho de outro autor: “E o que é a verdade? – perguntava Pilatos a Jesus. Porventura, o procurador romano na Palestina do século I colocou, sem o saber, uma questão central para este debate sobre os media e as religiões. Os media debatem-se com a procura da melhor verdade possível na descrição dos factos e da realidade. Mas essa aproximação nunca é perfeita: há sempre diferentes leituras possíveis, diferentes descrições dos mesmos factos, diferentes abordagens da sociedade. Apliquemos este critério ao necessário preenchimento da liberdade religiosa, que, nem sempre estará assim tão garantido… Foi ainda o Concílio, num dos seus mais árduos e conseguidos pronunciamentos, que estabeleceu o seguinte, no número 15 da Declaração Dignitatis Humanae: “É evidente que os homens de hoje desejam poder professar livremente a religião em privado e em público […]. Porém, não faltam regimes que, embora nas suas Constituições reconheçam a liberdade de culto religioso, se esforçam por afastar os cidadãos de professarem a religião […]. Por conseguinte, para que na família humana se estabeleçam e consolidem relações de concórdia e de paz, requer-se que em toda a parte se proteja a liberdade religiosa com uma eficaz tutela jurídica e se respeitem os deveres e os direitos supremos dos homens para a livre expressão da vida religiosa na sociedade”. Imaginemos porém que, numa determinada sociedade, se afirma a liberdade religiosa na legislação fundamental, mas se considera que há-de ser exercida apenas no foro privado e na chamada “consciência individual”, devendo desaparecer do também chamado “espaço público”, na sua manifestação prática ou simbólica. E se considera que na escola oficial, mesmo que os encarregados de educação ou os próprios alunos pretendam a transmissão do legado religioso em geral ou de uma confissão específica, tal deve ser remetido para horários dificilmente aproveitáveis. Ou se determina que os que escolhem o ensino não-estatal, para os seus filhos ou para si mesmos, têm de o pagar por inteiro, ainda que já o façam para a educação pública. E se entende que o acompanhamento religioso das pessoas crentes, nos estabelecimentos hospitalares ou prisionais, deve ser reduzido aos que expressamente o pedem, excluindo qualquer espécie de proposta ou oferta que suscitasse tal pedido, inclusive para aqueles que previamente se sabe que o desejariam… Ou ainda, que no campo imenso da assistência ao próximo, as iniciativas confessionais devem ser secundarizadas, mesmo quando seja evidente que são elas as que mais respondem às necessidades concretas de populações inteiras; e que, sobretudo, respondem em continuidade, porque os que as integram encontram na religião um estímulo permanente para se dedicarem ao serviço dos outros, com abnegação e persistência… Imaginemos. Laicidade e liberdade religiosa Mas, mesmo só imaginando, a conclusão é óbvia para a comunicação social que se queira cristã e humanista: deve estar atenta, esclarecer e eventualmente denunciar, no sentido de efectivar a liberdade religiosa para todos e cada um, como direito fundamental a ser considerado por práticas sociais e públicas correspondentes. E denunciar também qualquer teorização puramente formal ou ideológica que encare a sociedade, mesmo a sociedade política, como um aglomerado de entidades individuais abstractas, sem consistência religiosa e cultural, própria e compartilhada. A laicidade ou secularidade do Estado não se garante pela abstracção das crenças e motivações dos cidadãos e grupos de cidadãos, mas pela potenciação da respectiva partilha, patente e aberta, precisamente no espaço público, tendo em conta as particularidades locais e garantindo sempre o direito das minorias. Quanto a estas, é certo que não devem ser incomodadas mas, mesmo não sendo crentes, não devem ser menosprezadas. E menosprezadas seriam se as considerássemos não susceptíveis de acolher uma proposta cultural ou religiosa. Em tudo e sempre, está apenas em causa o bem da pessoa humana, e o máximo de possibilidades que se lhe ofereça para crescer em conhecimento, responsabilidade e liberdade. E, no que à actividade política respeita, tem responsabilidades próprias a comunicação social cristã. Não pode esta fazer-se eco de pessimismos ou decepções sistemáticas em tal campo. Muito pelo contrário, deve estimular e dignificar o que Cristo reconheceu, mesmo em Pilatos, e Pedro e Paulo igualmente reconheceram no Império da altura, ou seja, o valor e a fundamentação da autoridade política e da sua finalidade. Cito, a propósito, o que oportunamente escreveu Francisco Sarsfield Cabral: “A cruel frustração de tantas esperanças postas na construção de um mundo melhor levou, assim, ao descrédito generalizado da acção humana e, portanto, da própria política. É aqui, numa recusa frontal deste espírito conformista e desesperançado, que os católicos podem e devem fazer a diferença na política. Desde logo, reabilitando a própria política, devolvendo-lhe objectivos éticos sem os quais ela se dissolve num cinismo pseudo-realista. Depois, e sobretudo, assumindo uma atitude de não resignação perante a injustiça no mundo, de não aceitação do intolerável. […] Num mundo desencantado, cabe aos católicos o testemunho da esperança. O resto virá por acréscimo” (3) . É profundo e exigente o olhar da Igreja sobre a realidade. Creio que, na nossa sociedade, é sobretudo um contributo indispensável da comunicação social cristã. 1 BENTO XVI – As respostas do Santo Padre às perguntas dos jovens. L’Osservatore Romano (ed. port.).(8 de Set. 2007) 3-4. 2 DUQUOC, Christian – Os media e o Cristianismo. “Só existe aquilo que se dá a ver”. Communio. 24 (2007/1) 24. 3 CABRAL, Francisco Sarsfield – Ética na Sociedade Plural. Coimbra: Tenacitas, 2001, p. 251.

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