Um lugar para a Eucaristia (II)

O génio humano soube encontrar nos Santos Mistérios (na Liturgia), na Sagrada Escritura e na Tradição eclesiástica, uma fonte inesgotável de inspiração. De tal modo, plasmou, ao longo das eras, numa diversidade de formas, o inefável e inaudível, o impalpável e ininteligível, que, graças ao mesmo Espírito que age na Igreja e no interior do artista, revela e actualiza, sem cessar, o mistério escondido, Cristo, o mesmo ontem, hoje e sempre. Assim nas novas formas, ontem como hoje, diferentes das antigas, continua a correr aquela mesma seiva vital que, brotando da mesma Fonte, as vivifica. É pois neste sentido que, também no campo da arte sacra, podemos falar de uma Tradição ininterrupta que importa conhecer, respeitar e desenvolver. “Movida por este elevado sentido do mistério, compreende-se como a fé da Igreja no mistério eucarístico se tenha exprimido ao longo da história não só através da exigência duma atitude interior de devoção, mas também mediante uma série de expressões exteriores, tendentes a evocar e sublinhar a grandeza do acontecimento celebrado. Daqui nasce o percurso que levou progressivamente a delinear um estatuto especial de regulamentação da liturgia eucarística, no respeito pelas várias tradições eclesiais legitimamente constituídas. Sobre a mesma base, se desenvolveu um rico património de arte. Deixando-se orientar pelo mistério cristão, a arquitectura, a escultura, a pintura, a música encontraram na Eucaristia, directa ou indirectamente, um motivo de grande inspiração. “Tal é, por exemplo, o caso da arquitectura que viu a passagem, logo que o contexto histórico o permitiu, da sede inicial da Eucaristia colocada na «domus» das famílias cristãs às solenes basílicas dos primeiros séculos, às imponentes catedrais da Idade Média, até às igrejas, grandes ou pequenas, que pouco a pouco foram constelando as terras onde o cristianismo chegou. Também as formas dos altares e dos sacrários se foram desenvolvendo no interior dos espaços litúrgicos, seguindo não só os motivos da imaginação criadora, mas também os ditames duma compreensão específica do Mistério. O mesmo se pode dizer da música sacra; basta pensar nas inspiradas melodias gregorianas, aos numerosos e, frequentemente, grandes autores que se afirmaram com os textos litúrgicos da Santa Missa. E não sobressai porventura uma enorme quantidade de produções artísticas, desde realizações de um bom artesanato até verdadeiras obras de arte, no âmbito dos objectos e dos paramentos utilizados na celebração eucarística? “Deste modo, pode-se afirmar que a Eucaristia, ao mesmo tempo que plasmou a Igreja e a espiritualidade, incidiu intensamente sobre a «cultura», especialmente no sector estético. (Encíclica Ecclesia de Eucharistia [=EE, 49]) “Neste esforço de adoração do mistério, visto na sua perspectiva ritual e estética, empenharam-se, como se fosse uma «competição», os cristãos do Ocidente e do Oriente. Como não dar graças ao Senhor especialmente pelo contributo prestado à arte cristã pelas grandes obras arquitectónicas e pictóricas da tradição greco-bizantina e de toda a área geográfica e cultural eslava? No Oriente, a arte sacra conservou um sentido singularmente intenso do mistério, levando os artistas a conceberem o seu empenho na produção do belo não apenas como expressão do seu génio, mas também como autêntico serviço à fé. Não se contentando apenas da sua perícia técnica, souberam abrir-se com docilidade ao sopro do Espírito de Deus. “Os esplendores das arquitecturas e dos mosaicos no Oriente e no Ocidente cristão são um património universal dos crentes, contendo em si mesmos um voto e – diria – um penhor da desejada plenitude de comunhão na fé e na celebração. Isto supõe e exige, como na famosa pintura da Trindade de Rublëv, uma Igreja profundamente «eucarística», na qual a partilha do mistério de Cristo no pão repartido esteja de certo modo imersa na unidade inefável das três Pessoas divinas, fazendo da própria Igreja um «ícone» da Santíssima Trindade. “Nesta perspectiva duma arte que em todos os seus elementos visa exprimir o sentido da Eucaristia segundo a doutrina da Igreja, é preciso prestar toda a atenção às normas que regulamentam a construção e o adorno dos edifícios sacros. A Igreja sempre deixou largo espaço criativo aos artistas, como a história o demonstra e como eu mesmo sublinhei na Carta aos Artistas (100) mas, a arte sacra deve caracterizar-se pela sua capacidade de exprimir adequadamente o mistério lido na plenitude de fé da Igreja e segundo as indicações pastorais oportunamente dadas pela competente autoridade. Isto vale tanto para as artes figurativas como para a música sacra”. (EE, 50). Para ajuizar, hoje, acerca daquilo que é digno (ou não) do Mistério revelado, importa ter em conta não apenas o seu valor estético, mas também a sua relação com a “corrente” que brota da mesma Fonte que o vivifica. É que Deus não pode ser servido nem com falsas palavras, nem com imagens falsas! Secretariado Diocesano de Liturgia do Porto

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